A Tríade dos "Diabos do Olho Azul" Cap 5 - O duplo amor de Baltazar
O Pecado na Noite
Na Fazenda Real de Campo Grande, em 1810, as noites eram carregadas de segredos, sussurradas entre as sombras da senzala e os corredores da casa-grande. Beatriz, consumida por sua paixão indomável por Baltazar, havia decidido cruzar uma linha perigosa. Ela sabia que seu amor por ele era uma afronta às leis da fazenda e da sociedade, mas seu coração, jovem e obstinado, não conhecia limites. Com a ajuda hesitante de Nhá Bernardina, ela tramou um plano que mudaria o destino de todos.
Numa noite sem lua, quando o ar estava pesado com o cheiro de jasmim e o som dos grilos ecoava pela fazenda, Beatriz convenceu Nhá Bernardina a preparar um chá entorpecente para Efigênia. A velha sábia da senzala, dividida entre sua lealdade aos escravizados e a pressão da sinhazinha, cedeu com relutância. Seu rosto enrugado carregava uma sombra de culpa enquanto misturava as ervas.
— Isso é errado, menina — murmurou Nhá Bernardina, mexendo o chá com uma colher de madeira. — Tu tá brincando com fogo. Esse homem é casado, e tu é a sinhazinha. Isso não vai acabar bem.
Beatriz, com os olhos brilhando de determinação, segurou o braço da velha.
— Nhá, eu não aguento mais! — sussurrou, a voz trêmula de emoção. — Ele é tudo que eu sempre quis. Só uma noite, Nhá. Só uma. Ninguém vai saber.
Nhá Bernardina suspirou, balançando a cabeça.
— Tu não entende o peso disso, criança. Mas que os orixás me perdoem, porque eu não vou me perdoar.
Enquanto Efigênia, dopada pelo chá, adormecia profundamente em sua esteira na senzala, Beatriz levou Baltazar para uma pequena cabana afastada, usada para armazenar ferramentas. Ela o havia convencido a tomar vinho, oferecido como um gesto de “amizade” durante uma conversa casual. Baltazar, que raramente bebia, sentiu a cabeça girar com o álcool, sua visão embaçada. Beatriz, vestida com um simples vestido de chita rasteira que escondia sua posição de sinhazinha, parecia, sob a luz fraca da lamparina, uma sombra de Efigênia.
— Efigênia... — murmurou Baltazar, a voz arrastada, enquanto a tomava nos braços.
Beatriz não corrigiu o engano. Ela se entregou à paixão, seus lábios encontrando os dele, seu corpo ávido respondendo ao toque do homem que a consumia há anos. Baltazar, confuso pela bebida, deixou-se levar, acreditando estar com sua esposa. A cabana, por algumas horas, foi um refúgio de desejo proibido, enquanto Nhá Bernardina, do lado de fora, olhava para o chão, os olhos tristonhos fixos na imagem de Efigênia adormecida, a culpa pesando como uma pedra em seu peito.
O Despertar da Verdade
Na manhã seguinte, o sol invadiu a cabana, revelando a verdade cruel. Baltazar acordou com a cabeça latejando, o corpo pesado, e encontrou Beatriz dormindo ao seu lado, um sorriso satisfeito nos lábios. Seus cabelos castanhos espalhavam-se pela esteira, e o vestido de chita estava amarrotado. O choque o atingiu como um raio. Ele não estava com Efigênia. Ele estava com a sinhazinha.
— Oxóssi, o que fiz? — sussurrou, o coração disparado, enquanto se levantava, as mãos trêmulas.
Ele saiu correndo da cabana, o peito apertado pelo pavor e pela culpa. O ar fresco da manhã não aliviou a tormenta em sua mente. Ele havia traído Efigênia, mesmo que sem intenção, e agora estava preso em uma rede de consequências que não podia prever. Ele correu até a senzala, onde encontrou Nhá Bernardina sentada à porta, o rosto marcado pela tristeza.
— Por que, Nhá? — perguntou Baltazar, a voz rouca, os olhos azuis faiscando de raiva e dor. — Por que me deixou fazer isso?
Nhá Bernardina ergueu os olhos, cheios de remorso.
— Eu tentei te proteger, menino — disse, a voz quase um sussurro. — Mas a sinhazinha... ela tem poder. E eu fui fraca. Me perdoa, Baltazar. Me perdoa por Efigênia.
Baltazar cerrou os punhos, mas não respondeu. Ele sabia que culpar Nhá Bernardina não desfaria o que acontecera. Ele precisava enfrentar a verdade e proteger sua família — Efigênia, Januária, e agora a pequena Inácia, nascida semanas antes, uma menina morena de olhos cor de mel, como os da mãe.
