A Tríade dos "Diabos do Olho Azul" - Cap 13 - Mauro de Albuquerque, o herdeiro do legado de Jamil.

 A Herança de Mauro

Rio de Janeiro, Império do Brasil, 1844. O sobrado dos Albuquerque, na corte, era um símbolo de opulência, com suas janelas altas, lustres de cristal e escadarias de mármore. No quarto de Helena, ainda exausta após o parto, o ar estava carregado de emoção. Dom Murilo de Albuquerque, o jovem Visconde da Lapa, sobrinho de Dom Belchior, segurava o recém-nascido Mauro com orgulho, seus olhos brilhando ao contemplar o menino. Mauro, com sua pele jambo e olhos azuis intensos, parecia um milagre, um reflexo distante de Baltazar e Jamil, os “Diabos do Olho Azul”, embora Murilo não soubesse disso.
— Serás Mauro de Albuquerque, o futuro Visconde da Lapa! — proclamou Murilo, erguendo o bebê para que a luz do sol, filtrada pelas cortinas, iluminasse seu rosto. — Estes teus olhos azuis são como uma bênção para esta casa!
Ao seu lado, Edgar, o Barão do Rio Comprido, sorria, segurando seu próprio filho recém-nascido, Edvaldo, um menino forte de olhos castanhos. Os dois irmãos, figuras influentes na corte, celebravam a continuidade de suas linhagens, alheios ao segredo que Mauro carregava.
Helena, deitada na cama, com os cabelos loiros colados ao rosto pelo suor, sorriu fracamente para Cândida e Eleutério, os pretos forros que a serviam. Cândida, a fiel mucama de olhos gentis, ajustava os travesseiros, enquanto Eleutério, alto e sério, permanecia ao lado da porta. Ambos, filho e nora de Nhá Setembrina, sabiam a verdade: Mauro era filho de Jamil, o escravo rebelde que se tornara Odé, não de Murilo. Helena os trouxera da Fazenda Real de Santa Cruz, libertando-os do jugo cruel de Dom Belchior e Sinhá Inês, e eles a serviam com lealdade absoluta, protegendo o segredo de Mauro.
— Ele é lindo, sinhazinha — sussurrou Cândida, tocando a mão de Helena. — Forte como... o pai.
Helena olhou para Cândida, os olhos verdes marejados, e assentiu, grata pelo silêncio. Ela sabia que Mauro carregava o sangue de Jamil e a herança de Oxóssi, um legado que a enchia de orgulho e medo.

O Senso de Justiça de Murilo
Murilo, aos 30 anos, era uma figura incomum na corte imperial. Diferente de muitos fidalgos, ele tinha um senso de justiça que desafiava as normas do Rio de Janeiro escravocrata. Assim que herdou o título de Visconde da Lapa, ele alforriou todos os escravizados de sua casa, tornado-os assalariados, um ato que chocou a sociedade e foi visto como excentricidade pelo irmão, Edgar.
— Tu és louco, Murilo — disse Edgar certa noite, enquanto fumavam charutos na varanda do sobrado. — Alforriar todos? Estás contrariando uma sociedade escravagista?
Murilo soprou a fumaça, os olhos fixos no horizonte.
— Não quero correntes na minha casa, Edgar. Um homem não é dono de outro. Além disso, Cândida e Eleutério são mais leais que qualquer capataz.
Edgar balançou a cabeça, rindo.
— Uma excentricidade, mas te entendo. Só espero que teu filho Mauro não herde essa mania de salvar o mundo.
Murilo sorriu, mas não respondeu. Ele não imaginava que Mauro, crescendo sob sua influência, absorveria esse senso de justiça com uma intensidade que mudaria o curso de sua vida.

A Infância de Mauro e Edvaldo
Os anos passaram, e Mauro cresceu ao lado do primo Edvaldo, os dois inseparáveis como irmãos. Mauro, com seus cabelos encaracolados batendo nos ombros, pele jambo, lábios grossos e olhos azuis penetrantes, era uma figura marcante, com um porte físico incomum para a idade. Edvaldo, esguio, com cabelos castanhos e um sorriso fácil, complementava o primo com sua praticidade. Criados no sobrado dos Albuquerque, eles absorviam os valores de Murilo: justiça, honra, e um desprezo velado pela hipocrisia da corte.
Em 1858, aos 14 anos, Mauro descobriu o abolicionismo. Eleutério, que se tornara seu confidente, levou-o a uma reunião secreta na casa de um advogado liberal, onde intelectuais, pretos forros e brancos progressistas discutiam o fim da escravidão. Mauro, com sua aparência madura, disfarçava-se como um jovem de 17 anos, ouvindo com atenção e anotando ideias em um caderno. Eleutério, sempre vigilante, orgulhava-se do menino.
— Tu tens o fogo e o senso de justiça de Dom Murilo, teu pai, Maurinho — disse Eleutério, enquanto caminhavam de volta ao sobrado. — Mas cuidado. A corte é cheia de cobras.
Mauro sorriu, os olhos azuis brilhando.
— Não tenho medo, Eleutério. Se meu pai lutou, eu também vou lutar.
Edvaldo, curioso com as saídas do primo, logo o acompanhou às reuniões. Apesar de menos idealista, ele admirava a determinação de Mauro e se juntou à causa, trazendo seu pragmatismo para equilibrar o fervor do primo.

