Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 1
Capítulo I: O Nascimento do Estorvo.
Pelotas, Província do Rio Grande do Sul, 25 de março de 1807. A Fazenda Santa Bárbara estendia-se como um reino
de contrastes sob o céu vasto dos pampas. O horizonte, cortado por colinas suaves e campos de capim ondulante,
parecia engolir o mundo. O ar carregava o perfume da terra úmida, misturado ao mugido distante do gado e aos cânticos baixos dos trabalhadores escravizados, que, entre a labuta exaustiva, reconheciam na figura de Rodolfo
Mendonça um senhor justo — para os padrões da época. Rodolfo, um homem de pele tostada pelo sol e olhos
castanhos profundos, caminhava pela fazenda com o peso de uma angústia crescente. Sua esposa, Elvira, estava
prestes a dar à luz seu terceiro filho, um temporão que, se fosse varão, receberia o nome de Elias, em homenagem
ao profeta que Rodolfo admirava pela força e resiliência.
Na casa-grande, uma construção de paredes brancas caiadas e janelas altas de madeira escura, o drama de uma
nova vida estava prestes a se desenrolar. O quarto principal, com seus móveis robustos e uma cama de madeira
entalhada, era palco de uma batalha silenciosa. Elvira Mendonça, deitada sob lençóis de linho, agarrava as bordas
do tecido com dedos crispados, o rosto contorcido em uma máscara de dor e fúria. As contrações vinham em
ondas, cada uma mais violenta, arrancando-lhe gemidos que se misturavam a pragas sussurradas. O suor escorria
por sua testa, colando os cabelos castanhos à pele pálida, quase translúcida. “Maldito seja esse filho! Maldito seja
meu marido que me contaminou com isto!”, sibilava, os dentes cerrados, os olhos faiscando de um ódio que parecia
maior que a própria dor. Sinhá Benedita, a preta sábia que servia como parteira, mantinha a calma, seus olhos experientes avaliando cada
movimento. Suas mãos, calejadas por anos de trabalho e partos, moviam-se com precisão enquanto preparava
panos limpos e uma bacia de água morna. “Calma, dona Elvira. Já tá quase na hora. Deixa o menino vir”, dizia, a voz
firme, mas suave, tentando apaziguar o furor da sinhá. Elvira, porém, não se continha. “Saia de mim, seu estorvo!
Saia de uma vez! Ahhh!”, gritava, o corpo arqueando-se na cama, as unhas cravando-se nos lençóis. Cada palavra
era um punhal, cada grito uma rejeição ao ser que lutava para nascer.
E assim, em meio a um ódio materno inexplicável, Elias veio ao mundo. Um feto hesitante transformou-se num
bebê frágil, com um choro quase inaudível, como se já pressentisse o mundo cruel que o aguardava. Sinhá Benedita
segurou o menino com mãos gentis, mas seu coração apertou-se ao ouvir o lamento débil. “Vamos lá, pequeno,
força! Chore mais alto!”, disse, enquanto dava tapas suaves, porém firmes, nas costas do bebê. “Esse aí tá com
pouca vontade de viver, mas vai ter que lutar.” Com cuidado, ela envolveu o menino numa manta puída, os olhos
verdes entreabertos do recém-nascido brilhando como pedras preciosas encobertas pela tristeza. Seus cabelos
negros, já encaracolados, formavam pequenas franjas que pendiam sobre as sobrancelhas, dando-lhe um ar de
vulnerabilidade.
Dom Rodolfo, que aguardava ansioso na sala, entrou no quarto assim que Sinhá Benedita chamou. Seus olhos marejaram
ao ver o filho. Ele tomou o bebê nos braços com ternura, o rosto iluminado por um brilho de orgulho. “Meu…
menino! Seja forte! Meu… Elias!”, exclamou, a voz embargada, quase chorando. Para Rodolfo, Elias era uma bênção,
um varão que se juntaria aos irmãos, Anselmo, de 10 anos, e Carlos, de 8, duas crianças robustas que corriam pelos
campos, trazendo vida à fazenda. Ele acreditava que Elias, apesar de franzino, traria a mesma alegria ao casal. Mas
Elvira, exausta na cama, virou o rosto com desdém. “Que se dane esse estorvo”, murmurou, a voz carregada de
rancor. “Já está fora de mim. Façam o que quiserem com ele.”