Um Coração Dividido
O incidente na cabana não terminou naquela noite. Beatriz, agora certa de que Baltazar a desejava, tornou-se ainda mais ousada. Ela o procurava em momentos roubados — nos campos, nas sombras do engenho, nos caminhos desertos da fazenda. Baltazar, inicialmente relutante, começou a ceder ao encanto da sinhazinha. Era o perfume dela, doce como flores de laranjeira, e as curvas de seu corpo, tão diferentes das de Efigênia, que o atraíam. Mas mais do que isso, era a intensidade de sua paixão, a forma como ela o olhava como se ele fosse mais do que um escravo, que o confundia.
Ele se via dividido. Em Ketu, não era incomum um homem ter mais de uma esposa, mas aqui, naquela terra de opressão, as regras eram outras, e o perigo era constante. Ele amava Efigênia profundamente — ela era sua companheira, a mãe de suas filhas, a mulher que compartilhava suas dores e sonhos. Mas Beatriz, com sua ousadia e vulnerabilidade, despertava algo novo, algo que ele não sabia nomear.
— Eu não sei a quem meu coração pertence — confessou ele a Nhô Quincas certa noite, enquanto os dois fumavam cachimbo sob a luz das estrelas. — Efigênia é minha força, mas Beatriz... ela me faz sentir vivo de um jeito que não entendo.
Nhô Quincas, com sua sabedoria calma, soprou a fumaça antes de responder.
— O coração é como um rio, Baltazar. Às vezes, ele se divide, mas sempre encontra um caminho. Só toma cuidado pra não se afogar. Essa sinhazinha é um perigo, e tu sabe disso.
Baltazar assentiu, mas o aviso não apagou o fogo que Beatriz acendera. Para sua sorte, o encontro na cabana não resultou em gravidez, mas o romance perigoso continuou. Eles se encontravam em segredo, sob as barbas de Tobias, o noivo de Beatriz, que parecia alheio às escapadas da esposa. Tobias, um jovem bronco com olhos apenas para a ascensão social que o casamento com uma Medeiros prometia, ignorava os sinais do affair, focado em agradar Dom Henrique e Sinhá Clara.
O Peso do Segredo
Efigênia, por sua vez, não suspeitava da traição. Ela exultava com a força de Baltazar, orgulhosa de vê-lo liderar a senzala, e se dedicava às filhas, Januária e Inácia, com um amor que a mantinha firme diante das durezas da vida. Mas Nhá Bernardina, que carregava o peso do segredo, observava tudo com um nó na garganta.
— Eu traí essa menina — murmurou Nhá Bernardina para si mesma, enquanto lavava roupas no rio. — Oxum, me perdoa. Eu não devia ter ajudado.
Na casa-grande, Sinhá Clara percebia a mudança em Beatriz. A jovem, agora oficialmente noiva de Tobias, parecia distante, seus olhos sempre vagando para os campos onde Baltazar trabalhava. Sinhá Clara, com seu faro afiado, confrontou a filha numa tarde quente, enquanto bordavam na varanda.
— Beatriz, eu te avisei — disse, a voz fria como aço. — Esse escravo é uma praga. Se eu descobrir que você tá se rebaixando com ele, juro por Deus que mando açoitá-lo até ele esquecer o próprio nome.
Beatriz engoliu em seco, o coração acelerado.
— Não há nada, mamãe — mentiu, os dedos tremendo sobre o bordado. — Eu só... admiro a força dele. Nada mais.
Sinhá Clara estreitou os olhos, mas não insistiu. Ela sabia que precisava vigiar a filha de perto — e Baltazar também.
A Tempestade Silenciosa
Baltazar, agora no centro de um triângulo ainda mais perigoso, sentia o peso de suas escolhas. Ele era um líder na senzala, um pai amoroso, um marido dedicado, mas também um amante preso a uma paixão proibida. Seus encontros com Beatriz, cada vez mais intensos, eram como brasas que ameaçavam incendiar tudo. Ele a desejava, mas cada toque, cada sussurro, era um passo mais perto do abismo.
Na senzala, ele continuava a liderar, ensinando os cânticos de Ketu, organizando os escravizados, mantendo viva a chama da resistência. Mas, nas noites escuras, quando se encontrava com Beatriz, ele era apenas um homem, dividido entre dois mundos, entre duas mulheres, entre a liberdade que sonhava e as correntes que o prendiam.
A Fazenda Real de Campo Grande tremia sob a presença de Baltazar, o “Diabo do Olho Azul”. Sua força, sua beleza e seu coração dividido eram uma tempestade silenciosa, pronta para explodir e mudar o destino de todos.
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