A Tríade dos Diabos do Olho Azul - Cap 7 - A fuga para a liberdade e o chamado de Oxóssi.
A Fuga para a Liberdade
Meados de 1816, Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. A Fazenda Real de Campo Grande tremia sob a tensão de um segredo que crescia como uma tempestade. Baltazar, o “Diabo do Olho Azul”, sentia que o momento de sua fuga estava próximo. A barriga de Efigênia, agora pontuda como Nhô Quincas previra, sinalizava a chegada iminente de seu filho, um herdeiro que chutava com força, como se já soubesse que nasceria em um mundo de luta. Na corte, Beatriz, grávida do filho de Baltazar, partira para o casarão dos Bragança, sob o pretexto de acompanhar Tobias, mas na verdade para proteger a reputação da família Medeiros. A profecia de Nhô Quincas pairava sobre Baltazar como uma sombra: dois herdeiros, dois meninos, e um destino que o arrancaria de suas mulheres e filhos.
Baltazar, com o coração em chamas, reunia seus comandados na senzala, traçando os últimos detalhes da fuga. Ele contava com a sabedoria de Nhô Quincas e a astúcia de Nhá Bernardina, que, apesar da culpa que ainda carregava pelo incidente com Beatriz, era leal à causa da liberdade. Juntos, eles planejaram uma oferenda a Exu, o orixá dos caminhos, para abrir as trilhas da fuga. Na véspera do dia escolhido, sob a luz fraca de uma fogueira, Baltazar e Nhô Quincas espalharam cachaça e farofa pelos caminhos da fazenda, murmurando cânticos em yorubá.
— Exu, abre as portas! — sussurrou Baltazar, derramando a cachaça no chão. — Guia teu povo pra liberdade!
Nhá Bernardina, com a ajuda das mucamas, cuidou de Bento Gavião, o capitão do mato. As mulheres, com sorrisos maliciosos e o aroma do vinho roubado da casa-grande, envolveram Bento em uma dança sedutora. Ele, sempre suscetível à malemolência das pretas, bebeu até cair em um sono profundo, ronçando sob uma árvore.
— Esse aí não atrapalha ninguém hoje — riu Nhá Bernardina, mas seus olhos carregavam preocupação. — Vai, Baltazar. Que Oxóssi te guarde.
O Brado de Oxóssi
Na madrugada, quando o silêncio era quebrado apenas pelo coaxar dos sapos, Baltazar reuniu os 25 corajosos que fugiriam com ele. Entre eles estavam homens fortes, mulheres determinadas e suas filhas, Januária e Inácia, que ele carregaria nos braços. Ele olhou para cada um, seus olhos azuis brilhando como safiras na escuridão.
— Hoje, somos livres! — disse, a voz firme, mas carregada de emoção. — Que Ketu nos guie, que Oxóssi nos proteja!
Ele ergueu a cabeça e soltou um grito que ecoou pela fazenda, um brado que parecia vir das profundezas de sua alma:
— Kiuuuuuuuuuuuu!!!
Era o chamado de Oxóssi, o grito de guerra de um caçador, clamando a escravaria para a liberdade. Os 25 fugiram, correndo pelas trilhas escuras, guiados pela oferenda a Exu e pela determinação de Baltazar. Mas, na senzala, Nhô Quincas e Nhá Bernardina decidiram ficar. Baltazar, segurando as mãos do sábio, perguntou com angústia:
— Nhô Quincas, por que ficas? Tu és minha força, meu guia!
Nhô Quincas sorriu, os olhos brilhando com a sabedoria dos orixás.
— Teu filho, o de Efigênia, vai precisar de mim, rapaz. E o outro, o sinhozinho da corte... ele também. O escravo e o sinhozinho trocarão de lugares, Oxóssi quer assim. Vai, Baltazar. Tua missão é outra.
Baltazar, intrigado e com o coração apertado, não compreendia plenamente, mas confiava no velho. Ele se virou para Nhá Bernardina, que enxugava uma lágrima.
— E tu, Nhá? Por que não vens?
Ela balançou a cabeça, a voz firme apesar da emoção.
— Minha alma tá atrelada a essa fazenda, menino. Jurei fidelidade à finada Sinhá Isaura, e agora à Sinhá Clara. Mas também fico pelo sinhozinho que vem da corte. Ele vai precisar de amparo, mesmo que de longe, se o Tobias quiser vingança. Vai, Baltazar. Leva teu povo.
Baltazar abraçou os dois, sentindo o peso da despedida. Ele correu até Efigênia, que o esperava na porta da senzala, a barriga pesada, os olhos marejados. Ele caiu de joelhos diante dela, acariciando o ventre onde seu filho crescia.
— Cuide bem dele, Efigênia — disse, a voz embargada. — É meu herdeiro. Fale de mim pra ele. Diga que o pai lutou por ele, por vocês.
Efigênia segurou o rosto de Baltazar, as lágrimas escorrendo.
— Eu te amo, Baltazar. Sempre vou amar. Vai, e que Oxóssi te guarde.
Ele beijou a testa dela, depois pegou Januária e Inácia nos braços, suas filhas pequenas que mal entendiam o que acontecia. Com um último olhar para a senzala, ele correu, liderando seu povo para a Serra do Mendanha.
O Quilombo da Liberdade do Rei
Após uma fuga exaustiva, guiados pela mata cerrada e pelo instinto de Baltazar, os 25 chegaram à Serra do Mendanha, onde Maria Conga, uma mulher forte e líder das mulheres, os esperava. Ela havia fugido um ano antes com 10 pioneiros, preparando o terreno para o que agora seria o Quilombo da Liberdade do Rei. Maria Conga, com sua pele escura brilhando ao sol e um colar de contas de Iemanjá no pescoço, abriu os braços para Baltazar.
