Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 14- A verdade que liberta, a catarse da liberdade.
Capítulo XIV: A Verdade que Liberta - A Catarse da Liberdade
Pelotas, Província do Rio Grande do Sul, Império do Brasil, 1844. A manhã após o funeral de Dom Gregório
amanheceu pesada na Fazenda Santo Inácio, como se o ar carregasse o peso de segredos finalmente expostos. A
casa-grande, com suas paredes brancas e janelas imponentes, parecia sufocar sob a tensão que se formara na noite
anterior, quando Elias Mendonça, outrora Elias Villanova, o escravo branco, gritara sua verdade ao mundo. A
revelação de que ele era o pai de Pedro abalara a família Almeida de Albuquerque, e o silêncio da noite dera lugar a
um confronto inevitável.
Elias, aos 37 anos, estava exausto, mas uma chama de determinação ardia em seus olhos verdes, agora
emoldurados por rugas e fios grisalhos. Ele havia carregado o rosário de Rodolfo e o lenço de Cacilda como âncoras
por quase duas décadas, mas naquela manhã, ao descer as escadas da casa-grande, sentia que o momento de sua
redenção havia chegado. Seu peito, marcado pelas cicatrizes de anos de humilhação, pulsava com uma coragem
que nem ele sabia que ainda possuía. Ele sabia que precisava enfrentar Pedro, seu filho, e mostrar-lhe a verdade
crua que o mundo lhe negara por 15 anos.
No salão principal, Pedro, de 15 anos, estava sentado, o rosto pálido, os olhos verdes arregalados, ainda
atordoado pela revelação da noite anterior. A semelhança com Elias — os cabelos negros encaracolados, os lábios
grossos, o formato do rosto, a mesma cor dos olhos — era agora uma acusação viva, um espelho que ele não podia mais ignorar. Ana Lúcia,
com os lábios apertados e o olhar faiscando de ódio, mantinha-se de pé, tentando recuperar o controle. Clara, aos
13 anos, segurava a mão do pequeno Miguel, de apenas quatro anos, enquanto Serafina, a governanta portuguesa,
observava em silêncio, o coração apertado pela dor que antecipava. Antônio, com seus olhos azuis cheios de
angústia, permanecia ao lado de Elias, um apoio tácito para o homem que amava.
Elias avançou até o centro do salão, o coração batendo como um tambor. Ele parou diante de Pedro, que o encarou, confuso, o corpo tremendo com uma mistura de medo e vergonha. "Pedro... meu filho... — começou Elias, a voz rouca, carregada de uma emoção que parecia rasgar sua alma. —Eu não sou teu escravo! EU SOU TEU PAI! TEU PAI!" As palavras explodiram como um trovão, ecoando pelas paredes do salão, cada sílaba carregada de 15 anos de silêncio forçado, de humilhações, de noites de tormento. —Por isso somos idênticos! Por isso tu tens meu rosto, meus olhos, meu sangue, minha alma! Com um gesto brusco, Elias arrancou a camisa puída, revelando o torso coberto de cicatrizes. Ele girou o corpo, expondo as costas, onde o brasão dos Almeida, marcado a ferro quente, erguia-se em relevo, uma cicatriz grotesca que contava a história de sua desumanização. "VEJA, COM TEUS OLHOS, O QUE TUA MÃE FEZ COMIGO! Veja, meu filho" — gritou, a voz quebrando-se em soluços, as lágrimas escorrendo pelo rosto como rios de dor. —Este é o preço que paguei por te trazer ao mundo, meu filho! Este é o inferno que vivi pra que tu fosses o herdeiro dos Almeida.
