G.R.E.S. Unidos de Vila Margarida, a escola de samba que perdeu o morro. Cap 2 - O carnaval da superação.
Em 2002, a Unidos de Vila Margarida enfrentava seu maior desafio até então: o primeiro desfile pós grupo de avaliação, no quarto
grupo, o Grupo D, ainda na Estrada Intendente Magalhães, em Campinho. A pequena escola, ainda frágil, mas cheia de
garra, se preparava para colorir a avenida com fantasias brancas e adereços verdes, que tremulavam nas mãos dos
componentes como bandeiras de esperança. Cada retalho costurado por Maria Luzia, cada prego martelado por
Seu Antônio, cada batida ensaiada por Tião carregava o peso de um sonho coletivo.
Porém os percalços começaram cedo. Seu Antônio, o carpinteiro de mãos calejadas, descobriu, com o coração
apertado, que o pequeno tripé do ano anterior — uma peça simples, mas essencial para o desfile — havia sido levado por
Geraldo Quebra Galho, o bicheiro da vila. Geraldo, com seu jeito frio e calculista, tinha “devolvido” o tripé ao
barracão da Mocidade de Vila Nova, a escola rica do bairro vizinho, que desfilava com brilho e ostentação já na Marquês de Sapucaí, no imponente Grupo A. “Não dá
pra brincar de samba, Geraldo! Esse tripé faz falta pra esse ano! Pelo amor de Deus, devolve isto pra gente!”, exclamou Seu Antônio, com a voz tremendo de
indignação, enquanto Tião, ao seu lado, cerrava os punhos. Geraldo, com um sorriso torto, jogou um maço de notas
amassadas na direção deles. “Toma uns trocados pra sua escola de pobre. Isso resolve, não é? Dá pra comprar um tripé de outra escola pobre como a de vocês!”, disse, virando as
costas. Tião pegou o dinheiro, mas seus olhos faiscavam. “Isso não é samba, Antônio. Isso é desaforo”, murmurou,
enquanto guardava as notas no bolso, sabendo que cada centavo seria necessário.
Enquanto isso, Mariozinho, o jovem artista da vila, enfrentava suas próprias batalhas. Trabalhando como repositor de mercadorias num supermercado local, ele passava os dias carregando caixas e sonhando com o carnaval. Com
muito esforço, conseguiu convencer Seu Dário, o gerente nordestino de temperamento explosivo, a doar 15 paletes
grossos de madeira, sobras de caixas de papelão, tábuas de compensado e algumas latas de tinta da reforma do mercado e até duas
paleteiras recém reformadas para transportar os improvisados carros alegóricos. “Tu é doido, menino, mas tem coragem. Toma
aí, mas não me envergonha!”, disse Dário, com um sotaque carregado e um meio sorriso. Mariozinho, com a ajuda
de dez meninos da vila — os “alegres”, como chamavam os jovens gays da comunidade, cheios de vida e
criatividade —, transformou aqueles montes de paletes em verdadeiras obras de arte. Com placas de acetado catadas nos barracões das grandes escolas, plásticos coloridos,
lonas remendadas e enfeites natalinos reaproveitados, os dois carros alegóricos ganharam vida. Um representava o
morro, com flores de papel e uma cascata feita de fitas brilhantes; o outro, um tributo à ancestralidade, com
máscaras desenhadas à mão por Mariozinho.
Quando Conceição e Tião viram os carros prontos que contariam a história dos pretos velhos, não seguraram a emoção. “TEM CARNAVAL PRONTO, GENTE!”,
gritou Conceição, batendo palmas no meio do campinho, enquanto os moradores da Vila Margarida vibravam ao
redor. Tião, com o apito pendurado no pescoço, abraçou Mariozinho. “Tu é um artista, moleque. Isso aqui é Vila
Margarida mostrando pro mundo quem a gente é!”. Tião e os ritmistas erguiam Mariozinho e seus amigos gays percorrendo as vielas da Vila Margarida comemorando o carnaval pronto.
A alegria durou pouco para o jovem desenhista e carnavalesco.
O pastor Ezequiel, pai de Mariozinho, soube dos carros alegóricos e das fantasias desenhadas pelo filho. Numa
noite quente, a porta da casa simples do pastor se abriu com um estrondo. “Filho meu não é viado e nem brinca
carnaval!”, berrou Ezequiel, com os olhos injetados de raiva. Mariozinho, acuado, tentou explicar, segurando seu
caderno de desenhos como um escudo. “Pai, é só arte, é o nosso samba, é da vila…” Mas as palavras foram
interrompidas por uma surra. Ezequiel, cego de fúria, jogou as roupas do filho na rua, gritando: “Se quer esse
carnaval do demônio, sai da minha casa! Não vou criar filho viado!” Mariozinho, com o rosto molhado de lágrimas e o corpo doído, pegou
suas coisas do chão, o caderno ainda apertado contra o peito.
Por sorte, ou talvez por destino, Conceição passava pela rua naquele momento, voltando de um ensaio. Ao ver o
garoto encolhido, com as roupas espalhadas, ela não hesitou. “Vem cá, meu filho. Ninguém fica na rua na Vila
Margarida”, disse, com a voz firme, mas cheia de ternura. Ela o levou para o barraco onde morava com Tião, um
espaço pequeno, mas quente de afeto. Tião, ao ver o estado do menino, apenas balançou a cabeça. “Esse pastor tá
precisando ouvir um samba pra amolecer o coração. Tu fica com a gente, Mariozinho. Aqui é teu lugar.”
Naquela noite, enquanto a Vila Margarida dormia, Conceição costurava uma fantasia ao lado de Maria Luzia, e Tião
afinava os instrumentos com os meninos da bateria. Mariozinho, ainda abalado, desenhava no canto do barraco,
sob a luz fraca de uma lâmpada. Ele traçava o contorno de uma fantasia que imaginava para Conceição, uma rainha
com as cores da vila. “Isso aqui é pra você, Dona Conceição. Pra senhora brilhar na Intendente”, disse, com um
sorriso tímido. Conceição olhou o desenho e abraçou o menino. “Tu é nosso orgulho, Mariozinho. E no desfile, a
Vila Margarida vai mostrar que aqui ninguém solta a mão de ninguém.”
A escola, com seusdois carros improvisados, suas fantasias costuradas pelas moças simples do morro e sua bateria reforçada por instrumentos reformados das grandes escolas, estava pronta. O
desfile na Intendente Magalhães seria o palco para a Unidos de Vila Margarida provar que o samba não precisava
de dinheiro, mas de alma. E, naquela comunidade, alma era o que não faltava. A Unidos de Vila Margarida conquistava a simpatia do povo que a aplaudia nas pequenas arquibancadas da Estrada Intendente Magalhães. "Conseguimos, Tião! Passamos sem medo de sermos felizes!", exclamava Conceição, a alma da Unidos de Vila Margarida.
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