A Tríade dos "Diabos do Olho Azul" - Cap 10 - Jamil se rebela cada vez mais e sua liderança já pode ser notada.

 O Fogo da Resistência

Fazenda Real de Santa Cruz, 1840. O aroma dos cafezais misturava-se ao suor dos escravizados sob o sol inclemente do Rio de Janeiro, enquanto a casa-grande, com suas varandas brancas, pairava como um símbolo de opressão. Jamil, agora com 24 anos, estava no auge de sua força e beleza. Sua pele moreno jambo reluzia como bronze, os cabelos encaracolados caíam sobre os ombros, e os olhos azuis, herança de Baltazar, o “Diabo do Olho Azul”, brilhavam com uma mistura de revolta e majestade. Ele era mais do que um escravo — era um líder, um príncipe na senzala, um Odé de Oxóssi cuja presença incendiava corações e desafiava a ordem da fazenda.
Na casa-grande, Jamil atraía não apenas o amor nascente de Heleninha, agora uma jovem de 21 anos, mas também a cobiça carnal de Sinhá Inês. Aos 45 anos, a herdeira da fazenda era temida por sua crueldade e desejos inconfessáveis. As escravizadas sussurravam histórias sombrias sobre os pretos mais belos, que, com a ajuda de mucamas de confiança, eram entorpecidos com chás e submetidos às vontades da sinhá em segredo. Jamil, sabedor dessas torturas, recusava-se a beber qualquer chá oferecido, temeroso de cair nas garras de Sinhá Inês. Sua rebeldia, antes contida, começou a explodir.

A Rebeldia na Casa-Grande
Como garçom na casa-grande, Jamil servia vinhos e iguarias com um porte que ofuscava os senhores, mas sua paciência estava no limite. Durante um jantar para sinhás amigas de Sinhá Inês, ele “acidentalmente” derramou uma jarra de vinho tinto no vestido de uma convidada, manchando a seda importada. As mulheres gritaram, e Sinhá Inês, com os olhos fuzilantes, levantou-se da mesa.
— Moreno desastrado! — rosnou, o leque batendo na palma da mão. — Tu achas que podes me envergonhar na frente das minhas amigas?
Jamil sustentou o olhar dela, os olhos azuis faiscando.
— Foi sem querer, sinhá — disse, a voz firme, mas com um tom que sugeria o contrário.
Dias depois, a tensão escalou. Enquanto limpava a sala de jantar, Jamil deixou cair uma bandeja de prata, que colidiu com a valiosa cristaleira, estilhaçando vidros e louças. O barulho ecoou pela casa, e Sinhá Inês apareceu, o rosto vermelho de fúria.
— Tu fizestes de propósito, mulato insolente! — gritou, apontando o dedo. — Tua beleza é só pra enfeite! Cansei de te ver nesta casa! Pros cafezais, agora!
Jamil abaixou a cabeça, escondendo um leve sorriso. Ser devolvido aos cafezais era sua glória, não uma derrota. Ele queria estar com seu povo, na senzala, onde era amado e respeitado. Tião Galinha, que assistia à cena da porta, riu com arrogância, achando que Jamil havia sido rebaixado.
— Olha só, o Diabo do Olho Azul caiu — zombou Tião, o sorriso vil brilhando. — Agora é só mais um preto no mato.
Jamil virou-se lentamente, os olhos cortantes.
— Cuidado, Galinha — murmurou, baixo, mas letal. — Quem cai alto quebra mais feio.

O Triunfo nos Cafezais
Nos cafezais, Jamil foi recebido como um príncipe enviado por Baltazar. As escravizadas pararam o trabalho, os homens ergueram os facões em saudação, e as crianças correram para tocar suas mãos. Ele caminhava entre os arbustos de café com a cabeça erguida, o peito largo, como se carregasse a coroa de Ketu.
— O filho de Baltazar tá de volta! — exclamou uma escravizada, os olhos marejados. — Oxóssi mandou ele pra nós!
Séo Bastião, agora com 46 anos e uma figura venerada na senzala, abraçou Jamil com orgulho.
— Tu tá onde pertence, Jamil — disse, a voz grave. — Aqui, tu é rei. Tua luta é a nossa luta. Você é a continuação da luta de teu pai!
Jamil assentiu, sentindo o calor do povo em seu coração. Ele sabia que, nos cafezais, poderia organizar a resistência, planejar revoltas e fugas, reacender a chama da liberdade que seu pai deixara.

