Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 5 - A maior das violências

  Capítulo V: A Maior das Violências -  O Tormento da Noite
  Fazenda Santo Inácio, Pelotas, Província do Rio Grande do Sul, Império do Brasil, 1828. A imensa propriedade de Dom Gregório de Almeida, com seus campos vastos e a casa-grande de paredes brancas reluzindo sob o sol, era um reino de opulência e crueldade. Para Elias Mendonça, o jovem de 21 anos com olhos verdes e cabelos negros encaracolados, a Santo Inácio não era um lar, mas uma nova senzala, mais sofisticada e mais cruel do que a da Fazenda Santa Bárbara. Sua beleza, que outrora o marcara como um “preto nascido branco”, agora o condenava a um papel que ele nunca imaginara: o de um reprodutor, um objeto nas mãos de Ana Lúcia e Dom Gregório. No dia do casamento, após a cerimônia fria na capela da fazenda, Ana Lúcia levou Elias ao quarto principal da casa grande, uma sala de paredes decoradas com tapeçarias e uma cama de dossel que parecia zombar da sua condição. Ele, ainda atordoado pela rapidez dos eventos, segurava o rosário de Rodolfo e o lenço de Cacilda contra o peito, como talismãs contra o medo que o consumia. Ana Lúcia, com seus 19 anos e um vestido de seda que realçava sua beleza arrogante, fechou a porta e encarou-o com um olhar que misturava desprezo e posse. “Escuta bem, Estorvo”, disse, a voz fria como o vento dos pampas. “Tua única função nesta casa é me dar um filho varão, um herdeiro para os Almeida. Não espera que eu te seja submissa, porque será o oposto. Depois de me dar o que quero, conhecerás teu lugar de fato. O que tu merece!", dizia uma autoritária e mimada Sinhá Ana Lúcia.  Elias, com o coração acelerado, tentou falar. “Sinhá Ana Lúcia… eu… eu sou teu marido… não podemos…” Ela riu, um som cortante que ecoou pelo quarto. “Marido? Tu és apenas uma ferramenta, Estorvo. Um animal bonito que compramos. Nada mais.” As palavras o atingiram como um chicote, e ele sentiu o peso de sua nova realidade. Ele não era um homem aos olhos dela, apenas um meio para um fim
   A noite de núpcias, que deveria ter sido a primeira vez que Elias, aos 21 anos, tocaria uma mulher com desejo ou afeto, transformou-se num pesadelo que o marcaria para sempre. Ana Lúcia, com uma crueldade calculada, chamou os capatazes da fazenda. “João Mendes! Tião Maldito! Vocês, venham! Tirem as vestes do Estorvo agora!”, ordenou, apontando para Elias como se ele fosse uma presa.

       


