A Tríade dos "Diabos de Olho Azul" - Cap 3 - A chegada à fazenda e o começo das tensões.

 A Chegada à Fazenda Real de Campo Grande

O sol poente tingia de laranja as vastas plantações da Fazenda Real de Campo Grande, onde o cheiro doce da cana-de-açúcar se misturava ao suor dos escravizados e à umidade da terra. A casa-grande, imponente com suas paredes brancas e varandas de madeira, dominava a paisagem, enquanto as senzalas, alinhadas em fileiras de adobe, pareciam murchar sob o peso da opressão. Era para esse mundo de contrastes que Oju Odebomani, agora rebatizado como Baltazar, foi levado em outubro de 1805, acorrentado na carroça de Dom Henrique de Bragança.
Ao descer da carroça, Baltazar foi recebido por olhares curiosos e murmúrios. Os trapos imundos que cobriam seu corpo foram arrancados sem cerimônia por um feitor, jogados em uma pilha de lixo como se sua identidade passada pudesse ser descartada tão facilmente. Ele foi levado a um tanque de pedra, onde duas escravizadas, sob ordens, o lavaram com água fria e sabão áspero. A água escorria por sua pele negra, revelando novamente o brilho de sua musculatura esculpida, como se Oxóssi, o orixá que o abençoara, ainda o protegesse. Mesmo humilhado, Baltazar mantinha a cabeça erguida, os olhos azuis faiscando com uma mistura de revolta e dignidade.
Vestiram-no com as roupas de escravo: uma calça de linho barato, puída nas costuras, e uma camisa de algodão grosseiro que, por ser pequena demais, vivia aberta, expondo seu tórax largo e definido. O efeito foi imediato. As escravizadas que o observavam trocaram olhares, algumas cobrindo a boca para esconder sorrisos tímidos. As empregadas livres, que varriam a varanda da casa-grande, pararam o trabalho, sussurrando entre si.
— Meu Deus, que homem! — murmurou uma delas, abanando-se com a mão. — Parece saído de um conto!
Na varanda, Sinhazinha Beatriz, de apenas 16 anos, filha de Dom Henrique, observava a cena com os olhos arregalados. Seus cabelos castanhos estavam presos em um coque, e o vestido de musselina branca realçava sua juventude. Mas foram os olhos de Baltazar que a prenderam — azuis como o céu em dia claro, profundos como o mar que ele atravessara. Ela suspirou, o coração disparado, sem perceber que sua mãe, Sinhá Clara de Medeiros e Bragança, a observava da janela.
— Beatriz! — chamou Sinhá Clara, a voz cortante como uma lâmina. — Comporte-se! Escravo feio ou lindo continua sendo escravo. Volte para seus bordados.
Beatriz corou, abaixando a cabeça, mas seus olhos ainda buscaram Baltazar por um instante antes de se retirar. Sinhá Clara franziu o cenho, seu rosto severo marcado pela responsabilidade de manter a ordem na fazenda que herdara de sua família, os Medeiros, pioneiros naquelas terras no século XVIII. Ela sabia que a presença daquele homem, com sua beleza e porte, traria problemas.

O Batismo Forçado
Na manhã seguinte, Baltazar foi levado ao pequeno oratório da fazenda, onde o frei beneditino Eusébio, um homem baixo e jovial com uma batina surrada, aguardava para o batismo. O oratório cheirava a incenso e cera queimada, e uma imagem de São Benedito observava do altar. Baltazar, ainda relutante, foi empurrado para a frente, seus olhos azuis fixos no frei com uma mistura de desconfiança e desdém.
— Ajoelhe-se, meu filho — disse o frei, segurando uma bacia de água benta. — Hoje você ganha um novo nome, um nome cristão. Baltazar, em homenagem ao Santo Rei Mago.
Baltazar permaneceu de pé, o corpo tenso. Ele não entendia todas as palavras, mas o peso daquele ritual era claro: estavam tentando apagar quem ele era. O frei, sem se abalar, sorriu e prosseguiu, aspergindo a água benta sobre sua cabeça.
— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...
Baltazar chacoalhou a cabeça instintivamente, como um leão sacudindo a juba, molhando a bata do frei. Eusébio riu, limpando o rosto com a manga.
— Ora, ora, rapaz! Não é tão ruim assim! Baltazar é um bom nome, você vai se acostumar.
Mas Baltazar não sorriu. O nome soava como uma corrente nova, mais um grilhão para sua alma. Ele murmurou algo em sua língua natal, um dialeto yorubá, e o frei, sem entender, apenas balançou a cabeça, achando graça. Para Baltazar, porém, aquele momento era uma ferida profunda. Ele era Oju Odebomani, príncipe de Ketu, não um “Baltazar” qualquer.

