A Tríade dos "Diabos do Olho Azul" - Cap 11 - Jamil e suas fugas. O encontro de amor e a semente do novo "Diabo".

 O Terror do Cais do Valongo

Fazenda Real de Santa Cruz e Rio de Janeiro, 1843. Jamil, aos 27 anos, era uma força da natureza. Sua pele moreno jambo reluzia sob o sol, os cabelos encaracolados dançavam ao vento, e os olhos azuis, herança de Baltazar, o “Diabo do Olho Azul”, brilhavam com uma mistura de revolta e esperança. Ele não era apenas um escravo rebelde; era uma lenda viva, o terror do Cais do Valongo, onde sua coragem libertava pretos e pretas destinados às correntes. Na senzala, ele era um rei, e na corte, um fantasma que desafiava a ordem escravocrata.
Jamil agora fugia por dias, desaparecendo na mata e reaparecendo no Rio de Janeiro. No Cais do Valongo, ele agia nas sombras, cortando correntes com facões roubados, guiando os recém-chegados para a liberdade. Ele formara uma aliança inesperada com a nascente colônia libanesa e judeus ocultos da Rua da Alfândega, comerciantes que, movidos por empatia ou pragmatismo, acolhiam os libertados. Os pretos e pretas salvos por Jamil passavam-se por “posses” desses aliados, mas viviam em liberdade, escondidos em sótãos e quintais, aprendendo ofícios e sonhando com um futuro.
— Tu é um anjo, Jamil — disse uma preta liberta, abraçando-o numa noite no cais. — Oxóssi te guia.
Jamil sorriu, os olhos azuis suavizando por um instante.
— Não sou anjo, sou só um homem. Mas enquanto eu respirar, ninguém vai acorrentar meu povo.

O Reencontro com Heleninha
Numa dessas fugas à corte, Jamil teve um encontro que reacendeu uma chama antiga. Heleninha, agora com 24 anos, vivia no casarão dos Albuquerque, na corte, como esposa do Visconde da Lapa, Dom Murilinho. Mas o casamento era uma fachada. Murilinho, recém-agraciado com o título, passava mais tempo com a nobreza fazendo política, em bailes e jogos, do que com a esposa. Heleninha, com seus cabelos loiros e olhos verdes carregados de melancolia, sentia-se abandonada, seu coração ainda preso a Jamil.
Numa tarde, enquanto caminhava pelo mercado da Praça XV, disfarçada com um véu para evitar olhares curiosos, ela o viu. Jamil, escondido sob um chapéu de palha, negociava com um libanês na Rua da Alfândega. Seus olhos se cruzaram, e o tempo pareceu parar. Ela deixou cair a cesta de frutas, e Jamil, instintivamente, correu para ajudá-la.
— Heleninha... — murmurou ele, a voz grave, os olhos azuis brilhando com emoção.
— Jamil... — respondeu ela, as lágrimas brotando. — Eu sabia que te encontraria um dia.
Eles se encontraram em segredo, numa pequena casa alugada por um aliado libanês. Ali, sob a luz de uma lamparina, Jamil e Heleninha amaram-se loucamente, como se quisessem apagar os anos de separação. Ele a tomou nos braços, e ela se entregou, seus corpos entrelaçados numa paixão que desafiava as correntes do mundo. Naquela noite, Jamil plantou sua semente em Heleninha, selando um destino que nem ele podia prever.
— Eu te amo, Jamil — sussurrou ela, aninhada em seu peito. — Sempre te amei.
Jamil beijou sua testa, o coração apertado.
— E eu a ti, Heleninha. Mas nosso amor é um fogo que pode queimar tudo. Cuida-te, por mim.

A Profecia de Séo Bastião
De volta à Fazenda Real de Santa Cruz, Jamil encontrou Séo Bastião na senzala, durante um toque religioso. O sábio, agora com 49 anos, traçava pembas no chão, os olhos fixos nos búzios. Ele chamou Jamil para um canto, a voz grave carregada de mistério.
— Escuta, Jamil — disse, segurando o colar de contas de Oxóssi. — Os orixás falaram. Tua amada Heleninha terá um filho teu, um menino. E, segundo Oxóssi, tu serás encantado em Odé, como teu pai foi. Mas tua partida será diferente da de Baltazar. Pode ser muito dolorosa, aguente e tenha fé. Tudo faz parte do plano de Oxóssi.
Jamil sentiu um frio na espinha, o coração apertado. Ele olhou para Séo Bastião, os olhos azuis refletindo a luz da fogueira.
— Encantado? Como meu pai? — perguntou, a voz tremendo. — E meu filho... eu o verei?
Séo Bastião balançou a cabeça, os olhos cheios de compaixão.
— Não sei, Jamil. Os orixás mostram o caminho, mas não o fim. Tua luta é maior que tu, como foi a do teu pai. Confia em Oxóssi.
Jamil assentiu, guardando as palavras como um peso no peito. Ele sabia que sua luta pela liberdade era um chamado ancestral, mas a ideia de uma partida dolorosa, de deixar um filho que talvez nunca conhecesse, o atormentava.

