G.R.E.S. Unidos de Vila Margarida, a escola de samba que perdeu o morro. Cap 1 - A fundação.

    No coração da Vila Margarida, uma favela encravada entre os bairros de Campo Grande e Bangu, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, o ano de 2000 pulsava com sonhos e batuques. O sol de fevereiro escaldava as vielas, mas não abafava a energia de Conceição, uma negra retinta de olhos faiscantes, cuja ginga nas quadras das escolas de samba era lendária. Ela rodopiava com orgulho, como se cada passo seja nos nobres pisos especiais ou seja na terra batida das escolas mais simples fosse uma reverência às suas raízes. Ao seu lado, Sebastião, ou Tião, como todos o chamavam, era o mestre do ritmo. Seus braços, calejados de tanto tocar tamborim, surdo, frigideira, agogô e repique, pareciam conhecer cada segredo da cadência do samba. Ele não só dominava os instrumentos, mas também tinha paciência de mestre, ensinando a garotada da vila a transformar latas velhas e tonéis em música.
   Conceição e Tião eram mais que um casal; eram a alma de um sonho maior. Há anos, enquanto sambavam nas quadras da Mangueira, da Portela ou do Salgueiro, entre outras, eles alimentavam a ideia de dar à Vila Margarida uma escola de samba própria. Não queriam apenas desfilar na Sapucaí; queriam que a comunidade tivesse voz, que os meninos descalços, as lavadeiras, os pedreiros e as benzedeiras da vila pudessem mostrar ao mundo o que era ser Vila Margarida. “A gente não é só pobreza, Tião. A gente é história, é luta, é samba!”, dizia Conceição, com a voz firme, enquanto varria o quintal  de sua casa. A ideia ganhou força numa noite abafada, numa roda de samba improvisada no campinho da vila. O pandeiro de Tião ecoava, e Conceição, com um vestido vermelho que parecia desafiar o calor, cantava um samba-exaltação que falava do morro, do café da manhã com pão amanhecido e do orgulho de ser quem era. Ali, entre risadas e conversas, outros moradores se juntaram ao sonho. Seu Antônio, um velho carpinteiro de mãos calejadas, que construía cadeiras e sonhava com alegorias, disse com um brilho nos olhos: “Se é pra fazer escola, eu faço o carro alegórico com o que tiver. Nem que seja com madeira de caixote!” Dona Benedita, a matriarca da vila, que conhecia cada família e cada história, riu alto: “Mas é claro que vai dar certo! O samba não deixa a gente parar.” Maria Luzia, a costureira da comunidade, que remendava roupas à luz de uma lamparina, se ofereceu para criar as fantasias. “Não tenho máquina de costura chique, mas tenho linha, agulha e vontade. Isso já basta, né?”, disse ela, com um sorriso tímido.
     E então veio Mariozinho, o filho do pastor Ezequiel, um rapaz magrelo de 17 anos que desenhava como ninguém. Ele trazia escondido no bolso um caderno cheio de esboços de fantasias e do único carro alegórico, feitos à lápis com um cuidado que parecia poesia. “Se meu pai descobre, ele me mata. Diz que samba é coisa do diabo”, sussurrou Mariozinho, olhando pros lados, mas com um brilho de rebeldia nos olhos. Tião deu um tapinha no ombro do garoto: “Deixa teu pai comigo, moleque. O samba vai te salvar.” O primeiro passo foi oficializar a escola. Não era fácil. A Associação das Escolas de Samba do Rio exigia documentos, taxas e um reconhecimento que uma comunidade como a Vila Margarida, sem recursos, mal podia sonhar. Mas Tião, com sua lábia de ritmista e sua rede de amigos nas quadras, bateu na porta da Portela, a majestosa escola de Madureira. “A Portela é nossa madrinha, Conceição. Eles vão nos ajudar”, disse ele, confiante, enquanto ajeitava o chapéu de palha. E ajudaram. Com a benção de alguns mestres da Portela, que viam na Vila Margarida o mesmo espírito de resistência que os fundou  muitas décadas antes, a Unidos de Vila Margarida foi inscrita.