O Encontro com Tião Galinha
Em 1858, quando Mauro e Edvaldo estavam prestes a completar 15 anos, suas vidas cruzaram com um fantasma do passado. Tião Galinha, agora com 47 anos, vivia na corte como um predador. O “Cão dos Brancos”, outrora capitão do mato na Fazenda Real de Santa Cruz, aplicava golpes na Rua do Ouvidor, espreitando negros fugidos e sodomitas brancos distraídos, extorquindo-os com seu faro infalível. Ele tinha a parceria do Visconde de Ipanema, um ex-comerciante português que se tornara fidalgo graças às extorsões armadas com Tião. Juntos, eles eram uma praga nas ruas do Rio.
Numa tarde quente, Mauro e Edvaldo caminhavam pela Praça XV, acompanhados por Eleutério, após uma reunião abolicionista. Mauro, com seus cabelos encaracolados soltos, pele jambo reluzente e olhos azuis que pareciam iluminar o caminho, atraía olhares. Edvaldo, ao seu lado, brincava com uma moeda, rindo de uma piada. Foi então que Tião Galinha, encostado numa esquina, os viu.
Seus olhos estreitaram-se, e um sorriso vil curvou seus lábios. Ele reconheceu Mauro imediatamente. A semelhança com Jamil era inegável: os olhos azuis, os lábios grossos, o porte majestoso, faziam de Mauro praticamente uma réplica de Jamil quando adolescente. Tião, que nunca esquecera a humilhação de perder Jamil para a ventania de Iansã, sentiu o ódio reacender.
— Sempre desconfiei — murmurou para si mesmo, os olhos fixos em Mauro. — Desde os tempos de solteira, Sinhazinha Helena arrastava asas pro Diabo do Olho Azul, aquele miserável das matas! Tá aí, o filho de Dom Murilo é a cara e o corpo do desgraçado que escapou do meu chicote!
Eleutério, que caminhava alguns passos atrás, percebeu o olhar de Tião e sentiu um calafrio. Ele conhecia o “Cão dos Brancos” dos tempos da fazenda, sabia de sua crueldade e de sua obsessão por Jamil. Instintivamente, ele gritou:
— Maurinho, Valdo, já pra dentro da carruagem, AGORA!
Mauro e Edvaldo, surpresos, olharam para Eleutério, que nunca erguera a voz com eles. Mauro franziu o cenho.
— O que foi, Eleutério? — perguntou, hesitando.
— Não pergunta, menino! Entra! — insistiu Eleutério, empurrando-os em direção à carruagem estacionada.
Tião Galinha aproveitou o momento para se aproximar, o sorriso vil brilhando sob o chapéu surrado. Ele bloqueou o caminho, os olhos cravados em Mauro.
— Tira os olhos dos garotos, seu ‘Cão dos Brancos’! — rosnou Eleutério, colocando-se entre Tião e os jovens.
Tião riu, um som baixo e provocador.
— Eleutério, nunca falha! Está sempre acobertando Sinhazinha Helena, sempre grato ao Diabo do Olho Azul! — disse, apontando para Mauro. — Sempre confiando que Nhá Setembrina vai interferir junto a Dom Belchior e Sinhá Inês! Dom Murilo pode ter um acidente, e aí Dom Belchior ou Dom Edgar pode herdar tudo, inclusive este bastardinho, filho do Diabo do Olho Azul, disfarçado de nobre!
Mauro, ouvindo as palavras, teve a confusão plantada em seu ser. Ele deu um passo à frente, os olhos azuis faiscando.
— Quem é você pra falar de mim, seu miserável? Me conhece de onde? — perguntou, a voz firme, apesar da juventude.
Eleutério segurou o ombro de Mauro, puxando-o para trás.
— Nem chegue perto de Mauro, seu desgraçado! — gritou, a voz tremendo de raiva. — Eu te mato se encostar um dedo no filho de Jamil!
Tião recuou, surpreso pela ferocidade de Eleutério, mas seu sorriso não desapareceu. Ele apontou para Mauro, como se estivesse marcando-o.
— Pergunte ao teu cocheiro quem ou qual é a tua origem, moreninho atrevido — disse, rindo. — O tempo vai mostrar, bastardinho. A senzala sempre chama os seus.
Ele virou as costas, desaparecendo na multidão, enquanto Eleutério apressava Mauro e Edvaldo para a carruagem. Dentro do veículo, Mauro olhou para Eleutério, o coração disparado.
— Quem era aquele homem? — perguntou. — E por que falou da... minha origem?
Eleutério suspirou, os olhos pesados.
— É uma história longa, Maurinho. Mas esse homem é um demônio. Fica longe dele, por Oxóssi.

A Sombra do Passado
O encontro com Tião Galinha deixou Mauro abalado, mas também curioso. Ele sentia, no fundo da alma, que havia um segredo em sua origem, algo que Eleutério e Cândida protegiam. Edvaldo, mais prático, tentou acalmá-lo.
— Deixa esse velho louco, Mauro — disse, batendo no ombro do primo. — Ele só quer te assustar.
Mas Mauro sabia que havia verdade nas palavras de Tião. Seus olhos azuis, tão diferentes dos de Murilo, eram um sinal de um legado maior, um chamado que ele ainda não compreendia e sequer conhecia. Eleutério, na carruagem, pensava em Jamil, o Odé que se tornara lenda, e em Nhá Setembrina e Séo Bastião, que ainda lutavam na Fazenda Real de Santa Cruz para proteger o povo. Ele sabia que Tião Galinha era uma ameaça, e que o destino de Mauro, como o de Baltazar e Jamil, seria de luta.
A corte do Rio de Janeiro, com seus bailes e intrigas, escondia uma batalha maior. Mauro, com seus quase 15 anos, estava apenas começando a descobrir seu papel como herdeiro de Oxóssi, enquanto Tião Galinha, o “Cão dos Brancos”, via no jovem a chance de vingar sua derrota contra Jamil. A saga do “Diabo do Olho Azul” continuava, agora nas mãos de um novo Odé, cujo destino prometia abalar o Império.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 1

Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 2 ( A esperança de ser um herói )

Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 3 ( A Glória, a Queda e o Luto )