Pedro, paralisado, caiu de joelhos no chão, os olhos arregalados fixos na marca, o corpo tremendo como se o peso da verdade o esmagasse. "Estorvo... meu pai... o Estorvo... é meu... pai? "— balbuciou, a voz falhando, enquanto a realidade o engolia. As memórias de anos maltratando Elias, chamando-o de “Estorvo”, rindo de sua dor, voltaram como lâminas. —"Meu Deus... eu maltratei meu pai por 15 anos? — Ele cobriu o rosto com as mãos, um grito gutural escapando de sua garganta. —EU SOU UM MONSTRO... COMO MINHA MÃE E MEU AVÔ!" Clara, com lágrimas escorrendo pelo rosto, soltou a mão de Miguel e correu até Ana Lúcia, os olhos faiscando de indignação. —Mãe, como pôde? — gritou, a voz infantil carregada de horror. —"Como pôde fazer isso com o pai do Pedro? Como pôde ser tão cruel?" — Ana Lúcia, pela primeira vez, pareceu recuar, o rosto pálido, incapaz de responder. A ama de companhia de Miguel, percebendo o impacto da cena, pegou o menino no colo e correu para o quarto, protegendo-o do caos. Pedro, ainda de joelhos, arrastou-se até Elias, os olhos inundados de lágrimas. Ele estendeu as mãos trêmulas, tocando as pernas do pai, como se buscasse confirmar que ele era real. —Pai... — sussurrou, a palavra soando estranha, mas verdadeira, em sua boca. Ele se levantou, hesitante, e, num impulso, jogou os braços ao redor de Elias, puxando-o para um abraço desesperado. —"AAAAHHHHH... PAI... QUE DOR... O QUE FIZERAM COM MEU PAI??? — gritou, a voz rasgada, enquanto suas mãos deslizavam pelas costas de Elias, sentindo o relevo maldito da marca dos Almeida. —ME PERDOA, PAIIII!!!"
Elias, com o coração despedaçado, caiu nos braços do filho, os soluços sacudindo seu corpo como se todo o sofrimento de sua vida — as chibatadas, o ferro quente, as noites de violência, a venda como escravo — se dissolvesse naquele momento. —Meu filho... meu Pedro... — soluçava, a voz entrecortada, enquanto segurava o rosto do jovem, os polegares traçando os traços que eram um espelho dos seus. —Eu nunca quis nada além de te amar... eu suportei tudo por ti... tudo! — Cada palavra era uma catarse, uma liberação de 15 anos de silêncio, de dor, de amor reprimido. As lágrimas de pai e filho misturavam-se, um rio que lavava as cicatrizes de ambos, derrubando as muralhas de ódio e ignorância que os separaram. Pedro repetia, como um mantra, —Meu pai... meu pai... — a cada vez que dizia, era como se apagasse um pouco mais o “Estorvo” que ele aprendera a odiar. Para Elias, aquelas palavras eram um bálsamo, um milagre que ele nunca ousara sonhar. Ele segurava Pedro com força, como se temesse que o momento se dissolvesse, o rosário de Rodolfo balançando contra seu peito, o lenço de Cacilda apertado em sua mão. —"Pai... Mãe Cacilda... ele sabe... meu filho sabe quem eu sou, finalmente... "— murmurava, entre lágrimas, como se os céus testemunhassem sua redenção. Clara, ainda encarando Ana Lúcia com um olhar de reprovação, correu até Elias e Pedro, abraçando-os com seus bracinhos frágeis. —"Agora, podes dizer que tu és o pai de Pedro... eu sempre soube que tu era especial!"— disse, a voz embargada, enquanto Ana Lúcia, pela primeira vez em anos, parecia pequena, derrotada pela verdade que não podia mais negar.
Antônio, com lágrimas nos olhos, aproximou-se, colocando a mão no ombro de Elias. —"Tu foste mais forte que todos nós, meu amor" — sussurrou, a voz carregada de admiração. Serafina, no canto do salão, enxugava as lágrimas, murmurando uma prece em português. —"Que Deus perdoe essa mulher... e proteja esse homem "— pensava, enquanto via a cena que marcaria a história dos Almeida para sempre. O salão, antes um palco de poder e opressão, tornou-se um templo de catarse. Elias e Pedro, pai e filho, abraçados no chão, choravam a dor de 15 anos roubados, a verdade finalmente unindo-os. Ana Lúcia, com o orgulho em frangalhos, saiu do salão em silêncio, incapaz de enfrentar o peso de sua crueldade. Clara, com sua pureza, e Antônio, com seu amor, eram testemunhas de um momento que, para Elias, era mais que uma libertação física — era a recuperação de sua humanidade, de seu nome, de seu filho. Elias, com Pedro nos braços, olhou para o teto, como se visse Rodolfo e Cacilda no céu. —"Eu consegui, pai... Mãe Cacilda... Após todos estes anos, meu filho me chama de pai" — sussurrou, enquanto as lágrimas continuavam a cair, agora não de dor, mas de uma alegria tão profunda que parecia curar, ainda que parcialmente, as cicatrizes de sua alma
Fim do Capítulo XIV.
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