Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 6 - Nasce um filho, surge um escravo.

 Capítulo VI: Nasce um filho, surge um escravo
   Fazenda Santo Inácio, Pelotas, Província do Rio Grande do Sul, Império do Brasil, 23 de setembro de 1829. O nascimento de Pedro, o primeiro filho de Elias Mendonça e Ana Lúcia de Almeida, trouxe um breve raio de luz à escuridão que consumia a vida de Elias. O menino, forte e saudável, chorava com uma força que contrastava com o lamento frágil de Elias ao nascer, há 22 anos. Na sala de parto, decorada com cortinas de linho e móveis de mogno, Elias, ainda marcado pelas noites de humilhação impostas por Ana Lúcia, observava o filho com uma mistura de temor e ternura. Seus olhos verdes, opacos pela dor, brilharam por um instante enquanto ele sussurrava, a voz trêmula de emoção: “Meu… filho! Eu… sou… pai… Meu Deus… obrigado! Ele… é… tão… belo! Parece comigo e… com o meu pai!” Ele estendeu as mãos calejadas, desejando tocar o menino, mas Ana Lúcia, segurando Pedro com orgulho possessivo, lançou-lhe um olhar que o fez recuar. “Não tocarás com essas mãos calejadas e sujas no MEU filho! Jamais!”, ordenou, a voz cortante como uma lâmina. Elias, com o coração apertado, tentou protestar. “Ana… ele é meu… filho!” Ela o interrompeu, os olhos faiscando de desprezo. “Cale-se, ESTORVO! Suma deste quarto! Não quero mais ter o fardo de tolerar teu cheiro de preto trabalhador! Suma da minha vista!” As palavras o atingiram como um golpe, e Elias, com a cabeça baixa, saiu do quarto, o rosário de Rodolfo e o lenço de Cacilda apertados contra o peito, como se fossem as únicas coisas que o mantinham inteiro.

    




