Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 9- O "cara de Estorvo".
Capítulo IX:O "cara de Estorvo"
Capital do Império do Brasil, 1835. A cidade pulsava com vida, um mosaico de carruagens reluzentes,
mercados barulhentos e a ostentação da elite imperial. As ruas de paralelepípedos ecoavam com o trotar dos
cavalos e as vozes dos vendedores, enquanto o Palácio de São Cristóvão, residência de Dom Pedro II, lançava sua
sombra sobre a corte. Para Elias Mendonça, agora Elias Villanova, o “escravo branco” da família Almeida, a corte era
um mundo novo e intimidador, onde a opulência contrastava com sua condição humilhante. Oficialmente o
“mordomo fiel” de Pedro, seu filho de seis anos, Elias vivia à sombra da família, um espectro silencioso carregando o
peso de sua verdade oculta.
Pedro, matriculado numa prestigiosa escola para jovens fidalgos, aprendia latim, esgrima e etiqueta, moldando-se para ser o herdeiro dos Almeida. Ana Lúcia dividia seus dias entre cuidar de Clara, agora com quatro anos e tagarelando frases que revelavam uma compaixão inesperada — “Coitadinho do Estorvo, mamãe! Tenho pena dele!” —, e frequentar eventos sociais, onde tentava se firmar entre as damas da capital com seu charme arrogante. Antônio Albuquerque, com seus olhos azuis melancólicos e conexões na corte, navegava entre a política e os salões, mas seus pensamentos voltavam-se cada vez mais para Elias, cujo sofrimento e beleza o fascinavam. Elias, com seus cabelos negros encaracolados e olhos verdes cheios de tristeza, desempenhava suas tarefas com precisão: preparava as roupas de Pedro, organizava seu material escolar e o acompanhava em pequenos trajetos. Mas cada passo era vigiado por Ana Lúcia, cuja crueldade não diminuíra na corte. “Não te esqueça do teu lugar, uruguaio”, sibilava ela, quando pegava Elias olhando para Pedro com ternura. Ele baixava a cabeça, o rosário de Rodolfo e o lenço de Cacilda escondidos sob a camisa puída, e murmurava: “Sim, sinhá.” A marca dos Almeida em suas costas, oculta pelas roupas, ardia como um lembrete de sua condição.
Na escola, Pedro, com sua energia infantil e traços que espelhavam os do pai, tornou-se alvo de uma crueldade inesperada. Otaviano, um aluno esperto de dez anos, notou a semelhança impressionante entre o menino e o “mordomo”. “O Pedrinho de Almeida e Albuquerque é a cara do escravo que o acompanha! Aquele branco caído... o Estorvo... Até o beiço é igual... hahaha!”, anunciou ele, rindo alto na turma. A observação espalhou-se como rastilho de pólvora, e logo as crianças perceberam também. Após o juramento à bandeira, quando os professores buscavam suas turmas, um coro infantil ecoava no pátio: “Cara do Estorvo, cara do Estorvo! Quando crescer vai ter a cara do escravo! Tu tens a CARA DO ESTORVO!” Pedro, furioso, corria para os braços de Antônio, seu “pai”, reclamando com lágrimas de raiva. “Estão dizendo que eu tenho a cara do escravo! Que eu me pareço com o ‘Estorvo’, virei ‘A Cara do Estorvo’! E tudo culpa dele, dele!”, bradava, desferindo socos na barriga de Elias. Elias, atingido mais pela humilhação do que pela dor, caía de joelhos, os olhos verdes fixos no filho. “Eu não sou Estorvo... sinhozinho, eu sou teu...”, começou, a voz tremendo de emoção, mas Ana Lúcia interrompeu, puxando seus cabelos com violência. “Teu o quê, Estorvo?”, gritou, o rosto contorcido de ódio. Elias, com o coração partido, murmurou: “O teu... escravo...” Clara, do alto de seus quatro anos, correu até o irmão, puxando sua camisa. “Não trata o Estorvo deste jeito! Ele é tão bonzinho!”, disse, os olhos azuis cheios de lágrimas. Pedro, irritado, retrucou: “Clara, não protege esse Estorvo! Ele não merece!” Antônio, testemunhando a cena, explodiu em revolta. “ANA! Aqui não é a Santo Inácio! Pelo visto, não será apenas Pedro quem deverá aprender modos refinados!”, gritou, sua voz ecoando na sala da casa alugada na corte. Voltando-se para Elias, com uma gentileza que escondia seu amor secreto, disse: “Elias, ajude Serafina a pôr a mesa e depois descanse em teu humilde quarto.” Elias, cabisbaixo, obedeceu, sentindo o peso do olhar de Ana Lúcia como uma corrente.
