A Tríade dos "Diabos do Olho Azul" - Cap 9 - A chegada de Jamil à Fazenda Real de Santa Cruz, o novo palco de batalhas.
A Chegada à Fazenda Real de Santa Cruz
A carroça rangia pelas estradas de terra, levantando poeira sob o sol abrasador de 1835, enquanto Jamil e Tião Galinha, acorrentados, eram levados do Cais do Valongo para a Fazenda Real de Santa Cruz. A paisagem mudava do caos urbano do Rio de Janeiro para vastas plantações de cana, onde o verde intenso contrastava com o sofrimento invisível dos escravizados. Jamil, com seus olhos azuis fixos no horizonte, sentia o peso de sua nova prisão, mas também a chama de resistência que herdara de Baltazar, o lendário “Diabo do Olho Azul”. Tião, ao seu lado, mantinha um sorriso vil, os olhos astutos já calculando como conquistar a confiança dos novos senhores.
Ao chegarem à fazenda, a visão da casa-grande, com suas paredes brancas e varandas de madeira, dominava a paisagem, enquanto as senzalas, alinhadas em fileiras de adobe, pareciam encolher-se na sombra. O furor causado por Jamil foi imediato, ecoando a chegada de seu pai na Fazenda Real de Campo Grande 30 anos antes. As escravizadas, que lavavam roupas no rio, e as mucamas, que varriam o pátio, pararam o trabalho, os olhos arregalados diante do jovem de 19 anos. Sua pele moreno jambo reluzia ao sol, os cabelos encaracolados caíam sobre os ombros, e os lábios grossos de guerreiro contrastavam com os olhos azuis, que pareciam carregar um mistério ancestral.
— Meu Deus, que menino lindo! — exclamou uma mucama, abanando-se com a mão. — Parece um príncipe!
— É o próprio orixá encarnado — sussurrou uma escravizada mais velha, benzendo-se com um gesto discreto. — Esses olhos azuis... não são coisa deste mundo.
Jamil, mesmo acorrentado, caminhava com a cabeça erguida, seu porte majestoso desafiando a humilhação. Tião, ao seu lado, observava a cena com um misto de inveja e desdém, seu sorriso vil escondendo a irritação por ser ofuscado.
O Encontro com Sinhá Inês
No pátio da casa-grande, Dom Belchior de Albuquerque, o senhor da fazenda, aguardava com sua esposa, Sinhá Inês, a verdadeira herdeira das terras. Inês era uma mulher de 40 anos, com traços severos e olhos que pareciam perfurar a alma. Até Dom Belchior, conhecido por sua autoridade, hesitava diante do temperamento de ferro da esposa. Vestida com um vestido de seda preta e um leque na mão, ela examinou os novos escravizados com um olhar crítico.
Quando seus olhos pousaram em Jamil, ela arqueou uma sobrancelha, intrigada. Ela se aproximou, o leque parando de se mover, e, num gesto arrogante, segurou o queixo de Jamil, forçando-o a abrir a boca para examinar sua dentição, como se ele fosse um cavalo no mercado.
— Dentes fortes, corpo sadio — murmurou, a voz fria. — Um escravo com porte de sinhozinho. Interessante.
Jamil sentiu a humilhação queimar em seu peito. Ele fixou os olhos azuis em Sinhá Inês, um olhar tão intenso e desafiador que fez a mulher recuar um passo, surpresa. Sem hesitar, ela ergueu a mão e deu um tapa sonoro em seu rosto, revirando sua cabeça.
— Baixa esses olhos, preto! — rosnou, a voz carregada de autoridade. — Aqui, tu não é nada além de mercadoria.
Jamil cerrou os punhos, o rosto ardendo, mas sustentou o olhar por um instante a mais, deixando claro que sua alma não se dobraria. Tião, ao lado, deixou escapar uma risada baixa, o sorriso vil brilhando. Sinhá Inês virou-se para ele, os olhos fuzilantes.
— Quer levar o teu também, preto risonho? — perguntou, a voz cortante como uma lâmina.
Tião abaixou a cabeça imediatamente, mas seu sorriso não desapareceu. Ele sentiu, instintivamente, que Sinhá Inês o notara, e isso era um bom sinal. “Ela gostou de mim,” pensou. “Se jogar certo, posso ganhar a confiança dela.”
