Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 8 - A saída do inferno.

 Capítulo VIII: A Saída do Inferno.

     





  Pelotas, Província do Rio Grande do Sul, Império do Brasil, 1834. Três anos haviam se passado desde a marcação brutal de Elias Mendonça, agora Elias Villanova, o “escravo branco” da Fazenda Santo Inácio. A vida na senzala era um tormento incessante, com Elias submetido aos trabalhos mais degradantes, seu corpo atlético coberto de cicatrizes, a marca dos Almeida em suas costas uma lembrança ardente de sua condição. Pedro, seu filho, completava cinco anos, uma criança cheia de energia e crueldade precoce. Ao lado de Clara, sua meia-irmã de três anos, ele se divertia humilhando os escravizados, com Elias como alvo principal. Numa tarde abafada, enquanto Elias limpava o estábulo, o suor escorrendo pelo rosto e os cabelos negros encaracolados colados à testa, Pedro apontou para ele, rindo. “Clarinha, este é o Estorvo! Nosso escravo branco! Ele só tem força! Olha como ele fede...”, disse, a voz carregada de desprezo infantil. Clara, no colo de Clementina, a ama, balbuciou com uma inocência que contrastava com as palavras do irmão: “Coitadinho... ele chora...” Clementina baixou a cabeça, o coração apertado. Elias, ouvindo as palavras do filho, sentiu uma dor que nenhum chicote poderia igualar. “Meu Pedro... tu nunca saberás quem sou...”, murmurou, segurando o rosário de Rodolfo e o lenço de Cacilda, que ainda carregava consigo, milagrosamente conservados. Seus olhos verdes, cheios de tristeza, encontraram os de Clara por um instante, e a menina repetiu: “Estorvo é... bonito... mas... chora! Coitadinho!” Elias virou o rosto, as lágrimas escorrendo em silêncio.
  Na casa-grande, Dom Gregório, com a saúde debilitada, observava Pedro com preocupação. O menino, apesar de sua vivacidade, mostrava modos rudes, indignos de um futuro fidalgo. “Ele precisa ir pra corte, no Rio de Janeiro, pra estudar e se refinar”, declarou o fidalgo, tossindo enquanto segurava sua bengala. Antônio Albuquerque, o jovem marido de Ana Lúcia, viu na proposta uma oportunidade. Seus olhos azuis, sempre melancólicos, brilhavam com o planejado para a viagem. “Pedro irá pra corte aprender a fidalguia, e eu levarei o uruguaio para ser seu acompanhante, um mordomo!”, anunciou, com uma determinação que surpreendeu Gregório. “Esse cão corpulento não sai da fazenda! Está marcado e é propriedade desta casa!”, retrucou Gregório, a voz fraca, mas autoritária. Antônio, com sua habilidade verbal afiada, não recuou. “Meu sogro, tua saúde é débil, que eu sei! Como marido de Ana Lúcia, possuirei tudo e todos desta casa até Pedro ser maior de idade! Elias é marcado, não ficaria fugitivo na corte e é forte demais pra se confundir com um fidalgo, qualquer capitão do mato o pegaria fácil! Eu o levarei comigo! Na corte, ele será mais útil! Está decidido!” Gregório, derrotado pela lógica e pela fraqueza de seu corpo, cedeu com um grunhido relutante.

          