O Cerco de Tião Galinha
Enquanto Jamil intensificava suas fugas e revoltas, Tião Galinha, agora capitão do mato e alforriado, apertava o cerco. Financiado por Sinhá Inês, que via em Jamil uma ameaça à ordem da fazenda, Tião se tornara um predador implacável. Ele conhecia os caminhos da mata, os esconderijos do cais, e, com oferendas fartas a Exu, seu guardião, sentia-se invencível.
— Deste vez eu me antecipei, seu Diabo do Olho Azul — murmurava Tião, enquanto espalhava cachaça e farofa num cruzamento. — Com Exu me guiando, tu não escapa. O ferro de marcar com o brasão dos Albuquerque te aguarda.
Tião contratava capangas, subornava mucamas, e vigiava cada movimento de Jamil. Ele sabia que capturá-lo seria sua maior vitória, um troféu que o elevaria ainda mais aos olhos de Dom Belchior e Sinhá Inês.
Jamil, por sua vez, continuava sua luta, libertando escravizados no cais e organizando sabotagens na fazenda. Mas as fugas constantes o deixavam exausto, e ele sentia o cerco se fechar. Numa noite sem lua, enquanto guiava um grupo de pretos libertados pelo Cais do Valongo, ele caiu numa armadilha. Tião Galinha, com seus capangas, surgiu das sombras, lanternas em mãos e cães latindo furiosamente.
— Te peguei, Diabo do Olho Azul! — exclamou Tião, o sorriso vil brilhando sob a luz da lanterna. — Achou que ia escapar pra sempre?
Jamil, exausto, tentou lutar, derrubando dois capangas com socos precisos. Mas os outros o cercaram, e um golpe na cabeça o fez cair de joelhos. Acorrentado, ele foi arrastado por Tião, que rasgou sua camisa com um gesto cruel, expondo suas costas. Um capanga trouxe o ferro em brasas, marcado com o brasão dos Albuquerque, e Tião o pressionou contra a pele de Jamil.
A dor foi excruciante, um fogo que parecia queimar sua alma. Jamil levantou a cabeça, os olhos azuis brilhando como faróis no cais, e soltou um grito que ecoou pela noite:
Kiiiiiiiiuuuuuuuuu!
Era Oxóssi, manifestando-se para amenizar o fardo de seu filho. O som era tão poderoso que os capangas recuaram, e até Tião Galinha deu um passo para trás, assustado.
— O santo dele... se manifestou... que coisa! — murmurou, os olhos arregalados.
Refeito, Tião recompôs-se e ordenou que Jamil fosse levado, acorrentado, de volta à Fazenda Real de Santa Cruz. Ele sorria, triunfante, mas no fundo sentia um arrepio, como se soubesse que a luta de Jamil não terminaria ali.

As Dores do Parto
No mesmo instante, na corte, no casarão dos Albuquerque, Heleninha começava a sentir as dores do parto. Ela estava em seu quarto, cercada por mucamas e pelo ansioso Murilinho, que, alheio à verdadeira paternidade, sonhava com um herdeiro para o Viscondado da Lapa. Heleninha, com os cabelos loiros colados ao rosto pelo suor, segurava as mãos de uma mucama, os olhos verdes cheios de dor e esperança.
— Meu filho... — sussurrou, entre contrações. — Ele será forte, como o pai.
Murilinho, ao lado, acariciava sua mão, ansioso.
— Nosso filho será um Albuquerque, minha querida. Um nobre de sangue puro.
Heleninha fechou os olhos, pensando em Jamil, o “Diabo do Olho Azul”, cujo amor a sustentava mesmo na dor. Ela sabia que o menino em seu ventre era dele, um filho de Oxóssi, e que seu destino seria tão grandioso quanto o do pai.

O Destino em Jogo
A captura de Jamil e o início do parto de Heleninha marcaram um ponto de virada na Fazenda Real de Santa Cruz e na corte. Jamil, acorrentado e marcado, enfrentava sua maior provação, mas o brado de Oxóssi ecoava como uma promessa de que sua luta não estava acabada. Heleninha, dando à luz o filho de Jamil, carregava a semente de um novo Odé. E Tião Galinha, com sua vitória aparente, não imaginava que o fogo de Jamil, como o de Baltazar, nunca se apagaria.
A saga do “Diabo do Olho Azul” continuava, agora entrelaçada com o destino de um filho ainda por nascer, numa batalha que desafiava as correntes da escravidão.

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