A Tríade dos "Diabos do Olho Azul" - Cap 15 - Dom Murilo revela a verdade para Maurinho.

 A Verdade Revelada

Corte do Rio de Janeiro, Império do Brasil, Março de 1863. A mansão dos Albuquerque, na Lapa, estava envolta em uma quietude tensa, quebrada apenas pelo canto dos pássaros nas mangueiras do pátio. O sobrado, com suas janelas altas e lustres de cristal, era um refúgio de opulência, mas também um palco de segredos que, naquele dia, seriam desvendados. Mauro de Albuquerque, aos 18 anos, era uma figura marcante: pele moreno jambo, cabelos encaracolados caindo sobre os ombros, lábios grossos e olhos azuis intensos, um eco vivo de Baltazar e Jamil, os “Diabos do Olho Azul”. Mas sua alma estava inquieta, atormentada pela dúvida sobre sua origem e pelo perigo representado por Tião Galinha, o “Cão dos Brancos”.
Dom Murilo, o Visconde da Lapa, agora com 48 anos, estava visivelmente fragilizado. Sua saúde, outrora robusta, deteriorava-se rapidamente, com tosses persistentes e uma palidez que preocupava a todos. Ele sabia que seus dias estavam contados e que o segredo sobre Mauro não podia mais ser guardado. Numa tarde chuvosa, com o som das gotas batendo nas janelas, ele chamou Mauro e Helena para a sala de estar, decorada com retratos de antepassados e um piano de cauda.
— Mauro, meu filho — começou Murilo, sentado em uma poltrona, a voz fraca, mas firme. — Eu pressinto que algo poderá me acontecer. É a hora de saberes a verdade. Eu não sou teu pai de fato.
Helena, ao lado, deixou escapar um suspiro assustado, o bordado caindo de suas mãos. Seus olhos verdes, agora marcados por rugas sutis, encheram-se de lágrimas. Ela tentou falar, mas Murilo ergueu a mão, pedindo silêncio.
— Sim, Heleninha — continuou, olhando para a esposa com uma mistura de amor e dor. — Eu sempre soube que teu coração nunca me pertenceu, de fato. E, só Deus sabe o quanto me dói admitir isto, eu não pude te dar filhos, além do Mauro, que sei que é do Jamil.
Mauro, de pé, sentiu o chão sumir sob seus pés. Ele olhou de Murilo para Helena, os olhos azuis arregalados, o coração disparado.
— Jamil? Quem foi Jamil, meu pai? — perguntou, a voz tremendo, quase um sussurro.
Murilo suspirou, apoiando-se na bengala.
— Jamil era um escravo, um mulato de olhos azuis como os teus. Tu és praticamente a réplica deste homem, que sempre fugia da fazenda do meu tio Belchior e a quem eu e tua mãe dávamos guarida.
Helena, incapaz de se conter, levantou-se, as mãos cobrindo o rosto.
— Sim, Maurinho... — confessou, a voz embargada. — Eu casei com Murilo por obrigação... mas amava Jamil. E numa noite, eu não resisti e me entreguei a ele.
Mauro cambaleou, segurando-se no encosto de uma cadeira. A verdade o atingiu como um trovão, despedaçando a identidade que ele conhecia.
— Quer dizer que eu... tenho... sangue de escravo? Que...na realidade, eu sou escravo? — perguntou, a voz falhando, os olhos fixos nos pais.
Murilo e Helena abaixaram a cabeça, o silêncio confirmando o que as palavras não ousavam dizer. Mauro sentiu a raiva e o desespero crescerem em seu peito.
— NÃÃÃÃÃÃÃOOOO! EU NASCI LIVRE! — gritou, o brado ecoando pela sala. Ele correu para a porta, ignorando os chamados de Helena e Murilo, e desceu as escadarias, saindo para as ruas do Rio.

