Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 7 - A Marca da Crueldade.

   Capítulo VII: A Marca da Crueldade

         




  Pelotas, Província do Rio Grande do Sul, Império do Brasil, 1830-1831. A Fazenda Santo Inácio, com seus campos verdejantes e a opulência da casa-grande, era um palco de horrores para Elias Mendonça, agora Elias Villanova, o “escravo branco” marcado como propriedade dos Almeida. Na senzala, ele era o mais maltratado, destinado aos trabalhos mais árduos. Enquanto outros escravizados lidavam com tarefas pesadas, Elias era forçado a puxar o arado, um trabalho reservado a bois e cavalos. Sob o sol escaldante, com cordas amarradas ao corpo, ele arrastava o ferro pela terra, o suor misturando-se ao sangue das feridas ainda frescas nas costas. “Eu sou menos que um homem... menos que um escravo...”, murmurava, os olhos verdes turvos de desespero, enquanto segurava o rosário de Rodolfo e o lenço de Cacilda, suas únicas âncoras num mar de sofrimento.
     A crueldade atingiu seu ápice numa tarde abafada de 1830. Ana Lúcia, agora “viúva” de Elias e reinando como a sinhá da fazenda, ordenou um castigo que chocou até os escravizados mais calejados. Ana, ao lado de João Mendes e Tião Maldito, ordenou que Elias fosse retirado da senzala e ter os pulsos amarrados. "O que você quer, Ana? Eu não cometi nenhum erro! Ana, eu já não sofri o suficiente?", perguntava um assustado e amedrontado Elias, temendo pelo pior. Preso ao tronco no pátio, Elias gritava em protesto, o corpo já marcado pelas cicatrizes de açoites anteriores. “Eu sou Elias Mendonça! Não sou escravo!”, berrava, mas suas palavras eram abafadas pelo riso sádico de Tião Maldito, o capitão do mato. Ana Lúcia, com um vestido de seda branca e um olhar gélido, segurava um ferro em brasa, forjado com o brasão dos Almeida. “Marca-o, Tião. Que ele nunca esqueça seu lugar”, sentenciava a cruel Ana Lúcia. Elias protestava, amarrado ao tronco: "Ana? Eu não sou um animal! Eu sou o pai do teu filho, PELO AMOR DE DEUS, CESSE COM ESTA LOUCURA!"   Tião Maldito, com um sorriso cruel, ergueu o ferro avermelhado, o calor distorcendo o ar. “Quem diria, um sinhozinho branco, caído em desgraça, vai ser o ÚNICO escravo marcado da Santo Inácio! TOME, BASTARDO!”, zombou, pressionando o ferro contra as costas de Elias. O grito que escapou de sua garganta — “AAAAAAAAAAAAIIIIIIIIIIIIIII!!!” — cortou o ar como uma lâmina, ecoando pelos campos e ferindo os corações dos escravizados, que assistiam com lágrimas nos olhos. A dor era insuportável, o cheiro de carne queimada invadindo o ar. Elias, com o corpo tremendo, desmaiou, tombando no chão quando as cordas foram cortadas. Os escravizados correram para socorrê-lo, carregando-o com cuidado para a senzala. Filomena, a idosa que testemunhara tantas crueldades, limpava as feridas com ervas, chorando. “Meu menino, tu não merece isso...”, sussurrava. Manoel, com os punhos cerrados, enfrentou Tião Maldito, que tentava se aproximar com o chicote. “Desgraçado, já não fez o bastante com o coitado?”, gritou, liderando uma corrente humana que se formou ao redor de Elias, protegendo-o. Tião, acuado, recuou, batendo o chicote no ar. “Vocês vão pagar por isso!”, ameaçou, mas a união dos escravizados era mais forte que seu ódio. Ao acordar, Elias, com o corpo ardendo e a alma em frangalhos, explodiu na maior crise de choro de sua vida. “Por que, Meu Deus? Por que me fazem isso? Elvira! Ana Lúcia! Malditas sejam!”, soluçava, socando o chão de terra batida. “Meu pai... Mãe Cacilda... eu não aguento mais!” Ele segurava o rosário e o lenço, as lágrimas manchando o pano que outrora cheirava ao amor de Cacilda. Os escravizados o abraçaram, suas vozes misturando-se em murmúrios de consolo. “Tu é nosso irmão, Elias. Não deixa eles te quebrarem!”, disse Manoel, enquanto Filomena acariciava seus cabelos negros. Para eles, Elias era o espelho da desumanidade da escravidão, a prova de que a crueldade dos senhores não tinha limites.
   Passou-se um ano, na casa-grande, Pedro, agora com 2 anos, crescia sem conhecer o verdadeiro pai. Seus olhos verdes, tão parecidos com os de Elias, brilhavam com a inocência da infância, mas suas primeiras palavras cortavam como facas. “Olha... Estorvo... sujo...”, dizia, apontando para Elias, que trabalhava no pátio carregando madeira para a caldeira. Ana Lúcia, com um sorriso cruel, incentivava o menino. “Isso, Pedro, ele é só um escravo. Não é nada pra ti.” Elias, ouvindo as palavras do filho, baixava a cabeça, o coração partido. “Meu menino... tu nunca saberá quem sou...”, murmurava, o rosário apertado contra o peito.  Ana Lúcia, agora casada com Antônio Albuquerque, um fidalgo de 24 anos vindo da corte imperial, vivia uma nova fase de poder. Antônio, com seus tristes olhos azuis e maneiras refinadas, desconhecia a história de Elias. Dom Gregório, para justificar a presença de um escravo branco, inventava: “É um uruguaio desgarrado que conseguimos comprar. Ele está marcado.” Antônio, porém, sentia uma estranha afinidade por Elias. A beleza do “escravo branco”, com seus cabelos negros encaracolados e olhos verdes cheios de tristeza, o encantava. Ele via em Elias algo de si mesmo, talvez o peso de segredos que carregava desde a adolescência, quando rumores na corte questionavam sua masculinidade. “Por que ele parece tão... humano?”, pensava Antônio, observando Elias trabalhar sob o sol.

