A Tríade dos "Diabos do Olho Azul" - Cap 17 - O tronco e a dor para Maurinho, o destino de um Odé

 O Retorno do Odé

Fazenda Real de Santa Cruz, Rio de Janeiro, Dezembro de 1863
A carroça que trouxe Mauro de Albuquerque da corte do Rio à Fazenda Real de Santa Cruz rangeu até parar no pátio poeirento da casa-grande. O sol escaldante de dezembro queimava a terra, e o ar carregava o cheiro de café e sofrimento. Mauro, aos 19 anos, descalço, com o torso nu e uma corda áspera amarrada ao pescoço, desceu com a cabeça baixa, os olhos azuis opacos, mas com um brilho latente, como se Oxóssi sussurrasse em sua alma. Sua pele moreno jambo reluzia de suor, e os cabelos encaracolados, agora emaranhados, caíam sobre os ombros. Ele parecia resignado, como se carregasse uma dívida ancestral, pronto a pagar pelo legado de seu pai, Jamil, o “Diabo do Olho Azul”.
Tião Galinha, o “Cão dos Brancos”, puxou a corda com força, o sorriso vil iluminando seu rosto envelhecido. Aos 51 anos, ele ainda carregava o ódio de sua derrota contra Jamil, 19 anos antes, quando uma ventania sobrenatural o arrancara de suas mãos. Agora, com Mauro, ele via a chance de vingar-se.
— Vais apanhar por ti e por teu pai, almofadinha indigno! — zombou Tião, a voz carregada de malícia, enquanto arrastava Mauro em direção ao tronco no centro do pátio. — Bem-vindo à tua nova realidade, Diabinho do Olho Azul!
Mauro não respondeu, os ombros caídos, os pés arrastando na terra. Sua resignação era enigmática, como se ele aceitasse o castigo como parte de uma obrigação espiritual, um eco do martírio de Jamil, que sofrera no mesmo tronco no dia de seu nascimento.

A Sombra do Passado
No pátio, o tronco de madeira, manchado pelo sangue de gerações, erguia-se como um símbolo de opressão. Mauro foi amarrado, os pulsos e tornozelos presos por cordas que cortavam a pele, o torso exposto ao sol e aos olhos da escravaria. Nhá Setembrina e Séo Bastião, agora mais velhos, mas ainda pilares da senzala, observavam de longe, os rostos marcados por uma mistura de dor e assombro. A semelhança de Mauro com Jamil era sobrenatural — a mesma pele jambo, os mesmos olhos azuis, os mesmos cabelos encaracolados batendo sobre os ombros, o mesmo porte majestoso.
— Como pode? É Jamil! Ele voltou! — exclamou Nhá Setembrina, segurando o braço de Séo Bastião, as lágrimas escorrendo. — Oxóssi trouxe ele de novo!
Séo Bastião, com os olhos fixos em Mauro, balançou a cabeça, a voz grave.
— É o filho, mas carrega o pai na alma — murmurou. — A lenda não morreu.
Sinhá Inês, com seu vestido de seda preta e o leque fechado na mão, apareceu no pátio, o olhar gélido brilhando com crueldade. Aos 67 anos, ela ainda comandava a fazenda com punho de ferro, e a visão de Mauro, o neto que carregava o sangue de Jamil, era uma afronta pessoal. Ela apontou o leque para Nhá Setembrina e Séo Bastião.
— Chamem a escravaria! — ordenou, a voz cortante. — Que venham todos ver o retorno da vossa “lenda”, do vosso príncipe, ao tronco! Ele pagará pelos feitos do pai!
Nhá Setembrina baixou a cabeça, o coração apertado, enquanto Séo Bastião, com os punhos cerrados, murmurava uma prece a Oxóssi. Relutantes, eles chamaram os escravizados, que se reuniram ao redor do pelourinho, formando um semicírculo de rostos angustiados. Mulheres seguravam as mãos umas das outras, homens murmuravam cânticos yorubás, e crianças, com olhos arregalados, escondiam-se atrás dos mais velhos. A cena era macabra, um eco do martírio de Jamil, como se o tempo tivesse dobrado sobre si mesmo.

