A Tríade dos "Diabos de Olho Azul" - Cap 2 - O príncipe africano é rebatizado e chega até a Fazenda Real de Campo Grande

 O Cais do Valongo

O navio negreiro atracou no cais do Valongo, no Rio de Janeiro, em outubro de 1805, sob um céu pesado de nuvens que pareciam carregar o peso do sofrimento humano. O ar era denso, misturando o sal do mar com o cheiro acre de suor, medo e desespero. A capital da Colônia Portuguesa do Brasil pulsava com vida: o som das carroças rangendo, os gritos dos mercadores, o tilintar das moedas e o murmúrio constante dos escravizados sendo arrastados para o mercado. O porto era um caos de cores e vozes, mas, para os que desembarcavam acorrentados, era o início de um pesadelo em terra estranha.
Oju Odebomani, o outrora príncipe de Ketu, emergiu do porão do navio com os pulsos e tornozelos presos por correntes que tilintavam a cada passo. Sua túnica, já rasgada e imunda, mal cobria seu corpo musculoso, mas sua presença era impossível de ignorar. Alto, com ombros largos e a pele negra reluzindo mesmo sob a sujeira, ele parecia uma estátua esculpida por deuses. Seus olhos azuis, porém, eram o que paralisava todos que o viam — um brilho sobrenatural, ao mesmo tempo desafiador e melancólico, que parecia enxergar além da multidão. No cais, os mercadores pararam, os capatazes hesitaram, e até os transeuntes viraram o pescoço para observar.
— Meu Deus, olhem isso! — exclamou um mercador português, esfregando as mãos calejadas. — Um negro de olhos azuis! Esse vai valer uma fortuna!
— Parece um rei africano — murmurou outro, mais baixo, com um misto de admiração e cobiça. — Mas aqui, ele não é nada além de mercadoria.
Oju, apesar da exaustão e da dor, mantinha a cabeça erguida. Ele ouvia as vozes, sentia os olhares, mas sua mente estava em outro lugar: nas savanas de Ketu, nos tambores de seu povo, na promessa que fizera a si mesmo no porão do navio. Ele não era mais um príncipe, mas também não seria apenas um escravo. Ele lutaria, de alguma forma, por sua gente.

A Fuga Frustrada
Enquanto os escravizados eram alinhados no cais, sob o sol abrasador, Oju observava o ambiente. O Rio de Janeiro era um mundo alienígena: ruas estreitas de paralelepípedos, sobrados coloridos com varandas de ferro, carroças puxadas por mulas e uma multidão de rostos — brancos, negros, mulatos — que se moviam em um ritmo frenético. Ele notou a distração momentânea dos capatazes, ocupados discutindo preços com um comprador. Seu coração acelerou. Era agora ou nunca.
Com um movimento rápido, Oju empurrou o homem à sua frente, fazendo as correntes tilintarem, e disparou em direção a uma viela estreita que se abria entre os sobrados. Gritos explodiram atrás dele.
— O negro fugiu! Peguem ele! — berrou um capataz, sacando o chicote.
Oju correu, os pés descalços batendo contra o chão irregular, o peito ardendo com a adrenalina. Ele não conhecia aquelas ruas, não entendia a língua que ecoava ao seu redor, mas o instinto de liberdade o guiava. Ele desviou de uma carroça, pulou sobre uma pilha de caixas e mergulhou em outra viela, onde o cheiro de peixe podre e lixo o envolveu. Por um breve momento, ele sentiu a esperança pulsar em suas veias. Talvez pudesse escapar, encontrar um refúgio, reunir forças para lutar.
Mas a cidade era um labirinto traiçoeiro. A viela terminou em um beco sem saída, cercado por muros altos e barris apodrecidos. Antes que pudesse dar meia-volta, três capatazes surgiram, ofegantes, com chicotes e varas nas mãos. O líder, um homem corpulento com uma cicatriz no queixo, sorriu com desprezo.
— Achou que ia escapar, seu demônio? — rosnou, desenrolando o chicote. — Aqui, preto não foge. Aqui, preto apanha.
Oju se posicionou, os músculos tensos, os olhos azuis faiscando com desafio. Ele bufou, o peito subindo e descendo, como um leão encurralado. Ele poderia lutar, talvez derrubar um ou dois, mas as correntes limitavam seus movimentos, e ele sabia que outros viriam. Antes que pudesse decidir, o chicote cortou o ar.
A dor foi como um raio. O couro rasgou sua pele nas costas, deixando um rastro de sangue. Oju caiu sobre um joelho, um grunhido escapando de seus lábios, mas não gritou. Ele não daria a eles essa satisfação. Ele ergueu a cabeça lentamente, lançando um olhar mais feroz ao capataz, um olhar que dizia: “Você pode me ferir, mas nunca me quebrará.”
O capataz recuou um passo, o rosto pálido, como se tivesse visto um espírito.
— Levem ele de volta! — ordenou, a voz trêmula. — E não me façam encarar esse demônio de olhos azuis de novo!
Os outros capatazes o arrastaram de volta ao cais, onde a multidão agora o observava com uma mistura de curiosidade e medo. Oju, mesmo com as correntes e a dor latejante nas costas, caminhava com a postura de um rei. Ele sabia, agora, o que o aguardava naquela terra: chicotes, humilhação, sofrimento. Mas também sabia que sua força interior, sua promessa, era maior do que qualquer corrente.