        
        

  Elias, alheio aos sentimentos de Antônio, lutava para sobreviver, cada erro, por menor que fosse, resultava em castigos brutais. Ele ouvia, do pátio, os gritos de prazer de Ana Lúcia e os gemidos de Antônio vindos da casa grande, e tremia de revolta. “Esta mulher um dia, nem que leve décadas, ainda vai pagar pelo que me causou!”, jurava, lembrando as noites de humilhação como “marido”. O prazer carnal, que lhe fora negado, era agora uma arma nas mãos de Ana Lúcia, que amava Antônio com uma intensidade quase obsessiva. Antônio, por sua vez, via em Ana Lúcia um meio de calar os rumores da corte, mas seu coração, em segredo, voltava-se para Elias, um desejo que ele mal compreendia. Em abril de 1831, Ana Lúcia anunciou uma nova gravidez, e nove meses depois nasceu Clara, uma menina de olhos azuis que trouxe, como o nome diz,  uma luz fugaz à sombria Santo Inácio. Elias, da senzala, respirou aliviado. “Em resguardo, essa miserável não me torturará...”, pensou, mas o alívio era temporário. Pedro, crescendo sob a influência de Ana Lúcia, continuava a chamar Elias de “Estorvo”, enquanto Antônio, sem saber, tornava-se o “pai” que o menino admirava .
  Na Fazenda Santa Bárbara, a decadência era irreversível. Anselmo e Helena, afogados na bebida após o aborto espontâneo de Helena, mal geriam a fazenda. Sílvia, livre das obrigações do parto, começava a se encantar por Rodrigo, um capataz mulato e ambicioso que trabalhava na Santa Bárbara e em outras fazendas, despertando ciúmes em Carlos. Carlos, em sua luta contra o alcoolismo, batizou seu filho com Sílvia com o nome de Elias Sobrinho, um gesto que enfureceu Elvira. “Um neto com o nome daquele Estorvo? Nunca o reconhecerei!”, declarou, renegando o bebê. Carlos, com lágrimas nos olhos, defendia sua escolha. “É uma homenagem ao meu irmão, que vocês destruíram!  Quando a notícia da marcação de Elias com ferro em brasa chegou à Santa Bárbara, Carlos desabou. Ele correu para o pátio, gritando com a voz embargada: “Elias! Me perdoe pelo amor de Deus! Eu nunca imaginei que chegaria a isso! Meu irmão, por Deus, me perdoe! Te marcaram como um animal!” Suas palavras ecoaram na noite, mas Elvira, Anselmo e Helena riram, debochando de sua fraqueza. Sílvia, com um olhar de desprezo, murmurou: “Patético. Ele sempre foi o Estorvo. Teve o que mereceu!”
  Na senzala da Santo Inácio, Elias, com as costas marcadas e o coração despedaçado, segurava o rosário e o lenço, murmurando preces. “Pai... Mãe Cacilda... me deem força. Meu filho Pedro nunca me conhecerá, mas eu juro que não vou desistir.” Ele pensava em Carlos, o irmão que outrora o zombara, mas que agora parecia carregar um fio de remorso. “Talvez... talvez ele seja o único que ainda me veja como homem”, pensava, mas a esperança era frágil. Sob o peso da corrente invisível, Elias enfrentava cada dia com uma determinação teimosa, sabendo que sua luta estava longe de acabar. 
Fim do Capítulo VII.


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