A Sabedoria de Nhá Bernardina
Na senzala, Baltazar foi apresentado a Nhá Bernardina, uma mulher idosa e enrugada, mas com olhos vivos que pareciam enxergar além da carne. Ela era a sábia da senzala, respeitada por todos, uma “preta de consideração” que servira a fazenda desde os tempos de Sinhá Isaura, a falecida mãe de Sinhá Clara. Nhá Bernardina conhecia os segredos da casa-grande — os amores proibidos, as traições sussurradas, as dores escondidas — e agora tinha a tarefa de ensinar Baltazar a sobreviver naquele mundo.
— Sente aqui, menino — disse ela, apontando um banco de madeira na sombra de uma árvore. Sua voz era firme, mas carregada de uma ternura ríspida. — Tu vai aprender a língua do patrão, e vai aprender rápido. Não me olha com esse espanto! Eu quero te ajudar.
Baltazar, ainda resistente, cruzou os braços, os olhos azuis faiscando.
— Eu... não... quero... isso — respondeu, as palavras em português saindo truncadas, misturadas ao seu dialeto. — Eu sou... príncipe. Não escravo.
Nhá Bernardina suspirou, batendo o pé no chão.
— Escuta bem, menino. Tu foi príncipe lá na tua terra, e isso ninguém tira de ti. Mas aqui? Aqui tu é Baltazar, e se não aprender a jogar o jogo deles, vai acabar no tronco ou pior. Aprende a língua, aprende a fingir, e guarda essa força aí dentro pra quando for a hora certa. Entendeu?
Baltazar baixou o olhar, a mandíbula travada. Ele sabia que ela estava certa, mas cada palavra era um golpe em seu orgulho. Finalmente, ele assentiu, a voz quase inaudível.
— A senhora... está... certa...
Nhá Bernardina sorriu, satisfeita.
— Bom. Agora repete comigo: “Meu nome é Baltazar.”
Ele repetiu, com relutância, e assim começaram as lições. Nhá Bernardina era paciente, mas exigente, corrigindo cada sílaba, ensinando não apenas a língua, mas também as regras não ditas da fazenda: quem temer, quem evitar, como sobreviver.

O Confronto com Bento Gavião
Nos campos de cana, Baltazar rapidamente se destacou. Sua força era prodigiosa: ele cortava a cana com golpes precisos, carregava feixes que outros mal conseguiam levantar, e trabalhava sem queixas, mesmo sob o sol escaldante. Mas sua presença também intimidava. Os feitores, acostumados a dominar com chicotes e gritos, hesitavam diante dele. Seus olhos azuis, que pareciam enxergar suas almas, os desconcertavam.
Todos, exceto Bento Gavião, o capitão do mato. Bento, um preto forro de pele escura e olhos estreitos, era temido na fazenda. Ele caçava escravos fugidos com a ferocidade de um predador, e sua lealdade a Dom Henrique era inquestionável. Quando viu Baltazar pela primeira vez, seus olhares se cruzaram como lâminas.
— Esse demônio preto... — murmurou Bento, segurando o chicote enrolado na mão. — Esses olhos azuis só podem vir de um pacto sinistro. Ele não terá sossego nesta fazenda. O primeiro vacilo, e ele vai pro tronco. Exu que me proteja desse preto indomável!
Nhá Bernardina, que passava por ali carregando um cesto de roupas, riu alto, zombando.
— Tá de bravata de novo, Bento? Cê sabe que só olhar não dobra esse aí! Vai precisar de mais que teu chicote pra botar medo nele.
Bento lançou um olhar fulminante para ela, mas não retrucou. Ele sabia que Nhá Bernardina era protegida por Sinhá Clara, e cruzar com ela seria arriscar sua posição. Mas seus olhos voltaram para Baltazar, prometendo uma guerra silenciosa.
Baltazar, por sua vez, sustentava o olhar de Bento sem piscar. Ele não entendia todas as palavras, mas o desafio era claro. Ele bufou, o peito subindo, e voltou ao trabalho, cada golpe de facão carregado de uma raiva contida.