Serafina, a governanta portuguesa, observava tudo em silêncio. A semelhança entre Elias e Pedro era inegável — os mesmos olhos verdes, os mesmos lábios grossos, o mesmo formato do rosto. Em seus pensamentos, ela montava o quebra-cabeça. “Que demônio de mulher é essa? Ter um filho com um escravo?! Imagino como essa criança foi gerada, pelo que falam das sinhás de engenho e suas taras! Tremo só de pensar no que passou esse coitado, deve doer demais ser o escravo do próprio filho”, refletia, mantendo o segredo. Ela tratava Elias com uma bondade discreta, oferecendo-lhe um pedaço extra de pão ou um momento de descanso, mas nunca ousava confrontar Ana Lúcia.
Antônio, por sua vez, tratava Elias com uma gentileza que o confundia. Ele lhe dava tarefas menos pesadas, conversava sobre as maravilhas do Rio — o Theatro São Pedro, as festas no Largo do Rocio — e, em raros momentos, parecia prestes a dizer algo mais profundo, mas hesitava, os olhos azuis baixando com timidez. Elias, endurecido por anos de traições, não confiava plenamente. “Ele é só outro senhor. Não posso me iludir”, pensava, embora a bondade de Antônio fosse um alívio em meio ao inferno. Estar na corte, longe de Tião Maldito e do tronco da Santo Inácio, era uma trégua frágil, mas Elias a valorizava. Ele observava Pedro crescer, aprendendo a ler e a montar a cavalo, e guardava cada momento como um tesouro, mesmo que fosse de longe. Mas a semelhança com Pedro trazia novas humilhações. Em alguns momentos, o menino, hesitante, encarava Elias com uma expressão confusa, como se tentasse entender algo. “Não quero ter cara de Estorvo!”, chorava, correndo para os braços de Antônio. Elias, vendo o filho se afastar, sentia o coração se partir. “Meu menino... se tu soubesse...”, murmurava, as lágrimas contidas.
Clara, com sua inocência, era a única luz verdadeira. Quando Elias chorava em silêncio, limpando o chão da casa, ela se aproximava, segurando sua mão calejada. “Não chora, Estorvo... Eu também vou chorar!”, dizia, os olhos brilhando. Elias, com um sorriso triste, respondia: “Pela sinhazinha, que me trata como gente, eu paro de chorar!” A compaixão de Clara, junto com a bondade discreta de Serafina e Antônio, mantinha viva a centelha em seu coração.
A vida na corte, porém, era um cativeiro disfarçado. A marca em suas costas e a “carta de propriedade” forjada por Dom Gregório o mantinham preso, e Ana Lúcia nunca deixava de reforçar sua condição. “Tu és um escravo, uruguaio. Não te ilude com a cidade”, dizia, com um sorriso cruel. Elias sabia que não podia revelar ser o pai de Pedro, mas cada insulto, cada soco do filho, cada olhar de desprezo de Ana Lúcia era uma nova ferida. Antônio, com seus sentimentos não ditos, complicava tudo. Elias via nele um mestre benevolente, não um homem apaixonado, e mantinha sua guarda alta.
Em Pelotas, Carlos com Clementina e Elias Sobrinho, tentava reconstruir sua vida, mas o remorso pelo destino de Elias o consumia. “Eu zombava dele, mas ele é meu irmão... Como pude ser tão cego?”, dizia, abraçando Clementina. A morte de Elvira, celebrada pelos escravizados, e a posterior morte na miséria de Anselmo e Helena eram, para Carlos, um castigo divino. “A Santa Bárbara caiu porque merecemos. Elias paga o preço pelos nossos pecados”, murmurava, prometendo dar ao filho a dignidade que Elias nunca teve.
Na corte, Elias, com o rosário e o lenço como únicos consolos, enfrentava cada dia com uma teimosia obstinada. Ele guardava os pequenos momentos com Pedro — um olhar curioso, uma palavra menos cruel — como tesouros. “Talvez um dia... talvez ele saiba quem sou”, pensava, embora a esperança fosse frágil. A compaixão de Clara, os gestos de Antônio e a discrição de Serafina eram luzes em meio às trevas, mas Ana Lúcia permanecia uma sombra opressiva. Elias não sabia quanto tempo essa trégua duraria, nem o que o futuro reservava, mas, como sempre, agarrava-se à promessa feita a Rodolfo e Cacilda: “Eu vou sobreviver. Por meu filho. Por mim.” Na capital do Império, entre a ostentação e a dor, sua jornada continuava, um equilíbrio precário entre o silêncio e a esperança.
Fim do capítulo IX.
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