Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 3 ( A Glória, a Queda e o Luto )

 Capítulo III: A Glória, a Queda e o Luto

        
            




  Província Cisplatina, 1825-1828. A Guerra da Cisplatina, um conflito sangrento pelo controle da faixa de terra disputada entre o Império do Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata, transformou Elias Mendonça, o jovem de olhos verdes e cabelos negros encaracolados, num guerreiro improvável. Aos 17 anos, ele ingressara nas fileiras do exército brasileiro com o coração ardendo de determinação. Cada batalha era mais do que um confronto com o inimigo; era uma cruzada pessoal contra os fantasmas de sua infância. Nos rostos dos soldados uruguaios, Elias via os traços de Elvira, com seu olhar gélido; de Anselmo, com sua tirania; de Helena, com seu veneno disfarçado de sorrisos; e de Carlos, com sua crueldade embriagada. Ele brandia a espada e disparava o mosquete com uma fúria que parecia vingar cada insulto, cada “Estorvo” cuspido em sua direção. “Vou honrar meu pai e salvar minha verdadeira mãe e meus amigos da senzala! Eu sou filho de Dom Rodolfo Mendonça!”, repetia para si mesmo, o rosário do pai apertado contra o peito sob o uniforme puído. Sua coragem era quase sobrenatural. Em Montevidéu, ele liderou uma carga contra uma trincheira inimiga, salvando um pelotão encurralado. Em Sarandi, enfrentou um oficial uruguaio em combate corpo a corpo, derrubando-o com um golpe preciso. Seus comandantes, impressionados, elogiavam sua bravura. “Esse Mendonça é um leão!”, dizia o capitão Ferreira, um homem de bigodes grisalhos e voz rouca. “Nunca vi soldado com tanto fogo no coração.” Outro oficial, o tenente Almeida, comentava: “Ele luta como se a guerra fosse pessoal. Um herói nato.”
 
             


