A Tríade dos "Diabos do Olho Azul" - Cap 4 - Baltazar se destaca cada vez mais.

 A Ascensão de Baltazar

O tempo passou como o vento, varrendo as dores e reforçando as raízes da resistência na Fazenda Real de Campo Grande. Em 1810, cinco anos após sua chegada, Baltazar, outrora Oju Odebomani, príncipe de Ketu, havia se transformado em uma figura lendária entre os escravizados. Seu porte majestoso, já imponente, aprimorara-se com o trabalho árduo nos campos de cana e a determinação que ardia em seu peito. Seus músculos, esculpidos pelo sol e pelo facão, pareciam forjados por Ogum, e seus olhos azuis, agora ainda mais penetrantes, carregavam a sabedoria de quem sobrevivera à travessia do oceano e à brutalidade da senzala. Ele não era mais apenas um homem — para muitos, era a própria encarnação de Oxóssi, o orixá da caça e da fartura.
Até Bento Gavião, o temido capitão do mato, tremia diante dele. Certa manhã, enquanto observava Baltazar liderar um grupo de escravizados no corte da cana, Bento murmurou para si mesmo, o chicote frouxo na mão.
— A cada dia eu temo mais esse Diabo do Olho Azul! — disse, esfregando um amuleto pendurado no pescoço. — Peço a Exu que nunca tenha que domá-lo! A cada ano que passa, o bicho se torna mais assustador. Ele é o próprio Oxóssi encarnado!
Nhá Bernardina, que passava carregando um cesto de roupas lavadas, ouviu e deu uma risada rouca.
— Bento, cê ainda tá com essa ladainha? — zombou, apoiando o cesto no quadril. — Esse homem já te ganhou no olhar faz tempo. Guarda esse chicote, que ele não vai te salvar se Baltazar resolver te encarar de verdade.
Bento bufou, mas desviou o olhar, incapaz de retrucar. Ele sabia que Baltazar era diferente — um líder nato, cuja presença fazia os outros se erguerem, mesmo sob o peso das correntes.

O Guardião da Memória
Baltazar não apenas dominara a língua do opressor, falando português com uma fluência que impressionava até os feitores, mas também mantinha viva a memória de Ketu. Nas noites escuras da senzala, sob o som dos grilos e o crepitar das fogueiras, ele reunia os escravizados e cantava em yorubá, ensinando o dialeto de seus ancestrais. Ele contava histórias de reis, de orixás, de batalhas ganhas nas savanas douradas. As crianças, de olhos brilhando, ouviam enrapturadas, enquanto os mais velhos sentiam o coração aquecer, como se, por um momento, fossem livres novamente.
Nhô Quincas, o sábio chefe espiritual da senzala, era quem mais se orgulhava de Baltazar. Ele via no jovem não apenas um guerreiro, mas um elo com os orixás. Durante as festas de tambores, quando a senzala se transformava em um terreiro secreto, Nhô Quincas preparava o chão com pembas e oferendas, invocando os ancestrais. E quando Oxóssi descia, era como se o próprio orixá escolhesse Baltazar como seu cavalo. Ele dançava com uma exuberância que parecia desafiar as correntes da fazenda — uma dança de caça, com passos precisos como flechas, e de guerra, com gestos que evocavam a força de um rei em batalha. Os tambores vibravam, as vozes cantavam, e a senzala, por algumas horas, era Ketu.
— Esse menino é abençoado — dizia Nhô Quincas, os olhos marejados, enquanto Baltazar dançava. — Oxóssi o marcou. Ele é mais do que carne e osso.
Nhô Quincas também passava seus ensinamentos ao filho, Sebastião, um jovem de 16 anos com a mesma pele marcada pelo sol e a curiosidade ardente do pai. Sebastião aprendia rápido, memorizando os cânticos, os jogos de adivinhação com búzios e os segredos dos orixás. Ele admirava Baltazar como se fosse um herói mitológico.
— Ele não pertence a este mundo, pai — dizia Sebastião, observando Baltazar ensinar uma canção às crianças. — Tenho certeza. Ele é como Oxóssi encarnado.
Mas a alegria de Nhô Quincas e Sebastião foi interrompida por uma crueldade da fazenda. — Dom Henrique, sempre em busca de lucro, vendeu Sebastião à Fazenda Real de Santa Cruz, separando-o do pai. A notícia caiu como um raio na senzala. Nhô Quincas, com sua sabedoria, tentou manter a compostura, mas seus olhos, sempre tão firmes, traíam a dor. Baltazar e Nhá Bernardina o confortaram, temendo que o velho pegasse banzo, a tristeza mortal que consumia tantos escravizados.
— Fique forte, Nhô — disse Baltazar, segurando o ombro do sábio. — Sebastião leva sua sabedoria com ele. Ele vai manter os orixás vivos, como você faz aqui.
Nhá Bernardina, com sua voz firme, acrescentou:
— Os orixás não abandonam os seus, Quincas. Você sabe disso. Levanta essa cabeça, que a senzala precisa de ti.
Em algumas semanas, Nhô Quincas encontrou consolo nos rituais e na missão de proteger os outros escravizados. Sebastião, na Fazenda Real de Santa Cruz, espalhava a lenda de Baltazar, o “Diabo do Olho Azul”, contando histórias de sua força, sua dança, sua alma indomável. A fama de Baltazar crescia, mesmo além dos limites da fazenda.

