Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 13- As verdades ditas na Fazenda Santo Inácio. A LIBERDADE, afinal.

  Capítulo XIII: A Verdade Grita na Santo Inácio
 Pelotas, Província do Rio Grande do Sul, Império do Brasil, 1844. A notícia da morte de Dom Gregório de Almeida, vítima de uma pneumonia implacável, ecoou como um trovão pela Fazenda Santo Inácio. Para Elias Mendonça, agora com 37 anos e marcado pelas cicatrizes físicas e emocionais de sua vida como “Elias Villanova, o escravo branco”, a perspectiva de retornar à fazenda, palco de suas maiores dores, era aterradora. A Santo Inácio evocava memórias do tronco, do ferro em brasa, das noites de violência com Ana Lúcia e da perda de sua identidade. Ele tremia na casa alugada na corte, o rosário de Rodolfo e o lenço de Cacilda apertados contra o peito, enquanto murmurava: “Pai... Mãe Cacilda... não me deixem voltar pro inferno...” Clara, aos 13 anos, com seus olhos azuis cheios de compaixão, correu para consolá-lo. “Elias, meu pai não vai permitir que mamãe te maltrate, e vovô está morto. Papai é teu dono agora. A tua alforria pode vir agora!”, disse, segurando sua mão calejada. Elias, com um sorriso triste, acariciou os cabelos da menina. “Tua bondade me mantém vivo, sinhazinha. Mas, Dona Ana Lúcia... ela é um demônio”, respondeu, a voz embargada. Apesar do medo, a promessa de Clara e a proteção de Antônio, seu amante secreto, ofereciam um fio de esperança.
 


   A viagem de volta a Pelotas foi um martírio silencioso. Elias, mais uma vez confinado a uma carroça coberta por lona, sentia o peso do passado enquanto a carruagem luxuosa dos Almeida seguia à frente. Pedro, agora com 15 anos, exibia a arrogância de um jovem fidalgo, ignorando o “Estorvo” que o acompanhava. Ana Lúcia, cega pelo poder, planejava consolidar sua posição como sinhá da Santo Inácio, enquanto Antônio, com Miguel, de 4 anos, e Clara ao seu lado, mantinha seus olhos em Elias, prometendo a si mesmo que o libertaria.
    O cortejo fúnebre de Dom Gregório, realizado em Pelotas, reuniu a elite da província, com suas vestes negras e murmúrios de condolências. Elias, como escravo, caminhava na última fileira, cabisbaixo, o corpo curvado pelo peso de anos de humilhações. Foi então que três figuras se aproximaram, rompendo o silêncio. “Elias, este homem precisa falar contigo!”, disse uma voz familiar. Ele levantou o rosto e reconheceu Clementina, a ama alforriada que outrora servira na Santo Inácio. Ao seu lado estavam Carlos, seu irmão, e um rapaz de 14 anos, quase uma réplica de Elias na adolescência: cabelos negros encobrindo as sobrancelhas, lábios grossos e olhos verdes brilhantes. Elias, com o coração apertado, endureceu o olhar. “Veio rir da minha desgraça, como sempre fazia?”, perguntou, a voz carregada de amargura. Carlos, com lágrimas nos olhos, deu um passo à frente. “Elias, sei que jamais terei teu perdão, mas saiba que, do fundo da minha alma, me arrependo de ter sido cúmplice passivo do que te fizeram. Só quero que tu abençoes teu sobrinho, este rapaz que se chama Elias Sobrinho!” Elias olhou para o menino, e o choque da semelhança o fez estremecer. Era como ver a si mesmo antes da senzala, antes do ferro em brasa e também ao seu filho, Pedro. Com lágrimas escorrendo, ele acariciou os cabelos do garoto e beijou sua testa, a emoção o dominando, "Meu Deus, é como meu Pedro!" . “Talvez algum dia eu te perdoe, Carlos. Hoje não seria possível. Fique com Deus e que Ele abençoe este lindo garoto!”, disse, a voz embargada. Elias Sobrinho, com os olhos marejados, sussurrou: “Tio Elias... tu é um herói.” Elias virou o rosto, o rosto já encharcado, incapaz de suportar a emoção, e seguiu o cortejo, o rosário e o lenço apertados contra o peito.
 Na tarde seguinte, na casa-grande da Santo Inácio, a tensão era palpável. A morte de Dom Gregório deixara Ana Lúcia como a nova matriarca, mas Antônio, como marido e pai de Clara e Miguel, detinha autoridade sobre a fazenda até Pedro atingir a maioridade. Reunidos na sala principal, decorada com retratos dos Almeida e o cheiro de cera das velas fúnebres, Antônio tomou a palavra, sua voz firme ecoando nos móveis de mogno. “Hoje, declaro Pedro de Almeida, aos 15 anos, maior de idade para assumir responsabilidades na fazenda. E, com a autoridade que me cabe, anuncio a alforria de Elias Villanova, o homem que serviu esta casa com lealdade.” Ana Lúcia, com o rosto contorcido de fúria, levantou-se, derrubando uma cadeira. “Alforria?! Esse uruguaio é propriedade minha! Tu não tens direito, Antônio!”, gritou, os olhos faiscando. Pedro, ao lado, observava com desdém, enquanto Clara, com um sorriso esperançoso, segurava a mão de Miguel. Elias, de pé no canto da sala, sentiu o sangue ferver. Anos de silêncio, de humilhações, de noites de violência e da negação de sua paternidade explodiram em seu peito. Num lampejo de coragem, ele deu um passo à frente, bufando de revolta, e gritou, sua voz ecoando anos de humilhação e escravidão ecoavam como um trovão: “CHEGA! JÁ CHEGA, ANA LÚCIA! CHEGA!!! EU JÁ SOFRI TUDO O QUE TINHA QUE SOFRER NA MINHA VIDA! EU NUNCA FUI O URUGUAIO ELIAS VILLANOVA! EU SOU, OU FUI, ELIAS MENDONÇA, FILHO DE RODOLFO MENDONÇA! EU SOU O PAI DO NOSSO FILHO!!! NEGUE, SUA DESGRAÇADA! ACABOU A FARSA! NEGUE DIANTE DO NOSSO FILHO! NEGUE!” Ele olhou diretamente nos olhos de Pedro, os mesmos olhos verdes que espelhavam os seus, cheios de determinação e dor. A sala ficou em silêncio, o ar pesado com a revelação. Ana Lúcia, pálida, abriu a boca para protestar, mas as palavras morreram em sua garganta. Pedro, com a verdade escancarada, atônito, alternava o olhar entre Elias e a mãe, a arrogância dando lugar à confusão. “O que... o que ele tá dizendo, mãe?”, perguntou, a voz tremendo. Clara, com lágrimas nos olhos, correu para Elias, abraçando-o. “Eu sabia! Eu sabia que tu eras mais que um escravo!”, exclamou. Antônio, com o coração apertado, deu um passo à frente, colocando-se entre Ana Lúcia e Elias. “É verdade, Ana? Responde!”, exigiu, os olhos azuis faiscando de raiva. Ana Lúcia, encurralada, gritou: “Mentiras! Ele é um escravo, um louco! Não acreditem nele!” Mas sua voz tremia, e a dúvida já se instalara nos presentes. Serafina, a governanta, que por anos guardara suas suspeitas, finalmente falou, com uma calma cortante: “Eu vi os olhos de Pedro e Elias, sinhá. São os mesmos. Tu sabes que ele fala a verdade, sinhá!"
                         