  Antes da partida, Ana Lúcia, com sua arrogância cada vez mais afiada, alforriou Clementina,  dispensando-a para Pelotas. Em seu lugar, contratou Serafina, uma senhora portuguesa que fora ama de Antônio na infância e o acompanhara na mudança para Pelotas. Serafina seria a  governanta e cuidaria de Clara. A viagem para a corte reuniu um grupo improvável: Ana Lúcia, mais sinhá do que nunca; Antônio, dividido entre o dever e um desejo secreto por Elias; Pedro, o projeto de fidalgo que chamava Elias de “Estorvo”; Clara, com suas palavras balbuciadas; e Elias, o escravo branco que escondia a verdade de ser o pai de Pedro. Elias viajava numa carroça coberta por uma lona de chita, que mal o protegia do sol escaldante ou das chuvas torrenciais. A carroça, atrelada à carruagem de luxo dos Almeida, era puxada por mulas, e Elias, com as mãos calejadas, segurava o rosário e o lenço, murmurando preces. Pedro, da carruagem, zombava de sua condição. “Olha o Estorvo na carroça fedida!”, gritava, rindo, enquanto Ana Lúcia o incentivava. Serafina, observando em silêncio, notava a semelhança inegável entre Elias e Pedro — os mesmos olhos verdes, o mesmo formato do rosto. “Esse rapaz branco escravizado não é uruguaio coisa nenhuma, deve ser um coitado que Dom Gregório raptou ou comprou de uma família esfomeada...”, pensou a portuguesa, guardando o segredo.
  Antônio, disfarçando sua caridade, ordenava ao cocheiro que oferecesse comida digna a Elias, alegando “manter a força do escravo”. Mas seus olhos, fixos em Elias, traíam um sentimento mais profundo. A beleza do “escravo branco”, com seus cabelos negros e corpo marcado, o fascinava, e seu coração, preso às convenções da corte, lutava contra um amor que ele mal ousava nomear.
  Na Fazenda Santa Bárbara, a decadência era total. Sílvia, encantada por um feitor mulato chamado João, fugiu, abandonando Elias Sobrinho com Carlos. Elvira, a Sinhá Temida, morreu de forma abrupta, vítima de um infarto ao descer as escadas com sua pose arrogante. Sua queda, rolando a escada, seguida do silêncio da morte, foi celebrada pelos poucos escravizados e empregados que restavam. “A megera finalmente pagou!”, murmurou uma Sinhá Benedita, que fazia as malas e fugia com Zé Preto para um Quilombo, para viver seus últimos dias sem os grilhões da decadente Santa Bárbara, enquanto os outros escravizados e empregados erguiam as mãos em agradecimento silencioso.
  Carlos, consumido pelo remorso pela marcação de Elias, decidiu recomeçar. Ele se mudou para uma vila em Pelotas, levando Elias Sobrinho, e desposou Clementina, a ama alforriada da Santo Inácio. “Vamos, minha flor, quero recomeçar minha vida e tentar ao menos dar a meu filho a dignidade que Elias nunca teve!”, disse, com lágrimas nos olhos. Juntos, eles criavam o pequeno Elias Sobrinho, contando-lhe, com o passar dos anos, a história do tio cuja liberdade fora sacrificada. “Teu tio Elias é um herói, mesmo que o mundo não saiba! Nós, os Mendonça, é que destruímos a sua liberdade, por isto que me penitencio todos os dias!”, dizia Carlos, a voz embargada.   Anselmo e Helena, afundados na cachaça, viviam na miséria, a outrora imponente Santa Bárbara reduzida a ruínas. Morreriam em poucos anos, na miséria e sem socorro. Carlos, olhando para o que restava da fazenda, murmurava: “Essa derrocada é o castigo que merecemos pelo que fizemos com Elias.”
 Na estrada para a corte, Elias, na carroça sacudida pelas pedras do caminho, olhava para o horizonte, o rosário e o lenço apertados contra o peito. Ele pensava em Pedro, seu filho, que o via como “Estorvo”, e em Clara, cuja inocência lhe dava um fio de esperança. “Talvez na corte... talvez eu encontre um jeito de viver”, pensava, mas o peso da marca em suas costas e o olhar vigilante de Ana Lúcia o lembravam de sua condição. Antônio, da carruagem, observava-o em segredo, o coração dividido entre o dever e um desejo que crescia a cada dia. Serafina, com seus pensamentos guardados, anotava mentalmente cada detalhe, como se soubesse que a verdade, um dia, viria à tona. Elias, com os olhos verdes fixos no céu, murmurava uma prece: “Pai... Mãe Cacilda... me deem força. Meu filho não me conhece, mas eu juro que vou lutar por ele. Mesmo que me chamem de escravo, eu sou Elias Mendonça.” A carroça seguia, levando-o para um destino incerto, onde a corte imperial seria tanto um novo palco de humilhações quanto, talvez, uma chance de redenção.
Fim do Capítulo VIII.


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