  Os elogios, porém, plantaram em Elias uma semente perigosa: a autoconfiança exagerada. Ele começou a ignorar ordens cautelosas, avançando em posições arriscadas, convencido de que sua coragem o tornaria invencível. Ser herói de guerra tornou-se sua obsessão, o único caminho para apagar o nome “Estorvo” e provar seu valor. Mas a guerra não perdoa erros primários. Em meados de 1827, seu regimento, seguindo uma estratégia mal planejada, caiu numa emboscada nas margens do rio Santa Maria. O ataque foi devastador: gritos, fumaça, o som de disparos e o clangor de espadas encheram o ar. Elias lutou como um possuído, derrubando inimigos até que uma pancada na cabeça o fez tombar, o mundo girando em escuridão. Quando abriu os olhos, estava preso, as mãos amarradas, o uniforme rasgado. O jovem que sonhara ser herói era agora um prisioneiro de guerra, confinado num acampamento uruguaio onde o frio cortava a pele e a fome roía o estômago. Ele segurava o rosário do pai e o lenço de Cacilda, sussurrando: “Mãe Cacilda, Tia Benedita, Tio Zé Preto… eu vou voltar. Eu prometi.” Mas a incerteza o consumia. Será que voltaria a tempo de cumprir sua promessa?
  Na Fazenda Santa Bárbara, a notícia da captura de Elias chegou como um trovão, mas com reações opostas. Na casa-grande, a novidade foi recebida com festa. Elvira, sentada numa poltrona de veludo, deixou escapar uma risada seca. “O Estorvo finalmente achou seu lugar: numa jaula, como bicho!”, disse, os olhos brilhando de satisfação. Anselmo, agora com 30 anos, ergueu um copo de vinho. “Que morra lá! Menos um peso pra essa casa.” Helena, com um sorriso cruel, completou: “Sempre disse que ele não prestava. Escravo branco, achando que é herói!” Carlos, aos 28 anos, bêbado como sempre, gargalhou até engasgar. “O Estorvo preso! Isso merece um brinde!” Sua noiva, Sílvia, uma jovem de cabelos ruivos e olhar arrogante, riu junto, apontando para o pátio onde Elias costumava ser visto. “Que espetáculo seria ver ele voltando derrotado!” Na senzala, porém, a notícia caiu como um luto. Cacilda, que já envelhecera sob o peso da labuta e da saudade de Elias, desabou em lágrimas ao ouvir Zé Preto contar o que ouvira dos feitores. “Elias, meu filho! Pelo amor de Deus!”, gritou, as mãos trêmulas segurando o peito. Sinhá Benedita, com os olhos marejados, tentou consolá-la. “Cacilda, ele é forte. Vai voltar. Deus não abandona os justos.” Mas Cacilda, consumida pela dor de imaginar seu menino humilhado ou morto, perdeu as forças. Naquela noite, deitada numa esteira na senzala, ela fechou os olhos, murmurando o nome de Elias, e partiu deste mundo. A senzala inteira chorou, as vozes unidas num lamento que ecoou pelos casebres. “Mãe Cacilda se foi… por causa do menino dela…”, dizia Zé Preto, a voz embargada. Sinhá Benedita, segurando uma vela, rezava: “Que ela encontre paz com Sinhô Rodolfo no céu.”
  No início de 1828, um acordo de troca de prisioneiros trouxe Elias de volta ao Brasil. Ele desembarcou em Pelotas em março, próximo de completar 21 anos, um homem mudado. Seus cabelos negros, agora mais longos, caíam em cachos desgrenhados sobre os ombros. Seus olhos verdes, outrora brilhantes, estavam opacos, marcados pela exaustão e pela dor. O corpo, ainda atlético, carregava cicatrizes de batalha e a magreza do cativeiro. Ele caminhava pela estrada poeirenta que levava à Fazenda Santa Bárbara, o rosário do pai e o lenço de Cacilda guardados contra o peito, ouvindo os mesmos desaforos que o perseguiram na partida, mas agora mais cruéis. “Olha o Estorvo voltando derrotado!”, gritavam os brancos livres da cidade. “Herói? Só se for dos uruguaios!”, zombava um feitor, cuspindo no chão. “Escravo branco, isso sim!”, ria outro. Na entrada da fazenda, Zé Preto e Sinhá Benedita o aguardavam, os rostos enrugados pela tristeza. Elias, ao vê-los, tentou sorrir, mas percebeu o peso em seus olhares. “Tio Zé… Tia Benedita… cadê a Mãe Cacilda?”, perguntou, a voz hesitante. Zé Preto baixou a cabeça, incapaz de falar. Sinhá Benedita, com lágrimas escorrendo, segurou as mãos de Elias, que a olhava assustado e temeroso do que ouviria. “Menino… tua mãe… ela não aguentou. Quando soube que tu tava preso… o coração dela parou. Ela se foi, Elias.”
  O mundo de Elias desabou pela terceira vez. Ele rasgou a camisa com as mãos, expondo o peito cicatrizado, e soltou um grito que parecia rasgar o céu. “MÃE CACILDA! POR QUE?!”, berrou, caindo de joelhos, socando o chão até os nós dos dedos sangrarem. “Agora eu sou um órfão NESTE INFERNO QUE CHAMAM DE CASA! Pai… me ouve… vem pra me levar contigo! INFERNO DE VIDA!” Suas lágrimas molhavam a terra, e seu choro, profundo e visceral, ecoava como o lamento de um animal ferido. Os escravizados da senzala, que se reuniram ao seu redor, correram para abraçá-lo, suas vozes misturando-se em consolo. “Tu não tá sozinho, Elias!”, dizia uma mulher. “Mãe Cacilda tá com Deus, te olhando!”, murmurava outra. Zé Preto, com os olhos vermelhos, segurou seus ombros. “Tu é nosso menino, Elias. Sempre vai ser.” Mas, da varanda da casa-grande, o espetáculo de dor de Elias era apenas motivo de risos. Elvira, com os cabelos grisalhos soltos como uma coroa de crueldade, observava com um sorriso torcido. “Olha o Estorvo fazendo cena!”, disse, a voz carregada de escárnio. Anselmo, ao seu lado, gargalhou. “Derrotado na guerra, derrotado na vida. Um escravo até o fim!” Helena, com um leque na mão, riu alto. “Que vergonha pra essa família! Um estorvo chorando como mulher!” Carlos, com Sílvia pendurada em seu braço, apresentou o irmão aos risos. “Esse é o Estorvo, meu irmão-escravo! Olha como ele chora bonito, Sílvia!” A noiva, com um risinho, completou: “Um desperdício de homem. Tanta beleza pra nada.” Elias, cercado pelos braços dos escravizados, ergueu o rosto, os olhos verdes faiscando entre a dor e a raiva. Ele tocou o rosário do pai e o lenço de Cacilda, agora úmido de lágrimas, e murmurou para si mesmo: “Eu não vou ser o Estorvo pra sempre. Por meu pai, por Mãe Cacilda… eu vou encontrar meu lugar.” Mas, naquele momento, sob o peso de mais uma perda e o escárnio de sua família, ele era apenas um jovem quebrado, um órfão num inferno que chamavam de lar, com o coração partido e a alma marcada por cicatrizes que nenhuma guerra poderia apagar.
Fim do Capítulo III




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