   Agora era oficial: a escola existia. Os primeiros ensaios foram caóticos, mas cheios de vida. No campinho, sob a luz de um poste meio torto, Tião comandava a bateria com um apito na boca e um surdo improvisado. “Firmeza no tamborim, Zé! Tu tá sambando ou tá cortando lenha?”, brincava ele com um dos garotos, que ria sem parar. Com a vaquinha no morro, Tião e Zé foram buscar cerca de 100 instrumentos antigos nas quadras da Portela e da Mocidade, que deram a "sucata" para a escola recém formada, ia ficando pronta a bateria.
    Conceição, com sua energia de rainha, organizava as alas. “Menina, não é passinho de baile funk, é samba! Rebola com alma, minha filha!”, dizia ela, enquanto corrigia a postura de uma jovem passista. Maria Luzia costurava à mão as primeiras fantasias, usando retalhos doados e tecidos baratos comprados com o pouco dinheiro que a comunidade juntava. Seu Antônio, com a ajuda de dois meninos, serrava madeira e pregava tábuas para o carro alegórico, que Mariozinho batizou de "O esplendor do Morro", que seria a ilustração do enredo "Um dia de festa no Morro". O carrinho era modesto, feito com madeiras, tintas luminosas e muitos espelhos. O carro tomando forma  já era o orgulho da vila. Os dramas não tardaram. O dinheiro era curto, e as dívidas se acumulavam. Um dia, Conceição chegou em casa com os olhos marejados. “Tião, a associação disse que a gente precisa pagar a taxa de inscrição até o fim do mês. Onde vamos arrumar esse dinheiro?” Tião, que raramente perdia o sorriso, segurou as mãos dela. “A gente vai dar um jeito, meu amor. O samba nunca foi fácil, mas ele sempre vence. Vou na casa do Geraldo Quebra Galho, este bicheiro safado me deve desde os tempos da Mocidade de Vila Nova!". E assim, Geraldo Quebra Galho mesmo com um sorriso amarelo, reconhecia a dívida com Tião e este a usou para pagar a taxa na Associação das Escolas de Samba.
    Enquanto isso, Mariozinho vivia um conflito interno. Seu pai, o pastor Ezequiel, começava a desconfiar das saídas noturnas do filho. “Tu tá metido com essa gente do samba, menino? Isso não é coisa de Deus!”, gritou o pastor numa noite, enquanto Mariozinho abaixava a cabeça, segurando o caderno de desenhos contra o peito. Mas a comunidade não desistia. Dona Benedita organizava rifas e vendia pasteis na feira para arrecadar fundos. As crianças da vila, incentivadas por Tião, batucavam em latas e cantavam os sambas-enredo que Conceição escrevia à noite, à luz de vela. Aos poucos, a Unidos de Vila Margarida tomava forma.
   O carro alegórico de Seu Antônio, ainda rudimentar, começava a parecer uma obra de arte, com flores de acetato cortado  coladas por Maria Luzia e desenhos de Mariozinho pintados nas laterais. A escola era pequena, mas o sonho era imenso. Numa noite de ensaio, com o morro iluminado pelas estrelas e o som da bateria ecoando pelas vielas, Conceição parou no meio do campinho, olhou para a comunidade reunida e disse, com a voz embargada: “Olha só, gente. Isso aqui é nosso. É da Vila Margarida. Ninguém vai tirar isso da gente.” Tião, ao lado, soprou o apito e gritou: “Bora, bateria! Mostra que a Vila tem samba no pé e no coração!” E assim, entre risos, suor e esperança, a pequena escola dava seus primeiros passos, pronta para escrever sua história na Estrada Intendente Magalhães. Em sua estreia, no carnaval de 2001, a Unidos de Vila Margarida não fazia feio e ficava um um honroso quarto lugar, conseguindo a tão sonhada vaga para o Grupo D no ano de 2002.

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