Dom Belchior, que observava tudo em silêncio, sorriu levemente, satisfeito com a aquisição de Jamil e intrigado com a astúcia de Tião. Ele sabia que ambos seriam úteis, cada um à sua maneira.
Nhá Setembrina e a Reeducação
Os dois escravizados foram entregues a Nhá Setembrina, a jovem ama de Sinhá Inês, uma mulher de 30 anos com pele negra reluzente e olhos atentos que pareciam enxergar além das palavras. Setembrina era a ponte entre a casa-grande e a senzala, uma figura respeitada por sua lealdade à Sinhá Inês, a quem confidenciava segredos inimagináveis, e por sua sabedoria na convivência com os escravizados. Ela foi incumbida de “reeducar” Jamil e Tião, ensinando-lhes as regras da fazenda e moldando-os às expectativas dos senhores.
Na primeira noite, na senzala, Setembrina sentou-se com os dois, um lampião lançando sombras em seu rosto.
— Escutem bem — disse, a voz firme, mas com um toque de empatia. — Aqui, na Fazenda Real de Santa Cruz, a vida é dura, mas dá pra sobreviver se vocês forem espertos. Jamil, tu tem um fogo nos olhos que eu conheço. É liderança, mas também é perigo. Domina esse fogo, ou ele te queima. E tu, Sebastião...
— Tião — corrigiu ele, com um sorriso charmoso. — Me chamam de Tião.
Setembrina estreitou os olhos, percebendo o jogo dele.
— Tião, então. Teu olhar é traiçoeiro. Tu quer subir, mas cuidado pra não cair. A senzala não perdoa quem vira as costas pro povo.
Jamil bufou, cruzando os braços.
— Ele já tá com um pé na feitoria, Nhá. Não perde tempo, o Tião Galinha.
Tião riu, mas seus olhos faiscaram com raiva.
— E tu, príncipe, já tá sonhando com a casa-grande, né? Cuidado, que sinhô não gosta de escravo metido.
Setembrina bateu na mesa, silenciando os dois.
— Chega! Vocês dois vão trabalhar juntos, quer queiram ou não. Jamil, tu vai pra casa-grande, servir como garçom. Tua beleza e porte te levaram pra lá, mas não te engana: é só por uns anos, porque essa tua rebeldia não vai durar. E tu, Tião, vai pro campo, mas já vi que tu tá de olho nas regalias. Escolham bem os caminhos de vocês.
A Ascensão de Tião Galinha
Tião Galinha não perdeu tempo. Com sua astúcia herdada de Bento Gavião, ele começou a conquistar a confiança de Dom Belchior. Ele delatava pequenos atos de desobediência na senzala, sempre com um sorriso subserviente, e, em segredo, indicava escravizadas belas para as traições conjugais do sinhô, que mantinha amantes às escondidas de Sinhá Inês. Em poucas semanas, Tião foi agraciado com regalias: uma ração extra de comida, uma camisa nova, e, eventualmente, permissão para dormir na feitoria, longe da senzala. Isso o isolou dos outros escravizados, que o viam com desconfiança.
— Olha lá o Tião Galinha — murmurou uma escravizada, enquanto moía milho. — Já tá com cheiro de feitor. Traidor.
Tião ignorava os comentários, focado em sua ascensão. Ele sabia que, com paciência, poderia se tornar um capataz, talvez até um homem de confiança de Dom Belchior. Mas Jamil, com sua presença magnética, era um obstáculo em seu caminho.
Jamil na Casa-Grande
Jamil, por sua vez, foi remanejado para a casa-grande, onde servia como garçom, carregando bandejas de prata com vinho e iguarias para os senhores e seus convidados. Sua beleza e porte atraíam olhares, mas também escrutínio. Sinhá Inês o vigiava de perto, desconfiada de sua rebeldia, enquanto Dom Belchior o via como um troféu, um “escravo com porte de sinhozinho” que reforçava sua autoridade.
Na senzala, porém, Jamil encontrava um aliado inesperado: Sebastião, agora chamado de Séo Bastião, o filho de Nhô Quincas. Aos 41 anos, Séo Bastião era um homem amadurecido, com a sabedoria espiritual herdada do pai e uma reputação de líder na senzala. Quando viu Jamil pela primeira vez, seus olhos se arregalaram.
