A Tríade dos Diabos do Olho Azul - Cap 6 - Baltazar começa a tramar a fuga

 O Fio do Destino

No final de 1815, o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves vivia um momento de tensões e transformações. A corte portuguesa, transferida para o Rio de Janeiro desde 1808, trouxe um novo brilho à cidade, mas nas fazendas do interior, como a Real de Campo Grande, a vida dos escravizados permanecia um ciclo de trabalho brutal e resistência silenciosa. Baltazar, agora com 10 anos de cativeiro, havia se tornado mais do que um líder — ele era uma lenda viva, o “Diabo do Olho Azul”, cuja presença inspirava esperança na senzala e inquietação na casa-grande. Seus olhos azuis, marcados por Oxóssi, brilhavam com uma determinação que nem as correntes podiam apagar.
Aos 30 anos, Baltazar estava no auge de sua força. O trabalho nos campos de cana esculpira ainda mais seu corpo, e sua alma, forjada pela dor e pela luta, tornara-se um farol para os escravizados. Ele organizava reuniões secretas na senzala, traçando planos de fuga com um grupo de confiáveis — homens e mulheres que, como ele, sonhavam com a liberdade. Eles falavam em sussurros, sob a luz de velas improvisadas, mapeando rotas através das matas, rios e morros que cercavam a fazenda. Baltazar sabia que a fuga seria perigosa, talvez impossível, mas a chama de Ketu em seu peito não o deixava desistir.

O Aviso de Nhô Quincas
Numa noite abafada, enquanto o som dos tambores ecoava baixo na senzala, Nhô Quincas chamou Baltazar para uma conversa à parte, sob a sombra de um velho jequitibá. O sábio, agora mais curvado pelo tempo, mas com os olhos ainda cheios de mistério, segurava um colar de contas pretas e brancas, dedicado a Obaluaiê. Ele olhou para Baltazar com uma gravidade que fez o coração do líder acelerar.
— Senta, rapaz — disse Nhô Quincas, a voz rouca como o vento que atravessa as savanas. — Os orixás falaram comigo nos búzios. Tu traz o encanto, Baltazar. Oxóssi e Obaluaiê têm um trato contigo. Teu corpo não será abraçado pela terra quando tu partir.
Baltazar franziu o cenho, confuso, os olhos azuis faiscando sob a luz das estrelas.
— O que isso quer dizer, Nhô? Falar de encanto, de partir... Eu não entendo.
Nhô Quincas ergueu a mão, pedindo paciência.
— Escuta bem. Tuas mulheres, as duas, vão ficar prenhas juntas. Quando as barrigas ficarem pontudas, sinal de meninos no ventre, serão teus herdeiros chegando. Tu vai fugir, eu sei disso, e vai levar as duas meninas, Januária e Inácia. Mas tuas mulheres, Efigênia e a sinhazinha, vão ficar pra dar à luz esses meninos. Oxóssi quer assim. Compreenda e não hesite.
As palavras caíram como uma pedra sobre a cabeça de Baltazar. Ele se levantou, o peito subindo e descendo com a respiração acelerada.
— Herdeiros? Meninos que me sucederão? — perguntou, a voz tremendo de angústia. — E eu não verei meus filhos? Como posso deixar Efigênia, Januária, Inácia... e Beatriz? Nhô, isso é demais! Ser o encanto, trazer o encanto... o que isso significa?
Nhô Quincas colocou a mão no ombro de Baltazar, os olhos cheios de uma sabedoria antiga.
— O encanto é a tua força, rapaz. É o que faz os outros te seguirem, o que faz a senzala sonhar. Mas os orixás não te deram um caminho fácil. Tu vai abrir a trilha, mas teus filhos vão caminhar por ela. Confia em Oxóssi. Ele te guia.
Baltazar virou o rosto, olhando para o horizonte escuro, onde a mata parecia sussurrar segredos. Ele sentia o coração em chamas, dividido entre a promessa de liberdade e o peso de abandonar aqueles que amava. Efigênia, sua companheira de luta, mãe de suas filhas. Beatriz, a sinhazinha que incendiava sua alma com uma paixão proibida. E agora, a possibilidade de filhos homens, herdeiros que ele talvez nunca conhecesse. A visão de Nhô Quincas era um fardo, mas também uma chama que alimentava sua determinação.

