A Tríade dos "Diabos do Olho Azul" - Cap 12 - Jamil se despede do mundo material e vira encanto. Mauro toma o seu lugar.

 O Martírio no Tronco

Fazenda Real de Santa Cruz, 1843. O ar estava pesado, carregado de tensão e lamento, enquanto o sol poente tingia os cafezais de vermelho, como se pressentisse a tragédia. Jamil, aos 27 anos, o “Diabo do Olho Azul”, filho de Baltazar, foi arrastado acorrentado do Cais do Valongo de volta à fazenda por Tião Galinha, o capitão do mato. Sua pele moreno jambo, marcada pelo ferro em brasas com o brasão dos Albuquerque, sangrava nas costas, e seus cabelos encaracolados, úmidos de suor, colavam-se ao rosto. Mas seus olhos azuis, herança de um Odé, ainda faiscavam com uma chama indomável, mesmo diante do destino cruel que o aguardava.
No pátio da fazenda, o tronco de madeira, manchado pelo sangue de incontáveis escravizados, erguia-se como um altar de sofrimento. Jamil foi amarrado, os pulsos e tornozelos presos por cordas ásperas, o torso exposto à multidão que se formava. A escravaria, reunida à força, pranteava em silêncio, os olhos marejados pela perda iminente de seu líder. Mulheres seguravam as mãos umas das outras, homens cerravam os punhos, e crianças, confusas, escondiam-se atrás das saias das mães. Jamil era mais do que um homem — era o símbolo da resistência, o filho de Baltazar, o rei que reacendera a esperança de liberdade.
Sinhá Inês, com seu vestido de seda preta e o leque fechado na mão, aproximou-se do tronco com um sorriso cruel. Ela acariciou as costas marcadas de Jamil, os dedos traçando a cicatriz ainda fresca do ferro, e puxou seus cabelos encaracolados, forçando-o a erguer o rosto. Com um gesto de desprezo, cuspiu em sua face.
— Vais apanhar até morrer, Diabo do Olho Azul! — sibilou, a voz carregada de veneno. — Achaste que podias desafiar os Albuquerque?
Jamil sustentou o olhar dela, os olhos azuis brilhando como faróis, mesmo com o cuspe escorrendo pelo rosto. Ele não respondeu, mas seu silêncio era um grito de desafio. Sinhá Inês, irritada pela resistência, virou-se para Tião Galinha, que segurava o chicote mais pesado, um instrumento de couro trançado que parecia feito para arrancar a vida.
— Até a vida escapar! — sentenciou, entregando o chicote a Tião. — Não menos!
Tião recebeu o chicote com prazer, o sorriso vil iluminando seu rosto. Ele estalou o couro no ar, saboreando o momento.
— Finalmente, Diabo do Olho Azul — murmurou, baixo, só para Jamil ouvir. — Tu és meu troféu.
Jamil, com o corpo tenso contra o tronco, fechou os olhos por um instante, murmurando em yorubá uma prece a Oxóssi.
— Oxóssi, meu orixá, prepara-me para a dor, receba meu espírito — sussurrou. — Que minha luta não morra comigo.

O Chamado da Senzala
Sinhá Inês, percebendo a relutância da escravaria em assistir ao castigo, virou-se para Nhá Setembrina e Séo Bastião, que estavam à margem do pátio, os rostos marcados pela angústia.
— Que vocês dois estão esperando? — rosnou, o leque apontando para eles. — Chamem seu povo para apreciarem a queda do vosso rei, do Diabo do Olho Azul!
Nhá Setembrina, com os olhos baixos, sentiu o coração apertar. Séo Bastião, ao seu lado, cerrou os punhos, a sabedoria de Nhô Quincas pulsando em suas veias. Eles trocaram um olhar, sabendo que não tinham escolha. Cabisbaixos, começaram a chamar os escravizados, suas vozes pesadas de dor.
— Venham, irmãos... — disse Séo Bastião, a voz rouca. — Vamos estar com Jamil, em seu último momento.
— Ele precisa de nós, mesmo agora — acrescentou Nhá Setembrina, enxugando uma lágrima.
A escravaria se reuniu, formando um semicírculo ao redor do tronco. Eles olhavam para Jamil, amarrado e ferido, mas ainda majestoso, como um rei enfrentando o cadafalso. Algumas mulheres começaram a murmurar cânticos baixos em yorubá, invocando Oxóssi e Iansã, pedindo proteção para seu líder.

O Nascimento de Mauro
No mesmo instante, no sobrado dos Albuquerque, na corte do Rio de Janeiro, Sinhazinha Helena enfrentava as dores do parto. Cercada por mucamas e pela preta forra Cândida, 20 anos, nora de Nhá Setembrina, Helena segurava as bordas da cama, o suor colando os cabelos loiros ao rosto. Cada contração parecia sincronizada com os golpes que Jamil recebia na fazenda, como se uma vida estivesse findando para que outra pudesse chegar.
— Força, sinhazinha! — dizia Cândida, segurando sua mão. — Deixa o menino vir! Ele quer nascer!
Helena, com os olhos verdes cheios de lágrimas, pensava em Jamil. Ela sabia que o filho em seu ventre era dele, um menino que carregaria o sangue de Oxóssi, o legado do “Diabo do Olho Azul”. Entre as dores, ela murmurava:
— Jamil... nosso filho será forte... como tu.
Dom Murilinho, o Visconde da Lapa, aguardava no corredor, ansioso por um herdeiro que não era seu. Ele esfregava as mãos, alheio à verdade, sonhando com a continuidade de sua linhagem.