Rodolfo franziu a testa, tentando conter a mágoa. “É nosso sangue, mulher. Nosso menino. Dê-lhe uma chance.”
“Nosso?”, retrucou Elvira, o tom cortante como uma lâmina. “Teu! Só teu! Maldito seja por me obrigar a carregar
esse estorvo na barriga! Pensei em pedir um chá pra Sinhá Benedita, pra expurgar isso de mim, mas tu proibiu! E a
danada da preta se recusou a me ajudar!” Sinhá Benedita, que limpava os panos ensanguentados, ergueu o olhar,
firme. “Dona Elvira, eu não faço isso com filho nenhum. Deus me livre de tirar uma vida, um inocente que não pediu
pra nascer!” “Deus?”, Elvira riu, amarga, os olhos brilhando de desprezo. “Benedita, Deus me castigou com essa
barriga que eu nunca quis.”
Rodolfo balançou a cabeça, segurando Elias com mais força, como se quisesse protegê-lo das palavras venenosas
da mãe. “Tu vai ver, mulher. Esse menino vai ser forte. Como os irmãos.” Mas Elvira não queria saber. Elias foi
entregue a Cacilda, a ama de leite, uma mulher preta de coração doce e generoso que o acolheu como se fosse seu.
“Mame, meu menino, mame sem esse medo!”, dizia, aninhando o bebê contra o peito. “O mundo que te aguarda
vai ser cruel contigo, mas tu vai ter quem te ame.”
E assim Elias cresceu, mais entre os escravizados da casa do que entre a família. Para eles, não era um senhorzinho,
mas um menino frágil, quase um igual. Cacilda tornou-se sua verdadeira mãe, embalando-o nas noites frias,
aquecendo-o com histórias e canções, ensinando-lhe as primeiras palavras e os primeiros passos hesitantes.
Rodolfo, sempre que podia, dedicava tempo ao filho, carregando-o nos ombros pelos campos ou contando
histórias de seus antepassados. “Tu é meu pequeno, Elias. Não liga pro que dizem. Tu tens valor”, repetia,
acariciando os cabelos negros do menino. Cacilda ecoava o mesmo carinho: “Meu menino, tu é especial. Não deixa
ninguém te apagar." Elvira, sempre malévola, porém, mantinha a distância. “Estou criando os filhos que eu quis”, dizia, fria, quando Rodolfo insistia.
“Anselmo e Carlos são meus. Esse estorvo é mais da Cacilda do que meu. Que ela fique com ele!” A palavra
“estorvo” colou-se a Elias como um segundo nome, uma marca que o perseguiria. Anselmo e Carlos, os irmãos mais
velhos, também não facilitavam. “Olha o Estorvo!”, zombava Anselmo, enquanto Carlos ria, chutando a terra para
sujar as roupas do caçula. “É verdade que Sinhá Benedita quase te jogou fora, Estorvo?” Elias, pequeno e tímido,
baixava a cabeça, "Mãe Cacilda, eu sou um menino ou um estorvo? Por que não me chamam pelo meu nome?", buscando refúgio nos braços de Cacilda ou nas histórias de Zé Preto, um dos escravizados que lhe
contava lendas do povo preto, cheias de heróis e espíritos que enfrentavam o impossível.
Rodolfo tentava compensar o vazio deixado pela mãe. Numa tarde ensolarada, quando Elias tinha 5 anos, ele o chamou à varanda. “Vem cá, meu filho”, disse, levantando o menino no colo e acariciando seus cabelos. “Tu vai crescer forte, como teus irmãos. Tu és um varão, como eles. Toma!” Rodolfo tirou do pescoço um rosário de contas escuras, herança de seu pai. “Guarde isso contigo. Foi do meu avô, passou para o meu pai, e agora é teu. Carregue sempre próximo ao peito e lembre-se de mim, se um dia eu te faltar. Entregue para o teu filho, quando o tiver!” Elias, com seus olhos verdes brilhando de curiosidade, segurou o rosário com mãos trêmulas, como se soubesse, mesmo tão jovem, o peso daquele gesto, "Farei isto, papai, passarei ao meu filho, quando o tiver!". Rodolfo ria dos anseios infantis do inocente Elias e este o abraçava forte dizendo "Te amo, papai! O senhor nunca vai me faltar!" Mas o carinho do pai não apagava o desprezo de Elvira nem as zombarias dos irmãos.