— É ele! — exclamou, puxando Jamil para um canto na senzala. — Tu é filho de Baltazar com Sinhazinha Beatriz! É o próprio pai, só com a pele mais clara e os cabelos encaracolados de mulato. Descobriram quem era teu pai e te tornaram escravo!
Jamil franziu o cenho, o coração disparado.
— Meu pai? Baltazar? O Diabo do Olho Azul? — perguntou, a voz tremendo de emoção. — Como tu sabe disso, Séo Bastião?
Séo Bastião sorriu, os olhos brilhando com a memória.
— Eu cresci conhecendo a bravura do teu pai na Fazenda Real de Campo Grande, meu pai, Nhô Quincas, foi amigo dele. Ele era um Odé, um líder, um rei. Teus olhos azuis não mentem, Jamil. Tu carrega o sangue dele, e a luta dele.
Jamil sentiu um misto de orgulho e dor. Ele sempre soubera que era diferente, mas agora tinha um nome para seu legado: Baltazar. Ele apertou a mão de Séo Bastião, selando uma aliança que mudaria o curso de sua vida na fazenda.
O Triângulo Perigoso
Enquanto Jamil se adaptava à casa-grande, outro coração começava a bater por ele. Helena, a filha de 16 anos de Dom Belchior e Sinhá Inês, era uma jovem de cabelos loiros e olhos verdes, com uma curiosidade que desafiava as regras rígidas da mãe. Ela notava Jamil durante os jantares, admirando sua força silenciosa e os olhos azuis que pareciam esconder um mundo. Quando eram enviados juntos para levar recados a outras fazendas, caminhando por trilhas sob o sol, eles trocavam olhares cúmplices. Helena ria de suas histórias, e Jamil, apesar de sua cautela, sentia-se atraído pela leveza dela.
— Tu já viu o mar, Jamil? — perguntou Helena, certa durante uma caminhada, o vestido branco esvoaçante.
— Vi, no cais, quando me venderam — respondeu ele, a voz grave, mas com um toque de melancolia. — É bonito, mas também é cruel. Leva e traz, como a vida.
Helena olhou para ele, os olhos brilhando.
— Um dia, quero ver o mar com alguém como tu. Alguém que entende.
Jamil desviou o olhar, sabendo que aquele flerte era uma armadilha. Nhá Setembrina, que os acompanhava à distância, balançou a cabeça, murmurando para si mesma:
— Isto não vai acabar bem. Escravo com sinhazinha não dá certo.
Enquanto isso, Tião Galinha, que ouvira os relatos de Séo Bastião sobre Jamil e Baltazar, começou a chamar Jamil de “Diabo do Olho Azul” com um tom de zombaria, mas também de temor. Ele via em Jamil uma ameaça não apenas à sua ascensão, mas à ordem da fazenda.
— Olha lá o Diabo do Olho Azul — disse Tião, rindo, enquanto passava por Jamil na feitoria. — Achando que é rei, mas vai acabar no chicote. Insolente como o pai, o que desapareceu na mata.
Jamil parou, os olhos faiscando, mas segurou a raiva.
— Guarda tua língua, Tião Galinha — respondeu, baixo, mas firme. — Ou ela te leva pro buraco.
A Tempestade que Se Forma
A Fazenda Real de Santa Cruz estava em ebulição. Jamil, com sua beleza, rebeldia e legado de Baltazar, era um furor que abalava a casa-grande e a senzala. Tião Galinha, com sua astúcia e ambição, traçava seu caminho para o poder, mesmo que isso significasse trair seu povo. Séo Bastião via em Jamil a continuação da luta de Baltazar, enquanto Helena, com seu coração jovem, acendia uma chama perigosa. Nhá Setembrina, no centro de tudo, sabia que a fazenda caminhava para um confronto inevitável.
Jamil, servindo vinho na casa-grande, carregava o fogo de Oxóssi no peito. Ele sentia a presença do pai, o Odé que se tornara lenda, e sabia que sua revolta, como a de Baltazar, o levaria a lutar — por si mesmo, por seu povo, e por um futuro onde o sangue não definisse o destino.
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