— Tu veio, rei! — exclamou, a voz cheia de orgulho. — Nosso povo tá seguro agora.
Baltazar a abraçou, sentindo a força daquela mulher que era sua companheira de luta.
— Maria Conga, de teu ventre surgirão heróis pro nosso povo — disse, os olhos azuis fixos nos dela. — Tu serás lembrada por muitos. Não sei quanto tempo me resta! Cuide de nosso povo!
Maria Conga sorriu, guardando as palavras como um tesouro. O grupo começou a erguer o quilombo, construindo cabanas, plantando roças e organizando defesas. Por um breve momento, Baltazar sentiu a liberdade pulsar em seu peito, como se Ketu tivesse renascido naquelas montanhas.
A Transfiguração de Baltazar
Mas, no dia seguinte, algo mudou. Baltazar acordou com uma sensação estranha, como se suas pernas fossem feitas de ar, seu corpo mais leve do que nunca. Ele olhou para o horizonte, onde a mata parecia chamá-lo com uma força irresistível. Ele se virou para Ozias, seu parceiro de empreitada, um homem de confiança que lutara ao seu lado desde o início.
— Ozias, preciso ir pra mata — disse, a voz distante, os olhos azuis brilhando com uma luz sobrenatural. — Meu corpo tá mudando. Ela me chama como um imã. Sinto o chamado de Oxóssi e a cobrança de Obaluaiê. Pega as meninas, Januária e Inácia, e cuida delas. Por nossa amizade, faz delas tuas filhas.
Ozias, assustado, tentou protestar.
— Baltazar, o que tá dizendo? Tu é nosso líder! Não pode nos deixar!
Mas Baltazar apenas sorriu, um sorriso que misturava paz e mistério.
— Minha missão aqui tá cumprida, irmão. Outro virá.
Ele caminhou para a mata, seus passos cada vez mais leves, como se a terra não o segurasse mais. Ozias o seguiu à distância, e então viu o impossível: uma luz intensa e azulada envolveu Baltazar, como se o céu tivesse descido para abraçá-lo. Seu corpo pareceu se dissolver, tornando-se etéreo, uma sombra que se fundiu com a floresta. Ozias caiu de joelhos, as lágrimas escorrendo, e saudou Oxóssi com um grito rouco:
— Arolê! Okê Arô! Teu filho agora é tua parte também, um Odé se vai, pra que outro venha! É tua vontade!
Baltazar deixou a vida terrena, tornando-se uma lenda viva, um novo Odé, um espírito de caça e liberdade que protegeria o Quilombo da Liberdade do Rei.
O Nascimento dos Herdeiros
No mesmo momento em que Baltazar se encantava, seus filhos nasciam. Na senzala da Fazenda Real de Campo Grande, Efigênia deu à luz Zacarias, um menino de pele morena e olhos castanhos, cujo choro rouco ecoou como um trovão. Nhô Quincas, ao segurar o bebê, vaticinou com a voz grave:
— Este é o filho que Obaluaiê cobrou de Oxóssi. Ele terá um destino grande, mas diferente.
Na corte, no sobrado dos Bragança, Beatriz deu à luz Jamil, um menino moreno jambo com olhos azuis que denunciavam sua verdadeira paternidade. Seus lábios fortes e grossos eram um eco de Baltazar. Nhô Quincas, mesmo tão longe, sentiu o nascimento nos búzios e profetizou:
— O novo Odé nasceu na casa grande, mas ele vai pra senzala conforme o tempo passar e será um líder para nossa gente. É a vontade de Oxóssi.
Os Destinos Divergentes
O destino dos filhos de Baltazar tomou rumos opostos. Jamil, criado como filho de Tobias, despertava ciúmes no padrasto, que nunca aceitou plenamente o menino de olhos azuis. Beatriz, enfraquecida após dar à luz dois outros filhos a Tobias, morreu de tuberculose em 1820, deixando Jamil vulnerável. Aos 4 anos, Tobias, movido por rancor e desconfiança, vendeu Jamil como escravo, condenando-o à senzala, onde a profecia de Nhô Quincas começaria a se cumprir. A saga de Jamil, o novo Odé, estava apenas começando.
Zacarias, por outro lado, teve uma sorte inversa. Sinhá Clara, furiosa ao descobrir a gravidez de Efigênia e suspeitando da ligação de Baltazar com Beatriz, vendeu Efigênia e Zacarias como vingança. Mas o destino interveio. Dom Duarte de Almeida, um fidalgo português viúvo, apaixonou-se por Efigênia e a alforriou, desposando-a. Em 1822, eles partiram para Lisboa, levando Zacarias, que cresceu como parte da nobreza portuguesa. Ele estudou na lendária Universidade de Coimbra, tornando-se um respeitável professor, para o orgulho de Efigênia, que via no filho a realização da promessa de Baltazar.
O Legado de Baltazar
A saga de Baltazar terminou na mata, onde ele se tornou um Odé, um espírito de Oxóssi que viveria para sempre nas histórias do Quilombo da Liberdade do Rei. Mas sua lenda continuou, carregada por Jamil, que enfrentaria as dores da senzala, e por Zacarias, que levaria o sangue de Ketu aos salões da Europa. O “Diabo do Olho Azul” havia cumprido sua missão, deixando um legado de resistência, amor e liberdade que ecoaria por gerações.
A Fazenda Real de Campo Grande, a senzala, a corte e o quilombo nunca esqueceriam Baltazar. Ele era o encanto, como Nhô Quincas dissera, e sua luz azulada brilharia para sempre na memória de seu povo.
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