 A alegria fugaz do nascimento de Pedro foi rapidamente eclipsada pela maior humilhação de sua vida. Naquela mesma tarde, enquanto o sol se punha sobre os campos da Santo Inácio, Dom Gregório de Almeida, com sua barba branca e olhos astutos, chamou Elias ao pátio da casa-grande. João Mendes, o feitor de olhar frio, e Tião Maldito, o capitão do mato com seu sorriso sádico, já o aguardavam. “Tirem a camisa e os calçados dele”, ordenou Dom Gregório, a voz calma, mas carregada de malícia. Elias, confuso, tentou recuar. “Sinhô… por quê? Eu fiz o que pediram… dei um varão…” Mas João Mendes agarrou-o pelos braços, enquanto Tião Maldito arrancava sua camisa, expondo o peito cicatrizado pelas noites de violência. Os capatazes o arrastaram até o tronco, um poste de madeira cravado no centro do pátio, onde os escravizados eram castigados. Lá amarraram os braços de Elias pelos pulsos, fazendo-o gritar de dor. Elias, com o coração disparado, gritava: “Não podes fazer isto! Não é certo! Eu sou Elias Mendonça, filho legítimo de Dom Rodolfo Mendonça! Eu nasci livre!” Dom Gregório aproximou-se, puxando os cabelos negros de Elias com força, e sussurrou em seu ouvido, a voz carregada de crueldade: “Livre? Não me faças rir, Estorvo! Eu já providenciei que tua existência como homem livre fosse apagada. Elias Mendonça é oficialmente um homem morto! Tua certidão de óbito já está com tua família, que a recebeu com brindes! E agora tenho tua carta de propriedade forjada, escravo branco, Elias Villanova, o escravo da vingança! Tu agora é um uruguaio condenado! Minha filha é oficialmente viúva e pronta pra se casar com um homem verdadeiramente livre!"
   Elias, com os olhos arregalados de pavor, gritava, a voz ecoando pelo pátio: “PELO AMOR DE DEUS, ME ACORDEM DESTE PESADELO!” Dom Gregório riu, um som seco e cruel. “Acaso não tinhas noção do tamanho do ódio da tua família?” Elias, com lágrimas escorrendo, berrou: “EU… SABIA! Elvira, a maldita mulher que me pariu… sempre deixou claro! Sempre desconfiei… só não tinha ciência do tamanho do ódio… daqueles malditos! Me venderam como escravo! Dou um herdeiro varão pra esta casa e assim me pagam? EU NÃO QUERO SER ESCRAVO! Quero pegar meu filho! Pedro é meu filho! Eu NASCI LIVRE!” Dom Gregório terminou a cena com um tapa sonoro no rosto de Elias, que ecoou como um trovão. “Cale-se, ESTORVO!”, rosnou Tião Maldito, enquanto João Mendes amarrava os pulsos de Elias ao tronco. O chicote de Tião Maldito cortou o ar, e as primeiras chibatadas rasgaram a pele das costas de Elias, arrancando gritos de dor. “NÃO! MEU FILHO! PEDRO!”, ele berrava, o corpo se contorcendo contra as cordas. Cada golpe era uma sentença, cada ferida uma confirmação de sua nova condição. Após dezenas de chibatadas, Elias desmaiou, o corpo inerte, o sangue escorrendo pelo tronco. Ele não viu os escravizados da senzala, que observavam de longe, chorando em silêncio, nem Ana Lúcia, que, da varanda, sorria com satisfação. Os escravizados com lágrimas de compaixão levavam o inconsciente Elias para a senzala, onde seria o seu novo lugar na sombria Fazenda Santo Inácio. 
  Quando Elias acordou, estava jogado numa esteira na senzala da Santo Inácio, sem camisa, o corpo ardendo de dor. O cheiro de terra úmida e o murmúrio dos escravizados o cercavam. Ele abriu os olhos, os cabelos negros colados ao rosto pelo suor e sangue, e percebeu sua nova realidade. “Elvira! MULHER MALDITA!”, gritou, socando o chão de terra com os punhos, a raiva e a revolta explodindo em seu peito. Ele agarrou o rosário de Rodolfo com força, as contas cravando-se em sua palma. “Pai… me leve… me leve pro teu lado, pai!”, soluçava, as lágrimas misturando-se à poeira. “Mãe Cacilda… do céu… me dá força… eu não aguento mais!” Filomena, a escrava idosa que testemunhara suas humilhações, ajoelhou-se ao seu lado, limpando suas feridas com um pano úmido. “Menino… tu é forte… mais forte do que eles”, murmurava, a voz embargada. “Sinhazinha Maria Regina, se estivesse aqui, não deixava isso. Mas tu tens que viver… pelo teu filho.” Elias, com os olhos verdes brilhando de dor, balançou a cabeça. “Meu filho… Pedro… eles não vão deixar eu tocar nele… sou um escravo… um escravo branco…” A palavra “escravo” saiu como um lamento, e ele caiu num choro convulsivo, o corpo tremendo. Na senzala, os escravizados se reuniram ao redor dele, oferecendo o pouco consolo que podiam. “Tu não tá sozinho, Elias”, dizia um jovem. “Teu pai tá te olhando, menino. Não desiste”, murmurava outro. Mas Elias sentia-se mais quebrado do que nunca, um homem cuja liberdade fora roubada, cuja paternidade lhe fora negada, e cuja vida agora pertencia a Dom Gregório e Ana Lúcia.
   Na Fazenda Santa Bárbara, a mesma noite era de celebração. O envelope lacrado, enviado por Dom Gregório meses antes, foi finalmente aberto por Anselmo. Dentro, a certidão de óbito forjada de Elias Mendonça, declarando-o morto por “febre” em 1829. Anselmo leu o documento em voz alta, um sorriso de satisfação no rosto. “O Estorvo está morto!”, exclamou, erguendo uma taça de vinho. Elvira, com os olhos brilhando de prazer, riu. “Finalmente, livrei-me daquele peso! Que apodreça na senzala dos Almeida!” Helena, com seu leque, completou: “Um escravo  branco, agora oficial. Que ironia!” Sílvia, grávida de Carlos, observava em silêncio, um leve desconforto em seu olhar, mas sem coragem de falar. Carlos, porém, que lutava para abandonar a cachaça, ouviu a leitura com horror. Ele cambaleou, o rosto pálido, e murmurou: “Elias está morto? Mesmo vivo? Como puderam descer tão baixo por dinheiro?!” Seus olhos, pela primeira vez em anos, mostraram um brilho de remorso. “Eu zombava dele, mas… Deus… eu não posso ser esse monstro! Ajudei...a tornar Elias...em...um escravo!” Ele caiu de joelhos, as mãos cobrindo o rosto, enquanto Sílvia o encarava com desdém. “Para de drama, Carlos. Ele nunca foi teu irmão. Era só o Estorvo.” Anselmo, irritado com a reação de Carlos, bateu na mesa. “Cala a boca, seu bêbado! O dinheiro dos Almeida nos salvou! Elias cumpriu seu papel. Agora, que viva como o escravo que sempre foi!” A risada de Elvira ecoou pela sala, um som que parecia selar o destino de Elias.
 Na senzala da Santo Inácio, Elias, com o corpo marcado pelas chibatadas e a alma despedaçada, olhava para o teto de taipa, o rosário do pai, Rodolfo, apertado na mão. "Pai me ajude!". Ele pensava em Pedro, o filho que nunca poderia abraçar, e em Cacilda, a mãe do coração, cuja memória o mantinha vivo. “Eu não vou desistir, Mãe”, sussurrou, a voz rouca. “Por ti, por meu pai, por meu filho… eu vou encontrar um jeito.” Mas, naquele momento, ele era apenas Elias Villanova, o escravo branco, um homem sem nome, sem liberdade, preso num inferno que parecia não ter fim. E, no horizonte, o plano de Dom Gregório avançava, com Ana Lúcia já sendo preparada para um novo casamento, enquanto Elias, oficialmente morto, era condenado a uma vida de correntes.
 Fim do Capítulo VI 


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