 Elias, exausto, mas com a força de quem finalmente quebrara suas correntes, olhou para Pedro. “Meu filho... eu nunca toquei teu rosto, nunca te abracei, mas tu és meu sangue. Fui escravizado, humilhado, marcado a ferro, mas nunca deixei de te amar. Perdoa-me por não ter sido forte o bastante pra te proteger.” Pedro, com lágrimas escorrendo, deu um passo atrás, incapaz de processar a revelação. “Não... tu és o Estorvo...”, murmurou, mas sua voz não tinha convicção, ele corria as escadas, rumo ao quarto, o coração cheio de incertezas e as emoções confusas, processando a realidade de que seu pai era seu escravo, também.
   Antônio, com lágrimas nos olhos, segurou a mão de Elias. “Tu és livre, Elias. E a verdade vai prevalecer. Eu prometo”, disse, a voz firme, apesar da dor de saber que o homem que amava era o pai de Pedro. Ana Lúcia, derrotada, saiu da sala, gritando ameaças, mas sua autoridade estava abalada. Clara, emocionada, abraçada a Elias, sussurrou: “Tu és meu pai também, de coração.”
  Naquela noite, Elias, agora alforriado, mas ainda carregando as cicatrizes de sua vida, sentou-se na varanda da casa grande, o rosário e o lenço nas mãos. Ele pensava em Carlos e Elias Sobrinho, na promessa de perdão que talvez, um dia, pudesse cumprir. Pensava em Pedro, cujo coração ainda estava fechado, mas que agora sabia a verdade. E pensava em Antônio, o homem que lhe dera amor e liberdade. “Pai... Mãe Cacilda... eu gritei minha verdade. Agora, me ajudem a viver como homem livre, que Pedro me aceite como pai!”, murmurou, olhando para as estrelas. A Santo Inácio, outrora seu inferno, era agora o palco de sua libertação. Mas Elias sabia que a jornada estava longe de acabar. Pedro precisava de tempo, Ana Lúcia ainda era uma ameaça, e a sociedade de Pelotas não perdoaria facilmente um “escravo branco” que ousara desafiar a ordem. Com Antônio ao seu lado, Clara como sua luz e Elias Sobrinho como um eco de sua juventude, Elias Mendonça, pela primeira vez em décadas, sentiu o peso das correntes diminuir, mesmo que o futuro permanecesse um horizonte incerto.






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