O Triângulo de Paixões
Enquanto Baltazar abalava a ordem da fazenda, dois corações se voltavam para ele, cada um carregando seu próprio peso. Sinhazinha Beatriz, da casa-grande, não conseguia tirar os olhos do escravizado. Ela o observava da varanda, fingindo ler um livro, mas seus pensamentos estavam nos olhos azuis, na força contida, na aura de nobreza que ele exalava mesmo em roupas humildes. Seu coração jovem e inexperiente se apaixonava, sonhando com um amor impossível que desafiava as leis da fazenda e da sociedade.
— Ele é diferente, mamãe — sussurrou Beatriz certa noite, enquanto Sinhá Clara penteava seus cabelos. — Ele não é como os outros.
Sinhá Clara parou, os olhos endurecendo.
— Cale essa boca, Beatriz. Ele é um escravo, e você é uma Medeiros. Não vou deixar você manchar o nome da nossa família por causa de um capricho. Fique longe dele, ou juro que mando açoitá-lo só pra te ensinar uma lição.
Beatriz engoliu em seco, mas o brilho em seus olhos dizia que ela não obedeceria tão facilmente.
Na senzala, outra mulher também se encantava por Baltazar. Efigênia, uma escravizada de pele jambo e olhos castanhos claros, era conhecida por sua beleza rara e sua graça silenciosa. Filha bastarda de um feitor e uma escravizada, ela carregava as marcas de uma vida dividida entre dois mundos. Quando viu Baltazar, algo nela despertou. Ele a tratava com gentileza, trocando olhares carinhosos que aqueciam seu coração endurecido pela senzala. Baltazar, por sua vez, via nela uma companheira, alguém que entendia o peso das correntes, mesmo que não fossem visíveis.
Dom Henrique, sempre calculista, percebeu a conexão entre os dois e viu uma oportunidade. Durante um jantar na casa-grande, enquanto Sinhá Clara servia o vinho, ele anunciou sua decisão.
— O tal Baltazar e a Efigênia vão se casar — disse, cortando um pedaço de carne. — São ambos belos, fortes. Seus filhos serão escravos valiosos, e eu pretendo lucrar com isso.
Sinhá Clara arqueou uma sobrancelha, mas não discordou. Beatriz, porém, deixou o garfo cair, o rosto pálido. Ela saiu da mesa sem dizer uma palavra, o coração partido.

A Tempestade que Se Forma
Baltazar, agora no centro de um triângulo de paixões e intrigas, sentia o peso de sua presença na fazenda. Ele era admirado, temido, desejado, mas também vigiado. Bento Gavião o encarava como um inimigo, Sinhá Clara como uma ameaça, Dom Henrique como um investimento, Beatriz como um sonho, e Efigênia como uma esperança. Ele mesmo lutava para manter sua identidade, aprendendo a língua dos opressores enquanto guardava os cânticos de Ketu em seu coração.
Nhá Bernardina, observando tudo, sabia que a fazenda estava à beira de uma tempestade.
— Cuidado, menino — disse ela certa noite, enquanto ensinava Baltazar novas palavras. — Tu é como um raio. Ilumina, mas também queima. Escolhe bem teus passos, porque aqui, todo mundo quer um pedaço de ti.
Baltazar assentiu, os olhos azuis brilhando na penumbra.
— Eu sei, Nhá. Mas eu não vim pra ser devorado. Vim pra lutar.
A Fazenda Real de Campo Grande nunca seria a mesma. Baltazar, com sua força, sua beleza e sua alma indomável, era uma força da natureza, e o destino ainda tinha muito a escrever para ele.

Fim da narrativa até este ponto.

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