O Triângulo de Paixões e Frustrações
Na senzala, Efigênia exultava com o brilho de Baltazar. Casados por ordem de Dom Henrique, eles haviam construído uma conexão profunda, forjada no sofrimento compartilhado e no amor genuíno. Em 1810, Efigênia deu à luz Januária, uma menina de pele jambo e olhos castanhos claros, como os da mãe. Baltazar, ao segurar a filha pela primeira vez, sentiu uma mistura de alegria e angústia. Ele beijou a testa da criança, murmurando uma bênção em yorubá.
— Você será livre, minha filha — sussurrou, os olhos azuis brilhando com determinação. — Mesmo que eu tenha que lutar até meu último suspiro.
Efigênia sorriu, mas seus olhos carregavam a sombra do medo. Ela sabia que a beleza de Januária, como a deles, seria vista como mercadoria por Dom Henrique.
Na casa-grande, Sinhazinha Beatriz, agora com 21 anos, vivia um tormento silencioso. Sua paixão por Baltazar não diminuíra com o tempo — pelo contrário, crescera, alimentada pela indiferença dele. Ela o observava dos campos, da varanda, sempre que podia, notando cada detalhe: a forma como ele liderava os outros, a dignidade em seus passos, o brilho sobrenatural de seus olhos. Mas Baltazar, fiel a Efigênia e focado em sua luta, mal notava os olhares da sinhazinha. Para ele, Beatriz era parte do mundo dos opressores, um mundo que ele desafiava com cada batida de seu coração.
A indiferença de Baltazar frustrava Beatriz, e sua melancolia não passou despercebida por Sinhá Clara. Certa noite, enquanto a família jantava na sala de jantar iluminada por candelabros, Sinhá Clara bateu na mesa, fazendo os talheres tilintarem.
— Henrique, chega disso! — exclamou, os olhos faiscando. — Beatriz não permanecerá solteira até o fim do próximo mês! Traga qualquer branco da corte para esta casa, nem que seja um mero reprodutor, mas essa menina não fica solteira!
Dom Henrique, acostumado à dureza da esposa, assentiu, limpando a boca com um guardanapo.
— Já pensei nisso, Clara. Tobias, filho de comerciantes portugueses, é uma boa escolha. Não é nobre, mas é honesto, belo e vai servir.
Beatriz, sentada à mesa, sentiu o coração apertar. Ela olhou para o prato intocado, as mãos tremendo.
— Tobias? — murmurou, a voz quase inaudível. — Ele não é...
— Ele é o que temos, Beatriz — cortou Sinhá Clara, sem piedade. — E você vai aceitá-lo. Não vou permitir que essa sua obsessão por um escravo destrua nossa família.
Beatriz engoliu as lágrimas, mas sua mente estava em Baltazar. Tobias, que ela conhecera brevemente na corte, era um jovem de cabelos loiros e traços agradáveis, mas bronco, sem a profundidade ou a força que ela via em Baltazar. Ele não era páreo para o homem que dominava seu coração indomável, um amor que queimava como uma chama proibida.

O Fogo que Não se Apaga
Na senzala, Baltazar continuava a crescer como líder. Ele organizava os escravizados, ensinando-os a proteger uns aos outros, a guardar forças para o dia em que a liberdade pudesse ser conquistada. Ele falava de Ketu, de resistência, de orixás, e sua voz era como um tambor que ecoava na alma de todos.
Nhá Bernardina, agora mais velha, mas com os olhos tão vivos quanto antes, observava tudo com orgulho e preocupação.
— Tu tá construindo algo grande, menino — disse ela, enquanto remendava uma camisa na porta da senzala. — Mas cuidado. Quanto mais alto tu voa, mais eles vão querer te derrubar.
Baltazar sorriu, um sorriso que misturava confiança e melancolia.
— Eu sei, Nhá. Mas não vim pra me esconder. Vim pra lutar. Por mim, por Efigênia, por Januária, por todos nós.
A Fazenda Real de Campo Grande estava em ebulição. Baltazar, com sua liderança, sua beleza e sua alma indomável, era uma força que desafiava a ordem da casa-grande e da senzala. O triângulo entre ele, Efigênia e Beatriz crescia em tensão, enquanto a lenda do “Diabo do Olho Azul” se espalhava, carregando a promessa de uma tempestade que mudaria tudo.

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