O Desespero nas Ruas
A chuva caía forte, transformando as ruas da Lapa em riachos de lama. Mauro correu sem rumo, a casaca encharcada, os cabelos encaracolados colados ao rosto. Seus olhos azuis, agora marejados, refletiam a tormenta em sua alma. Ele parou na Praça XV, ofegante, olhando para as matas cariocas que se erguiam ao longe. Por um instante, ele jurou ver um vulto — um homem de olhos azuis, com traços semelhantes aos seus, como se o chamasse para um encontro ancestral. Era Jamil? Baltazar? Ou apenas o chamado de Oxóssi, sussurrando em seu sangue?
— Não pode ser... — murmurou, as mãos tremendo. — Eu sou Mauro de Albuquerque... não sou escravo...
Mas a lembrança de Tião Galinha, o “Cão dos Brancos”, espreitando-o com seu sorriso vil, trouxe uma onda de pavor. Mauro percebeu, pela primeira vez, o perigo real que corria. Se ele era filho de um escravo, pertencia, pelas leis cruéis do Império, à Fazenda Real de Santa Cruz, aos seus avós, Dom Belchior e Sinhá Inês.
Desesperado, Mauro voltou à mansão, procurando Edvaldo, seu primo e confidente. Ele encontrou-o no pátio, jogando pedras num tanque de carpas. Edvaldo, aos 18 anos, com seu jeito descontraído, franziu o cenho ao ver o estado de Mauro.
— Valdo, preciso desabafar... com alguém! — disse Mauro, a voz rouca, o rosto pálido.
— Estás pálido, Mauro! O que te atormenta? — perguntou Edvaldo, largando as pedras.
Mauro olhou ao redor, desconfiado até das sombras.
— Tem que ser longe da sala! Tô com medo até do tio Edgar! — sussurrou, puxando Edvaldo para um canto isolado sob uma mangueira.
Lá, com lágrimas estampando sua face, Mauro revelou a verdade cruel, a voz entrecortada.
— Sou escravo, Valdo! Sou filho de escravo e escravo por herança! Pertenço aos meus avós! — disse, limpando o rosto com a manga da casaca. — Não sou nobre... sou filho de Jamil, um escravo que, segundo dizem, era meu rosto e físico descritos! Por isso que... o miserável do Tião Galinha me persegue!
Edvaldo, atônito, segurou os ombros do primo.
— Que cê tá dizendo? Tu és tão nobre quanto qualquer outro desta família! — exclamou, tentando reconfortá-lo. — Mauro, tu és meu irmão, não importa quem foi teu pai!
Mas Mauro balançou a cabeça, os olhos azuis cheios de dor.
— Não, Valdo. Eu sou um Albuquerque só enquanto meu pai... enquanto Dom Murilo viver. Depois disso, Tião e meus avós vão me arrastar pra senzala.
Edvaldo abraçou Mauro, sentindo a angústia do primo como se fosse sua. Ele não tinha respostas, mas jurou, em silêncio, protegê-lo, custasse o que custasse.

A Fragilidade de Murilo
Os meses passaram, e a saúde de Murilo piorou inesperadamente. O que começara como tosses e fraqueza evoluiu para episódios alarmantes. Numa manhã de outubro de 1863, enquanto caminhava pelo jardim da mansão com Mauro, Murilo começou a cambalear, o rosto pálido.
— Pai, o que tá acontecendo? — perguntou Mauro, segurando o braço do visconde.
— Não foi nada... — murmurou Murilo, tentando sorrir, mas sua voz era fraca.
De repente, ele desmaiou, o rosto arroxeado, caindo nos braços de Mauro. O jovem gritou, o desespero tomando conta.
— PAAAAIIIII!!! Não me deixe!!! — berrou, agarrado ao corpo inerte de Murilo, as lágrimas escorrendo.
Eleutério, que estava próximo, correu para ajudar, ajoelhando-se ao lado do visconde. Ele tentou reanimá-lo, batendo suavemente em seu rosto, enquanto Mauro chorava, o coração despedaçado.
— Calma, Maurinho! — disse Eleutério, a voz firme, mas os olhos cheios de medo. — Vamos levá-lo pra dentro!
Serviçal da mansão, Eleutério carregou Murilo para o sobrado, enquanto Mauro seguia, trêmulo, consciente da tempestade que se aproximava. Ele sabia que a morte de Murilo, o único escudo entre ele e a crueldade de Tião Galinha, Dom Belchior e Sinhá Inês, o deixaria vulnerável. Eleutério abraçou Mauro no corredor, tentando conter o desespero do jovem.
— Força, menino — sussurrou, a voz embargada. — Oxóssi tá contigo, como esteve com teu pai.
Mauro, com o rosto enterrado no ombro de Eleutério, chorava em desespero, não só pela possível perda do pai adotivo, mas pela certeza de que sua liberdade, tão duramente conquistada, estava prestes a ser arrancada. A mansão, outrora um refúgio, agora parecia uma armadilha, e as matas cariocas, com seu chamado ancestral, eram o único consolo para sua alma atormentada.

A Sombra da Trama
Enquanto Mauro enfrentava a revelação e a fragilidade de Murilo, a trama de Tião Galinha, Dom Belchior e Sinhá Inês ganhava força na Fazenda Real de Santa Cruz. O “Cão dos Brancos” sabia que a saúde de Murilo era a última barreira para reivindicar Mauro como escravo, e os avós do jovem, movidos por vingança e ganância, aguardavam o momento certo para agir. A corte do Rio de Janeiro, com suas intrigas e opulência, era o palco de uma batalha silenciosa, onde o sangue de Oxóssi, pulsando em Mauro, o preparava para um destino de luta.
A saga do “Diabo do Olho Azul” continuava, com Mauro, o novo Odé, enfrentando a verdade de sua origem e o perigo iminente, enquanto o chamado das matas cariocas ecoava, prometendo um encontro com seu pai, Jamil, e seu avô, Baltazar, no reino de Oxóssi.


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