O Último Brado
Na fazenda, o chicote de Tião Galinha cortava o ar, rasgando as costas de Jamil. Cada golpe era um trovão, arrancando gemidos abafados do líder, mas ele não gritava, apenas tremia com a dor. A escravaria pranteava, algumas mulheres caindo de joelhos, outras cobrindo os olhos. Séo Bastião, com lágrimas escorrendo, segurava a mão de Nhá Setembrina, murmurando uma prece a Oxóssi.
Jamil, com o corpo tremendo de dor, sentia a vida escapando. Mas, no fundo de sua alma, ele ouviu o chamado de Oxóssi, como uma brisa que soprasse das matas. Na chicotada mais violenta e dolorosa, ele ergueu a cabeça, os olhos azuis saltando luzes como faróis, iluminando o pátio escurecido pelo crepúsculo. Com um esforço sobrenatural, ele soltou o grito final, um brado que ecoou como um trovão:
KIIIIIIIIIIIIUUUUUUUU!!!
No mesmo instante, uma ventania fortíssima varreu o pátio, levantando poeira, derrubando chapéus e fazendo as árvores dobrarem. Tião Galinha, pego de surpresa, caiu sentado, o chicote escapando de suas mãos. Ele olhou para Jamil, os olhos arregalados, presenciando o sobrenatural.
— Maldito! — gritou, a voz tremendo. — Iansã veio em seu socorro e o entregou pra Oxóssi! Exu deixou que minha presa, meu troféu escapasse!
Jamil, envolto pela ventania, parecia se dissolver. Seu corpo, ainda amarrado ao tronco, foi arrebatado por uma força invisível, como se as cordas não pudessem mais contê-lo. Ele foi levado em direção à mata, desaparecendo entre as árvores, onde a luz azulada de seus olhos se fundiu com a escuridão. A escravaria, atônita, explodiu em gritos de júbilo, louvando Oxóssi e Iansã pelo milagre.
— Ele vive! — exclamou uma mulher, erguendo os braços. — Oxóssi levou nosso rei!
— Jamil é Odé, como Baltazar! — gritou outra, dançando em êxtase.
Sinhá Inês, pálida, recuou, o leque caindo de suas mãos. Ela olhou para Tião, que ainda estava sentado, atordoado, e cuspiu no chão.
— Sobrenatural! — exclamou. — É a primeira vez que vejo um preto ser levado pela natureza em fúria! Tião Galinha saía derrotado. Ele executou Jamil no tronco, mas não pegou o corpo do escravo como troféu macabro. Oxóssi e Iansã levaram seu filho para a mata, onde Jamil se reunira finalmente com seu pai, Baltazar.

O Nascimento de Mauro
Na corte, no exato momento do brado de Jamil, Helena deu à luz. A cabeça do menino surgiu, e Cândida, com lágrimas nos olhos, o trouxe ao mundo. Mauro de Albuquerque nasceu com olhos azuis ainda mais intensos que os do avô Baltazar e do pai Jamil, como se carregasse a luz de Oxóssi em seu olhar. Seu choro forte ecoou pelo sobrado, anunciando a chegada de um novo Odé.
— É um menino, sinhazinha! — exclamou Cândida, envolvendo o bebê em um pano. — Forte como o pai!
Helena, exausta, sorriu, tocando o rosto do filho.
— Mauro... meu filho de Jamil... — sussurrou, antes de desmaiar de cansaço.
Murilinho, ao entrar no quarto, viu o menino e franziu o cenho, intrigado pelos olhos azuis, mas sua vaidade o cegou para a verdade. Ele ergueu o bebê, proclamando:
— Meu herdeiro! Um Albuquerque de sangue nobre! Cândida confidenciava a Eleutério, o filho de Nhá Setembrina e seu marido: — Esse menino não é de Dom Murilinho! Ele tem os olhos de Jamil!

A Celebração na Senzala
Na Fazenda Real de Santa Cruz, após a ventania violenta, ventos suaves começaram a balançar as folhas nas matas, como se Oxóssi e Baltazar estivessem recebendo Jamil, o novo Odé. A escravaria, livre da vigilância dos feitores, reuniu-se na senzala, transformando o barracão num terreiro sagrado. Séo Bastião, com pembas e alguidares de milho cozido e lascas de côco, liderou os cânticos, enquanto Nhá Setembrina batia palmas, as lágrimas misturando-se ao sorriso.
— Louvado seja Oxóssi! Louvores a Iansã — gritou Séo Bastião, erguendo um colar de contas verdes. — Eles levaram Jamil, nosso rei, pra se tornar Odé!
— Louvada seja Iansã, que trouxe a ventania! — respondeu a escravaria, em coro.
Os tambores ecoaram pela madrugada, os cânticos yorubás subindo ao céu, celebrando o milagre de Jamil. Eles sabiam que sua luta não morrera — Mauro, o filho de Jamil, nascido naquela noite, carregaria o legado de Baltazar e Jamil, um novo Odé para as matas cariocas.

O Legado de Jamil
Jamil, como Baltazar, tornou-se uma lenda viva, um Odé de Oxóssi que protegeria seu povo das matas. Sua partida, dolorosa como Séo Bastião previra, foi um sacrifício que reacendeu a chama da liberdade. Tião Galinha, derrotado pelo sobrenatural, carregaria a vergonha de ter perdido sua presa. Sinhá Inês, humilhada, intensificaria sua crueldade, mas a senzala, fortalecida pelo milagre, nunca esqueceria Jamil.
Mauro, com seus olhos azuis intensos, cresceria sob o peso de um legado que ainda não conhecia, mas que Oxóssi guiaria. A saga do “Diabo do Olho Azul” continuava, agora nas mãos de um novo herdeiro, numa luta que atravessaria gerações.

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