Aos 10 anos, Elias já conhecia o sabor amargo do rejeição. Seus olhos verdes, que pareciam pedras preciosas de tristeza, escondiam-se sob as franjas negras que pendiam sobre as sobrancelhas. Ele era um menino quieto, de passos leves, sempre buscando a sombra de Cacilda ou a proteção de Sinhá Benedita e Zé Preto. A fazenda, com sua vastidão, era ao mesmo tempo seu lar e sua prisão. Nada, porém, o preparara para o dia em que seu mundo desabou. Era uma tarde fria de julho de 1817, e Rodolfo, que passara o dia no campo supervisionando o gado, voltou para a casa-grande pálido, o rosto contorcido. Ele cambaleou até a sala, segurando o peito com uma mão, a respiração entrecortada. “Elias…”, murmurou, antes de cair de joelhos, o corpo tombando como uma árvore abatida. “Pai! NÃO!”, gritou Elias, que brincava com um pedaço de madeira na varanda. Seus olhos verdes arregalaram-se de pavor enquanto corria até Rodolfo, tentando segurá-lo com suas mãos pequenas. “Acudam, pelo amor de Deus! Meu pai não pode morrer! Eu não quero ficar sozinho nesta casa!” Sua voz infantil ecoava, desesperada, cortando o ar como um lamento. “Mãe Cacilda! Tia Benedita! Tio Zé Preto! Todo mundo, ME AJUDA! Meu pai tá morrendo! Ele não pode morrer!”
Cacilda foi a primeira a chegar, ajoelhando-se ao lado de Rodolfo. “Sinhô Rodolfo, fala comigo!”, exclamou, enquanto tentava erguê-lo. Zé Preto correu para buscar Sinhá Benedita, e a casa virou um caos de vozes e passos apressados. Elias, tremendo, segurava a mão do pai, as lágrimas escorrendo pelo rosto. “Pai, não me deixa… Não me deixa com aquela mulher que me odeia!”, soluçava, a voz entrecortada. Rodolfo, com o pouco fôlego que lhe restava, apertou a mão do filho. “Seja forte… sempre… você… é meu… FILHO… tem… a minha… bênção…”, murmurou, os olhos fixos nos de Elias, antes de fechar-se lentamente. “PAI!”, gritou Elias, o corpo sacudido por soluços. Cacilda o puxou para um abraço apertado, tentando protegê-lo da dor que se abatia sobre ele. “Mãe Cacilda! Tô desamparado! Sem meu pai…”, chorava o menino, agarrando-se a ela como se fosse sua última âncora. Sinhá Benedita, que chegou correndo, tentou em vão reanimar Rodolfo, mas o coração do patriarca já havia parado. A casa, antes cheia de vozes, caiu num silêncio pesado, quebrado apenas pelos soluços de Elias. Elvira, do alto de sua frieza, apareceu na porta da sala, os braços cruzados, o rosto impassível. “Que barulho por nada! Só mostra o quanto é um estorvo!”, murmurou, virando as costas e desaparecendo pelo corredor.
Elias, com o rosto encharcado de lágrimas, olhou para Cacilda, sua verdadeira mãe, como se soubesse o que o aguardava. “A megera vai me castigar ainda mais”, parecia dizer com o olhar. Cacilda, com o coração partido, apertou-o novamente em seus braços. “Tu não tá sozinho, meu menino. Eu tô aqui. Sempre vou estar.” Elias, aos 10 anos, tornou-se um órfão de pai numa casa onde já era um estranho. Seus olhos verdes, agora mais tristes do que nunca, carregavam o peso de um futuro incerto. O rosário de Rodolfo, pendurado em seu pescoço, era seu único consolo, um lembrete do amor que o pai lhe dera. Mas, na Fazenda Santa Bárbara, sob o domínio cruel de Elvira e o desprezo dos irmãos, Elias começava a perceber que, apesar de livre, sua vida se assemelhava à de um escravo. Um escravo branco com olhos de pedra preciosa, preso num mundo que não o queria.
Fim do Capítulo I
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