A Tríade dos "Diabos do Olho Azul" - Cap 8 - Jamil, o sucessor de Baltazar.
O Retorno de Jamil ao Cais do Valongo
Cais do Valongo, Rio de Janeiro, 1835. O sol escaldante de meio-dia castigava o porto, onde o cheiro de sal, suor e desespero se misturava ao barulho das carroças, dos gritos dos mercadores e do tilintar das correntes. O mercado de escravos fervilhava com compradores — fazendeiros, comerciantes, fidalgos — todos ávidos por novas “mercadorias” para suas plantations ou casas urbanas. Entre os escravizados alinhados na plataforma de madeira, Jamil, aos 19 anos, destacava-se como uma figura singular. Filho de Baltazar, o lendário “Diabo do Olho Azul”, ele herdara a beleza e o porte majestoso do pai, mas com traços próprios que o tornavam ainda mais marcante: pele moreno jambo que reluzia como bronze polido, cabelos encaracolados caindo sobre os ombros, e olhos azuis, penetrantes como os de Baltazar, que pareciam carregar a tempestade de Ketu em seu olhar.
Jamil estava acorrentado, mas sua postura era de um rei, mesmo com a camisa de linho rasgada e os pés descalços feridos pelas pedras do cais. Ele crescera na Fazenda de Cascadura, onde, desde os 4 anos, após ser vendido por Tobias, aprendera os valores do povo preto: a resistência, a solidariedade, os cânticos yorubás que ecoavam na senzala. Mas também carregava um fogo interno, uma revolta herdada do pai e amplificada pelas humilhações de sua vida como escravo. Ele sabia quem era — filho de Baltazar, um Odé de Oxóssi — e essa certeza o mantinha de pé, mesmo sob o peso das correntes.
Ao lado de Jamil, outro escravizado chamava atenção, mas por razões opostas. Sebastião, ou “Tião”, como Jamil o apelidaria mais tarde, tinha 25 anos e era filho bastardo de Bento Gavião, o temido capitão do mato da Fazenda Real de Campo Grande. Tião herdara o olhar astuto e o sorriso vil do pai, uma expressão que misturava charme e malícia. Sua pele era escura, e seu corpo, magro mas rijo, sugeria uma vida de trabalho duro e artimanhas. Ele observava a multidão com olhos calculistas, como se já estivesse planejando seu próximo movimento.
O Leilão no Cais
O pregoeiro, um homem magro com voz estridente, subiu à plataforma, batendo o martelo para chamar a atenção da multidão.
— Senhores, preparem suas bolsas! — gritou, apontando para Jamil. — Eis um escravo raro! Jovem, forte, atlético, com olhos azuis que parecem saídos de um conto! Um verdadeiro príncipe africano, mas com sangue escravo correndo nas veias! Quem dá o lance inicial?
A multidão murmurou, impressionada. Os compradores se aproximaram, examinando Jamil como se fosse um cavalo de raça. Entre eles, destacava-se Dom Belchior de Albuquerque, senhor da Fazenda Real de Santa Cruz. Um homem de meia-idade, com barba bem aparada e um casaco de linho branco, ele observava Jamil com um brilho de fascínio nos olhos. “Um escravo com porte de sinhozinho,” pensou. “Ele será um lembrete aos meus escravizados de que sangue escravo não se apaga, nem com a aparência de sinhô.”
Dom Belchior ergueu a mão, iniciando o leilão.
— 600 mil réis! — anunciou, a voz firme.
Os lances subiram rapidamente, mas Dom Belchior não hesitava, aumentando as ofertas com frieza. Ele queria Jamil, não apenas por sua força, mas pelo simbolismo que ele representava. Finalmente, o martelo bateu.
— Vendido a Dom Belchior de Albuquerque por 800 mil réis!
Jamil, impassível, sustentava o olhar da multidão, seus olhos azuis faiscando com uma revolta contida. Ele sabia que sua jornada estava apenas começando, e que aquela fazenda seria mais um campo de batalha.
O pregoeiro então apontou para Tião, que sorria com um charme calculado.
— E este aqui, senhores! Jovem, esperto, com um olhar que promete lealdade! Bom para o campo ou para tarefas de confiança!
Dom Belchior, que já observava Tião, viu potencial no rapaz. “Este tem um olhar fiel,” pensou. “Se bem treinado, pode me ser útil. Talvez até um confidente.” Ele ergueu a mão novamente.
— 400 mil réis por esse aí.