As Barrigas Pontudas
Na senzala, Efigênia começava a sentir os primeiros sinais de uma nova gravidez. Os enjoos matinais, a sensibilidade ao cheiro da cana queimada, a leve curva que começava a se formar em seu ventre — tudo apontava para uma nova vida. Ela confidenciou a Baltazar numa noite, enquanto ninava Inácia nos braços.
— Baltazar, acho que vem outro — disse, a voz suave, mas carregada de preocupação. — Uma bênção, mas também um peso. Como vamos criar mais um filho neste inferno?
Baltazar segurou a mão dela, os olhos azuis cheios de ternura, mas também de culpa. Ele sabia da profecia de Nhô Quincas, mas não podia contar a Efigênia sobre Beatriz. Não ainda.
— Vamos proteger nossos filhos, Efigênia — respondeu, a voz firme, mas o coração apertado. — Januária, Inácia, e esse que vem aí... eles vão ser livres, eu juro.
Enquanto isso, na casa-grande, Beatriz também descobria sua gravidez. A sinhazinha, agora com 26 anos, estava radiante, mas aterrorizada. Ela sabia que o filho em seu ventre era de Baltazar, não de Tobias, seu marido bronco que passava mais tempo na corte aprendendo “modos” para suceder Dom Henrique do que ao lado dela. Sinhá Clara, sempre vigilante, percebeu a mudança na filha e agiu rápido para proteger a reputação da família Medeiros.
— Você vai para o casarão na corte, Beatriz — ordenou Sinhá Clara, a voz cortante como uma faca. — Tobias precisa de você lá, e ninguém vai questionar esse filho. Ninguém ousa manchar o nome dos Medeiros.
Beatriz assentiu, os olhos baixos, mas seu coração batia por Baltazar. Ela sabia que o filho que carregava era um pedaço dele, uma prova de seu amor proibido. A partida para o Rio de Janeiro, sob o pretexto de acompanhar Tobias, era a forma de Sinhá Clara abafar qualquer fofoca.

Os Sussurros da Senzala
Na senzala, porém, os segredos não ficavam escondidos por muito tempo. Os escravizados, com seus olhos atentos e ouvidos afiados, começaram a comentar. Uma lavadeira, enquanto batia roupa no rio, sussurrou para outra:
— Dizem que o filho da sinhazinha não é do tal Tobias. É do Baltazar, o Diabo do Olho Azul. Viu como ela olha pra ele? Igual uma tonta apaixonada.
— Efigênia não sabe de nada, coitada — respondeu a outra, balançando a cabeça. — Mas se descobrir, vai ser um inferno. E Baltazar, o que ele tá pensando, se metendo com a sinhazinha?
Os rumores corriam como o vento, mas ninguém ousava confrontar Baltazar diretamente. Ele era respeitado demais, temido até, mesmo por aqueles que o admiravam. Nhá Bernardina, que ainda carregava a culpa do incidente na cabana anos antes, ouvia tudo em silêncio, os olhos tristonhos. Ela sabia que a verdade, quando viesse à tona, seria como uma tempestade.

O Coração em Chamas
Baltazar, enquanto traçava os planos de fuga, sentia o peso das palavras de Nhô Quincas como uma corrente invisível. Ele reunia seus comandados na senzala, traçando rotas que levariam à mata, onde poderiam se esconder e, talvez, alcançar um quilombo. Ele planejava levar Januária e Inácia, suas filhas, como Nhô Quincas previra, mas a ideia de deixar Efigênia e Beatriz, ambas grávidas de seus filhos, o dilacerava.
Numa noite, enquanto observava o céu estrelado, ele murmurou para si mesmo, a voz carregada de angústia.
— Dois herdeiros... dois meninos. E eu não os verei crescer. Oxóssi, por que me dás esse fardo? Como posso abandonar minhas mulheres, minhas filhas, meus filhos que ainda não nasceram?
Ele pensava em Efigênia, sua companheira, cuja força o sustentava, e em Beatriz, cuja paixão o incendiava. Ele não sabia a quem seu coração pertencia, ou se, como em Ketu, poderia dividi-lo entre as duas. Mas o destino, guiado pelos orixás, parecia ter outros planos.
Na casa-grande, Beatriz se preparava para partir para o Rio, tocando o ventre com uma mistura de amor e medo. Na senzala, Efigênia cuidava das filhas, alheia à traição que a cercava. E Baltazar, com o coração em chamas de ansiedade e apreensão, continuava a planejar a fuga, sabendo que cada passo o aproximava de uma liberdade que custaria um preço alto demais.
A Fazenda Real de Campo Grande estava à beira de um precipício. A trama se fechava ao redor de Baltazar, e o “Diabo do Olho Azul” sentia que o destino, como os orixás, não lhe daria trégua.


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