 Elias, apavorado, tentou resistir. “Não! Por favor, sinhá! Isso não é certo!”, gritou, recuando até encostar-se à parede. Mas João Mendes, um homem de olhos frios e mãos brutais, e Tião Maldito, com um sorriso sádico, avançaram. “Quieto, Estorvo!”, rosnou Tião, enquanto rasgavam o terno emprestado de Elias, deixando-o exposto e vulnerável. Elias se debatia, o corpo musculoso tenso, mas os capatazes eram mais fortes. Eles o arrastaram até a cama, amarrando seus pulsos e tornozelos com cordas ásperas que cortavam a pele. “Por favor… não façam isso…”, suplicava Elias, a voz embargada, os olhos verdes marejados. Ana Lúcia, impassível, ordenou: “Vendem os olhos dele. Ele não merece me ver.” João Mendes amarrou uma faixa preta sobre os olhos de Elias, mergulhando-o numa escuridão aterradora. “Estorvo de corpo bonito!”, zombou Ana Lúcia, a voz carregada de escárnio. “Tu nunca vai me ver ou me tocar. Apenas me sentirá.” O quarto encheu-se de risos cruéis dos capatazes, enquanto Elias, amarrado e cego, tremia de humilhação. Então, a porta se abriu, e Filomena, uma escrava idosa de olhos tristes e mãos calejadas, entrou carregando uma tigela com um chá de ervas. Conhecedora do poder das folhas, ela fora forçada por Ana Lúcia a preparar uma beberagem estimulante. Filomena, com lágrimas de horror e arrependimento, aproximou-se de Elias e sussurrou: “Bebe, menino… vai ser rápido.” Elias, com o coração partido, balançou a cabeça. “Não… por favor… eu não quero…Ana...por favor!” Mas Ana Lúcia gritou: “Dê o chá pro Estorvo, agora! Beba, Estorvo! Não chores, vai ficar pior!” Tião Maldito segurou o queixo de Elias, forçando-o a abrir a boca, enquanto Filomena, com as mãos trêmulas, derramava o líquido amargo em sua garganta. Elias engasgou, o gosto forte queimando sua língua, e então foi amordaçado com um pano que abafava seus gritos. O chá, com suas propriedades afrodisíacas, começou a fazer efeito, e seu corpo, contra sua vontade, reagiu. Ana Lúcia, com frieza, consumou o ato, tratando Elias como um objeto, um meio para seu fim. Para Elias, o clímax não foi prazer, mas um tormento, uma violação de sua alma. Ele chorava sob a venda, o corpo se contorcendo em agonia, enquanto os risos dos capatazes ecoavam em seus ouvidos. 
  Quando finalmente o desamarraram, retirando a venda e a mordaça, Ana Lúcia já havia deixado o quarto. Elias, ainda nu, caiu de joelhos no chão frio, o corpo tremendo, o rosto encharcado de lágrimas. Ele socava o assoalho com os punhos, a dor física misturando-se à humilhação moral e psicológica. “Por que, meu Deus? Por que a vida me trata desta maneira?”, soluçava, a voz rouca de desespero. “Será que nunca terei a liberdade de fato? Estou… em… frangalhos!” Ele agarrou o rosário de Rodolfo e o lenço de Cacilda, pressionando-os contra o peito. “Meu pai… pediste pra eu ser forte… mas a força me foge! Não consigo nomear o que passei… Nem na cela suja da Cisplatina fui humilhado desta maneira! Mãe Cacilda… do céu… me ampare! Meu pai, eu peço tanto pra tu virdes me buscar… por que Deus não permite?” Elias, que enfrentara a Guerra da Cisplatina e o cativeiro uruguaio, percebeu que nenhuma cela fétida o preparara para tamanha degradação. Ele era, de fato, um escravo, e Ana Lúcia, com sua crueldade, era sua sinhá, mais tirânica do que a cruel Elvira jamais fora.
 Na senzala da Santo Inácio, o relato de Filomena sobre o “circo dos horrores” de Ana Lúcia espalhou-se como um lamento. Os escravizados, reunidos à luz de velas, choravam por Elias. “Sinhazinha Ana Lúcia é o demônio em forma de moça”, murmurava uma jovem, enquanto outra lembrava: “Sinhazinha Maria Regina, que fugiu pra Cabo Verde, era diferente. Tinha coração. Tratava a gente como gente.” Filomena, com os olhos inchados, balançava a cabeça. “Aquele menino não merecia isso. Ele é um anjo preso no inferno.” A saudade de Maria Regina, a herdeira fugitiva que teria sido uma sinhá justa, pesava nos corações, enquanto Ana Lúcia, como herdeira de Dom Gregório, tornava se o pesadelo da senzala.   Na manhã seguinte, Elias desceu para o café da manhã na casa-grande, o último a chegar. Ele vestia uma camisa simples, os cabelos desgrenhados, os olhos verdes opacos de vergonha. Não tinha coragem de olhar para Ana Lúcia, que ria com o pai sobre trivialidades, ou para Dom Gregório, cujo olhar o avaliava como se ele fosse um animal de criação. “Coma, Estorvo”, disse Ana Lúcia, com um tom de comando, enquanto empurrava um prato de pão em sua direção. “Preciso de ti forte pro que importa.” Dom Gregório, com um sorriso enigmático, apenas observava, satisfeito com o andamento de seu plano. Semanas depois, após mais duas noites tão torturantes quanto a primeira, com Elias se debatendo de dor e vergonha, Ana Lúcia começou a sentir os primeiros enjoos. Num fim de tarde, enquanto Elias varria o pátio da casa-grande — uma tarefa que os capatazes lhe impunham para reforçar sua humilhação —, ela o chamou. “Estorvo, parece que tua serventia deu fruto”, disse, com um sorriso cruel, tocando a barriga ainda plana. “Mas ouça bem: se nascer uma menina, tu irás para o tronco, pagar pelo erro. Reze pra ser um menino, se tem amor à tua pele!” Elias, com o coração apertado, baixou a cabeça. “Sim, sinhá”, murmurou, enquanto se agarrava ao rosário do pai, rezando em segredo por um varão, não por amor a Ana Lúcia, mas pela vã esperança de que um filho homem pudesse aliviar seu calvário. Mas ele sabia, no fundo da alma, que seu sofrimento estava apenas começando. A casa-grande da Santo Inácio, com seus lustres e tapeçarias, era uma prisão dourada, e Ana Lúcia, com sua crueldade, era a chave que o mantinha acorrentado. Ele pensava em Cacilda, em Rodolfo, em Zé Preto e Sinhá Benedita, e sentia o peso de sua promessa não cumprida. “Eu um dia jurei libertar vocês…”, sussurrava para si mesmo, à noite, no quarto apertado que lhe fora designado. “Mas como, se nem eu mesmo não sou livre? Me perdoem!"
  Na Fazenda Santa Bárbara, a “venda” de Elias era motivo de risos e deboches. Elvira, sentada na varanda, lia as fofocas de Pelotas com um sorriso satisfeito. “O Estorvo sendo usado como reprodutor! Quem diria que ele teria serventia!”, dizia, enquanto Anselmo contava o dinheiro recebido de Dom Gregório — quatro contos de réis, um bálsamo para a família perdulária. Helena, com um leque na mão, ria alto. “Ana Lúcia deve estar se divertindo com o bicho que comprou!” Carlos, bêbado, gargalhava até engasgar. “O Estorvo no tronco? Quero ver isso!” Sílvia, com seu desprezo habitual, completava: “Um escravo branco virando pai de um Almeida? Que vergonha pra eles!” Um envelope lacrado, entregue por um mensageiro de Dom Gregório, chegou à Santa Bárbara com os dizeres: “Só abram quando eu der a ordem.” Anselmo, curioso, virou o envelope nas mãos, mas obedeceu, guardando-o numa gaveta. “O que será que o velho planeja?”, murmurou, enquanto Elvira sorria, imaginando mais humilhações para o filho que nunca quis.
  Na Santo Inácio, Elias, com o corpo marcado pelas cordas e a alma ferida por Ana Lúcia, tentava encontrar forças para sobreviver. Ele olhava para o horizonte, onde o sol se punha sobre os campos, e pensava em sua promessa a Cacilda. “Eu não vou desistir, Mãe Cacilda!”, sussurrava, tocando o lenço dela. “Mesmo que o inferno me engula, eu vou encontrar um jeito.” Mas, naquele momento, ele era apenas um homem quebrado, um escravo em pele branca, preso num jogo de poder que o usava e descartava. E o pior ainda estava por vir.
 Fim do Capítulo V 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 1

Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 2 ( A esperança de ser um herói )

Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 3 ( A Glória, a Queda e o Luto )