O Espetáculo da Crueldade
Tião Galinha, com o chicote pesado nas mãos, posicionou-se diante de Mauro, o couro trançado reluzindo sob o sol. Ele estalou o chicote no ar, o som cortando o silêncio, e olhou para a escravaria com um sorriso sádico.
— Olhem bem, pretos! — gritou. — Este é o fim do vosso príncipe! O Diabinho do Olho Azul vai aprender seu lugar!
O primeiro golpe caiu, rasgando as costas de Mauro. Ele bufou, o corpo tenso, mas não gritou. Cada chibatada era um trovão, arrancando sangue e suspiros abafados, mas Mauro suportava em silêncio, os olhos azuis brilhando com uma intensidade crescente, como se o açoite fosse a chave para uma verdade mais profunda. Ele sentia um fogo em seu espírito, um chamado ancestral que o conectava a Jamil, a Baltazar, a Oxóssi.
A escravaria pranteava, algumas mulheres caindo de joelhos, outras cobrindo os olhos. Nhá Setembrina segurava o colar de contas verdes, murmurando preces, enquanto Séo Bastião, com lágrimas nos olhos, via o eco do brado de Jamil no silêncio de Mauro.
Sinhá Inês observava, o leque batendo na palma da mão, satisfeita com o “espetáculo”. Ela se aproximou de Mauro, inclinando-se para sussurrar em seu ouvido.
— Tu pagas pelo teu pai, mulato — sibilou. — O sangue escravo nunca se apaga.
Mauro ergueu os olhos, os azuis faiscando com uma força sobrenatural, mas permaneceu calado, como se aceitasse o fardo.

O Brado de Oxóssi
Tião Galinha, empunhando o chicote, intensificou os golpes, cada um mais cruel que o anterior. O sangue escorria pelas costas de Mauro, manchando o chão, mas ele continuava imóvel, bufando, os olhos brilhando como faróis. Então, num golpe mais forte, que pareceu rasgar o próprio ar, Mauro ergueu a cabeça, e o brado ancestral de seu pai ecoou em sua voz:
KIIIIIUUUUUUU!!!
O grito cortou o pátio como um trovão, e, no mesmo instante, uma ventania fortíssima varreu a fazenda. As árvores dobraram, a poeira subiu em redemoinhos, e o céu escureceu, como se Iansã, a guerreira dos ventos, tivesse descido para proteger seu filho. Mas, diferente do que acontecera com Jamil, a ventania não levou o corpo de Mauro. Em vez disso, ela secou o sangue em suas costas, como se limpasse suas feridas, um sinal de que Oxóssi e Iansã o protegiam, mas exigiam que ele permanecesse.
Mauro, exausto, desmaiou no tronco, o corpo inerte, mas vivo. Tião Galinha, pego de surpresa, caiu de joelhos, o chicote escapando de suas mãos. Ele olhou para o céu, os olhos arregalados, o rosto pálido.
—Novamente?! Exu continua permitindo que Iansã salve esses demônios de olhos azuis! — gritou, a voz tremendo de frustração. — Eles têm trato com Oxóssi!
Temeroso da fúria de Iansã, Tião não ousou continuar. Ele recuou, conformado com mais uma derrota, enquanto a escravaria, atônita, correu ao tronco, desamarrando Mauro com mãos trêmulas. Eles o carregaram para a senzala, em uma procissão de cânticos e lágrimas, como se celebrassem o “retorno” de Jamil.
— Ele vive! — exclamou uma mulher, erguendo os braços. — Oxóssi guardou o filho de Jamil!
— O Diabinho do Olho Azul é nosso príncipe! Veio para virar o rei! — gritou outra, batendo palmas.

A Festa na Senzala
Na senzala, a noite transformou-se em um terreiro sagrado. Séo Bastião, com pembas e oferendas, liderou os cânticos, enquanto Nhá Setembrina, com lágrimas de alegria, ajudava a tratar as feridas de Mauro, ainda inconsciente. Os tambores ecoavam, os cânticos yorubás subiam ao céu, louvando Oxóssi e Iansã pelo milagre.
— Jamil voltou no filho! — disse Séo Bastião, erguendo um colar de contas azul turqueza. — Mauro é Odé, como o pai e o avô!
Nhá Setembrina, enxugando as lágrimas, sorriu.
— A lenda não morre — murmurou. — Oxóssi nunca abandona seus filhos.
Mauro, deitado num catre, começou a recobrar a consciência, os olhos azuis entreabertos, sentindo o calor do povo ao seu redor. Ele não entendia completamente o que acontecera, mas sabia que o brado em sua garganta era mais do que sua voz — era o eco de Jamil, de Baltazar, de Oxóssi. A luta de Mauro apenas começava.

O Legado Inquebrável
A Fazenda Real de Santa Cruz, sob o jugo de Sinhá Inês e Dom Belchior, testemunhou mais um capítulo da saga do “Diabo do Olho Azul”. Tião Galinha, derrotado pela força dos orixás, fugiu do pátio, amaldiçoando sua sorte. Inês, furiosa com o fracasso do castigo, prometeu dobrar Mauro, mas a senzala, fortalecida pelo milagre, sabia que o jovem era mais do que um escravo — era um Odé, um líder destinado a continuar a luta de seu pai.
Mauro, ainda fraco, sentia o chamado das matas cariocas, onde Jamil e Baltazar, agora encantados, o aguardavam. Sua resignação inicial dera lugar a uma nova chama, acesa pelo brado de Oxóssi e pela ventania de Iansã. Ele sabia que sua luta estava apenas começando, e que a senzala, a fazenda e o próprio Império seriam o palco de sua resistência.

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