Sem concorrência significativa, Tião foi comprado por Dom Belchior. O pregoeiro bateu o martelo, selando o destino dos dois escravizados.
A Rixa Nasce
Enquanto eram retirados da plataforma, Jamil e Tião trocaram olhares pela primeira vez. Jamil, com sua postura altiva, viu em Tião algo que o incomodou imediatamente: o sorriso vil, o olhar astuto que lembrava um predador esperando o momento de atacar. Tião, por sua vez, sentiu uma ponta de inveja e desconfiança ao ver Jamil, cujo porte e beleza roubavam a atenção de todos. Ele reconheceu, instintivamente, um rival.
— Olha só, o sinhozinho de olhos azuis — murmurou Tião, o sorriso torcido, enquanto as correntes tilintavam. — Achas que és melhor que nós, é?
Jamil virou a cabeça lentamente, seus olhos azuis cortando como lâminas.
— Não acho nada — respondeu, a voz grave e firme. — Mas tu, com esse sorriso de galinha, já tá querendo agradar o sinhô, né? Cuidado, Tião Galinha, que a senzala não gosta de traidor.
Tião riu, um som baixo e provocador, mas seus olhos estreitaram-se.
— Tião Galinha, é? Gostei do apelido. Mas tu, príncipe, vai aprender que aqui não tem coroa. E eu sempre fico por cima.
A tensão entre os dois era palpável, como o ar antes de uma tempestade. Os feitores, percebendo o embate, empurraram ambos para a carroça que os levaria à Fazenda Real de Santa Cruz.
— Calem a boca e andem! — rosnou um feitor, brandindo o chicote.
Jamil bufou, mas obedeceu, sua mente já fervilhando com planos de resistência. Tião, por outro lado, lançou um último olhar para Dom Belchior, que observava a cena com interesse. O sinhô sorriu levemente, como se aprovasse a astúcia do rapaz.
O Peso do Passado
Enquanto a carroça se preparava para partir, Jamil olhou para o cais do Valongo, o mesmo lugar onde, 30 anos antes, seu pai, Baltazar, fora vendido como escravo. Ele não conhecia toda a história de Baltazar, mas as lendas contadas na senzala de Cascadura ecoavam em seu peito: o “Diabo do Olho Azul”, o líder que fugira para fundar o Quilombo da Liberdade do Rei, o Odé que se tornara um espírito de Oxóssi. Jamil sentia o peso desse legado, mas também a revolta de sua própria jornada. Ele crescera entre os escravizados, aprendendo os cânticos de Ketu, os valores de luta e união, mas também sofrera o chicote, a humilhação, a perda de sua mãe, Beatriz, e a traição de Tobias, que o vendera como se fosse um objeto.
Agora, aos 19 anos, Jamil era um vulcão pronto para explodir. Ele sabia que a Fazenda Real de Santa Cruz seria um novo campo de batalha, e Tião Galinha, com seu olhar vil, seria um obstáculo. Mas ele também sentia, no fundo da alma, a presença de Oxóssi, como se o orixá que guiara seu pai estivesse sussurrando em seus ouvidos: “Resiste, meu filho. Tua luta é maior que tu.”
A Partida do Cais
A carroça começou a se mover, rangendo pelas ruas de paralelepípedos do Rio de Janeiro. Jamil e Tião, sentados lado a lado, mantinham-se em silêncio, mas a rixa entre eles já estava selada. Jamil olhava para o horizonte, onde a cidade dava lugar às matas e morros, seu coração carregado de revolta e esperança. Ele pensava nos escravizados de Cascadura, nos cânticos que o sustentavam, na promessa de liberdade que herdara do pai.
Tião, por sua vez, observava Dom Belchior, que cavalgava à frente da carroça, e planejava seus próprios movimentos. Ele sabia que, com sua astúcia, poderia conquistar a confiança do sinhô, talvez até se tornar um capataz ou algo mais. Mas Jamil, com sua presença magnética, era uma ameaça a seus planos.
Enquanto a carroça deixava o cais do Valongo para trás, o destino de Jamil e Tião se entrelaçava, prometendo um embate que abalaria a Fazenda Real de Santa Cruz. Jamil, o filho do Odé, carregava o fogo de Baltazar, e Tião, o herdeiro de Bento Gavião, trazia a malícia de seu pai. A luta entre eles seria mais do que pessoal — seria um reflexo da guerra maior entre opressão e liberdade.
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