O Casamento de Heleninha
Enquanto Jamil encontrava seu lugar na senzala, Heleninha enfrentava um destino imposto. Aos 21 anos, ela era uma mulher de beleza delicada, com cabelos loiros e olhos verdes que escondiam uma melancolia profunda. Seu coração pertencia a Jamil, mas a família tinha outros planos. Dom Belchior apresentou-lhe Dom Murilinho Albuquerque, herdeiro do Viscondado da Lapa e sobrinho do sinhô, filho de seu tio Miguel, o mesmo que arranjou o casamento de Inês e Belchior . Murilinho, um jovem de 25 anos com traços finos e modos polidos, cobria Heleninha de mimos — joias, vestidos, promessas de uma vida na corte —, mas não conquistava seu coração.
Numa cerimônia reservada na corte, Heleninha casou-se com Murilinho, vestida de branco, mas com os olhos distantes, pensando em Jamil. Durante a festa, enquanto os convidados brindavam, ela sussurrou para si mesma, tocando o anel de noiva:
— Jamil, tu sempre será o meu amor...
Jamil, nos cafezais, soube da partida de Heleninha por Nhá Setembrina, que o encontrou enquanto ele cortava café.
— A sinhazinha casou, Jamil — disse, a voz suave, mas firme. — Ela foi pra corte. Deixa ela ir, menino. Esse amor de vocês é uma corrente que só te puxa pra baixo. Foi o melhor para os dois.
Jamil cerrou os punhos, o coração ressentido. Ele não respondeu, mas a dor da perda alimentou sua revolta, tornando-o ainda mais determinado a lutar. Tião Galinha, ao longe, junto aos feitores, vangloriava-se da derrota temporária de Jamil. -- Então, o sinhozinho caído, o Diabo do Olho Azul, achou que Sinhá Inês ia aturar ele arrastando asa para Sinhazinha Helena? O que ele tem de vaidoso, tem de estúpido!

A Alforria de Tião Galinha
Enquanto Jamil se fortalecia na senzala, Tião Galinha alcançava o auge de sua ascensão. Por sua lealdade a Dom Belchior, suas delações e sua habilidade em agradar o sinhô, ele recebeu a carta de alforria, um feito raro para um escravo. Agora capitão do mato, Tião dormia na feitoria, vestia roupas melhores e carregava um chicote, símbolo de sua nova autoridade. Mas sua alforria o isolou ainda mais da senzala, que o via como um traidor.
— Alforriaram o Tião, e ele virou cão dos brancos — murmurou um escravizado, enquanto amolava um facão.
Na senzala, Jamil comandava as galhofas contra Tião, transformando a raiva em riso. Durante as festas, enquanto os tambores ecoavam, ele liderava cantigas provocativas, com Séo Bastião e outros se juntando ao coro:
Preto não sai da linha, cuidado com Tião Galinha!
Alforriaram o Tião, dos brancos ele virou o cão!
Da feitoria, Tião ouvia as vozes e estrebuchava de raiva, socando a parede de madeira.
— Maldito Jamil! — rosnava, os olhos faiscando. — Tu vai pagar por essas zombarias, Diabo do Olho Azul!
Até Sinhá Inês, ao passar pelo barracão da senzala em sua liteira, ria das cantigas, achando graça na humilhação de Tião. Ele, possesso, jurava vingança, mas sabia que Jamil era intocável na senzala, protegido pelo amor do povo.

O Brado de Oxóssi
Nas noites de toques religiosos, comandados por Séo Bastião, a senzala se transformava em um terreiro sagrado. Séo, com sua sabedoria herdada de Nhô Quincas, traçava pembas no chão, oferecia milho e cachaça aos orixás, e invocava os ancestrais. Quando Oxóssi descia, era Jamil quem o recebia. Ele dançava com a força de um caçador, seus passos precisos como flechas, seus gestos evocando a guerra de Ketu. No auge do transe, ele erguia a cabeça e soltava o brado ancestral:
Kiiiiiiiuuuuuuu!
O som ecoava pela senzala, reacendendo a chama da liberdade. Séo Bastião, com lágrimas nos olhos, via Baltazar ressurgir em Jamil.
— É ele, Baltazar! — sussurrou, a voz embargada. — Oxóssi tá vivo nesse menino!
A escravaria, em êxtase, reconhecia Jamil como um líder rebelde, um novo Odé. Ele começou a escapar furtivamente à noite, organizando pequenas revoltas — sabotagens nos cafezais, roubo de ferramentas, fugas de escravizados para os morros. Tião Galinha, agora capitão do mato, caçava-o com cães e lanternas, mas Jamil, guiado por Oxóssi, sempre escapava.
— Tu não me pega, Galinha! — gritava Jamil, rindo, enquanto desaparecia na mata.
Tião, furioso, jurava capturá-lo, mas no fundo temia o “Diabo do Olho Azul”, cuja lenda crescia a cada dia.

A Tempestade que Se Aproxima
A Fazenda Real de Santa Cruz estava em ebulição. Jamil, com sua força, beleza e rebeldia, era o coração da senzala, um líder que reacendia a esperança de liberdade. Tião Galinha, com sua alforria e crueldade, era o cão dos brancos, odiado pelo povo. Heleninha, na corte, vivia um casamento sem amor, sonhando com Jamil. Sinhá Inês, frustrada pela recusa de Jamil, tramava maneiras de dobrá-lo, enquanto Nhá Setembrina observava tudo, sabendo que a fazenda caminhava para um confronto inevitável.
Jamil, nos cafezais, sentia a presença de Oxóssi em cada brisa, em cada cântico. Ele sabia que sua luta, como a de Baltazar, era maior que ele mesmo. Com o brado de caça ecoando em seu peito, ele se preparava para liderar seu povo, desafiando Tião, Sinhá Inês e o próprio sistema que o acorrentava.


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