O Mercado de Escravos
No centro do mercado do Valongo, uma plataforma de madeira servia como palco para o leilão. O pregoeiro, um homem magro com uma voz estridente, subiu ao tablado, batendo um martelo para chamar a atenção da multidão de compradores — fazendeiros, comerciantes, fidalgos, todos ávidos por novas “mercadorias”. Oju foi empurrado para a plataforma, suas correntes tilintando, o sangue seco da chicotada ainda visível em suas costas. A multidão murmurou, impressionada.
— Senhores, preparem suas bolsas! — gritou o pregoeiro, apontando para Oju com um floreio. — Eis um escravo raro! Alto, atlético, forte como um touro e com olhos azuis que parecem saídos de um conto! Um verdadeiro ‘deus de ébano’! Aproveitem a rara oferta!
Os compradores se aproximaram, examinando Oju como se fosse um cavalo de raça. Eles comentavam sua musculatura, sua altura, mas eram os olhos azuis que dominavam as conversas.
— Nunca vi nada assim — disse um fazendeiro, coçando a barba. — Parece um demônio... ou um rei.
— Demônio ou rei, ele vai trabalhar até cair — retrucou outro, rindo.
Entre a multidão, um homem se destacava. Dom Henrique de Bragança, parente distante do Príncipe Regente Dom João VI, observava Oju com um interesse diferente. Vestido com um casaco de veludo azul e um tricórnio adornado com plumas, o fidalgo tinha um olhar frio, calculista. Ele se aproximou do pregoeiro, ignorando os outros compradores.
— Quanto por ele? — perguntou, a voz grave, os olhos fixos nos de Oju.
Oju sustentou o olhar, seus olhos azuis penetrantes e inquietantes, como se pudesse ver a alma do fidalgo. Dom Henrique sentiu um arrepio, mas disfarçou com um sorriso arrogante. “Domarei este homem,” pensou. “Ele será meu troféu.”
O pregoeiro esfregou as mãos, sentindo o cheiro de um bom negócio.
— 500 mil réis, meu senhor! Nenhum tostão a menos, e muitos tostões a mais!
A multidão exclamou, chocada com o preço exorbitante. Mas Dom Henrique nem piscou. Ele tirou uma bolsa de moedas do cinto e a jogou aos pés do pregoeiro.
— Feito. Ele é meu.
O pregoeiro sorriu, batendo o martelo.
— Vendido ao nobre Dom Henrique de Bragança!
Enquanto Oju era levado da plataforma, acorrentado e sob os olhares da multidão, o capataz que o chicotara suspirou aliviado, murmurando para si mesmo:
— Sorte a minha não encarar esse homem de novo. Esse preto vai dar dor de cabeça a quem o comprar.

Rumo à Fazenda Real
Oju foi colocado em uma carroça, ainda acorrentado, e levado pelas ruas do Rio em direção à Fazenda Real de Campo Grande, propriedade de Dom Henrique. A cidade foi ficando para trás, dando lugar a estradas de terra ladeadas por matas densas e campos de cana. O sol se punha, tingindo o céu de vermelho, como se o próprio Oxóssi, o orixá que abençoara Oju, observasse sua jornada.
Na carroça, Oju permanecia em silêncio, mas sua mente fervilhava. Ele sentia a dor da chicotada, o peso das correntes, a humilhação de ser tratado como mercadoria. Mas, acima de tudo, sentia a chama de sua promessa queimando em seu peito. Ele não baixava a cabeça, nem mesmo quando os capatazes o empurravam ou zombavam. Ele era Oju Odebomani, filho de Ketu, e carregava a força de seu povo.
A Fazenda Real de Campo Grande, com suas vastas plantações, senzalas e a imponente casa-grande, nunca seria a mesma após a chegada daquele homem de olhos azuis. Dom Henrique acreditava que poderia domá-lo, mas Oju sabia que sua luta estava apenas começando. Ele não era mais um príncipe, mas também não seria apenas um escravo. Ele seria uma força, uma tempestade que abalaria aquela terra estranha.

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