Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 2 ( A esperança de ser um herói )

 Capítulo II: O Exílio na Senzala e a Promessa de um Herói
  Pelotas, Província do Rio Grande do Sul, 1817. O céu sobre a Fazenda Santa Bárbara parecia mais cinzento desde a morte de Rodolfo Mendonça. O enterro do patriarca, ocorrido numa manhã fria de julho, foi marcado pelo choro inconsolável de Elias, então com 10 anos. O menino, de olhos verdes brilhando como esmeraldas em meio às lágrimas, agarrou-se ao caixão do pai, sua voz infantil ecoando pelo pequeno cemitério da fazenda. “Pai, não me deixa! Não me deixa com eles! Vem me buscar!”, soluçava, enquanto Cacilda, com o coração partido, tentava puxá-lo para seus braços. Elvira, a mãe de gelo, observava a cena de longe, os lábios apertados numa linha de desdém "Por mim, iriam os dois, o estorvo e o pai do estorvo!".  Anselmo, agora com 20 anos, alto e de ombros largos, assumia a liderança da casa com uma autoridade que já prenunciava tirania. Ao seu lado, Helena, sua jovem esposa de olhos frios e cabelos loiros presos num coque severo, lançava olhares de desprezo ao pequeno Elias, como se sua mera existência fosse uma afronta.
  Dias após o enterro, a crueldade de Elvira se revelou em sua forma mais brutal. Com a voz cortante como uma lâmina, ela decretou: “Esse estorvo não fica na casa-grande. Não vou sustentar um peso que nunca quis!” Elias, ainda atordoado pela perda do pai, ouviu as palavras da mãe como um trovão. “Mas… mãe… eu sou seu filho!”, balbuciou, os olhos arregalados de incredulidade. Elvira riu, um som seco e cruel. “Filho? Tu é uma maldição, isso sim! Vai pra senzala, onde é teu lugar!” Anselmo, já instalado como o novo senhor, apoiou a decisão com um aceno indiferente. “Faça como ela diz, Estorvo. Aqui não tem lugar pra ti. Junte-se aos verdadeiramente teus!” Helena, com um sorriso venenoso, completou: “Um menino criado por pretos só pode ser um deles. Vai pra senzala, teu lugar é com os escravos.”
  E assim, Elias, nascido livre, foi expulso da casa-grande. Com uma trouxa de roupas velhas nas mãos, ele seguiu Cacilda até a senzala, uma fileira de casebres de taipa onde o cheiro de terra úmida se misturava ao de suor e esperança esmagada. Lá, entre os escravizados, Elias encontrou o único refúgio que lhe restava. Cacilda, com lágrimas nos olhos, abraçou-o com força. "Mãe Cacilda, o que eu fiz para eles me odiarem tanto?",  “Tu não tá sozinho, meu menino. Aqui, tu tem família. Eu, Tia Benedita, Zé Preto… nós te amamos.” Sinhá Benedita, com sua sabedoria calma, afagou os cabelos negros e encaracolados do menino. “Deus te guarda, Elias. Tu é mais forte do que eles pensam.” Zé Preto, com sua voz grave, acrescentou: “Sinhô Rodolfo tá olhando por ti, menino. Ele nunca deixou ninguém abusar de nós. Tu carrega o sangue dele, não esquece.” E assim, com as dores que nenhuma criança deveria enfrentar, Elias reconhecia seu novo lugar no horror em que teimava chamar de casa.
Sete anos se passaram, e a Fazenda Santa Bárbara tornou-se um reino de terror sob o jugo de Anselmo e Elvira. Em 1824, Anselmo, agora com 27 anos, governava com punho de ferro, seus olhos castanhos herdados do pai endurecidos pela ganância e crueldade. Elvira, aos 50 anos, era a Sinhá Temida, uma figura de cabelos grisalhos e olhar gélido que inspirava medo até nos feitores. Carlos, aos 25 anos, transformara-se num almofadinha perdulário, sempre bêbado, tropeçando pelos corredores da casa-grande ou caindo nos braços de Elias, que, apesar de tudo, o amparava até a porta — uma porta que lhe era vedada. “Tu é um estorvo, sabia?”, dizia Carlos, o hálito fétido de cachaça, enquanto Elias, com a cabeça baixa, murmurava e em pensamento desabafava: “Sim, sinhô Carlos ( Bêbado ridículo)!” Na senzala, o lamento pela ausência de Rodolfo ainda ecoava. “Sinhô Rodolfo faz falta! Nunca permitiu abuso de feitor!”, bradava Zé Preto, enquanto consertava uma cerca sob o sol escaldante. Cacilda, ao lavar roupas no riacho, suspirava: “Aquele homem era justo. Agora, só temos chicote e desgraça.” Sinhá Benedita, sempre sábia, olhava para Elias e dizia: “Tu provou ser mais forte do que essa família de vermes… que ninguém me ouça…Especialmente a Víbora” A "Víbora" a qual Sinhá Benedita se referia era Elvira, que no papel de Sinhá Mãe impunha o terror na já decadente Fazenda Santa Bárbara.
 Elias, contrariando todas as previsões, chegara aos 17 anos transformado. O menino frágil de outrora dera lugar a um jovem de beleza impressionante e força moldada pelo trabalho pesado. Seus cabelos negros, encaracolados, caíam até os ombros, emoldurando um rosto de traços delicados, mas firmes. Seus olhos verdes, ainda carregados de tristeza, brilhavam como pedras preciosas, escondidos sob franjas que pendiam sobre as sobrancelhas. Seu corpo, esculpido pelas tarefas da fazenda — carregar lenha, cuidar do gado, erguer cercas —, era atlético, com ombros largos e músculos definidos. Ele tinha o porte de um rei, mas vivia como escravo. “Meu menino é a coisa mais linda de se ver!”, exclamava Cacilda, orgulhosa, enquanto penteava os cabelos de Elias com os dedos. “Tu é forte, Elias. Mais forte do que todos eles.” Apesar da beleza e da força, Elias carregava o peso do nome “Estorvo”. Para a família e os brancos livres de Pelotas, ele era um escravo que nascera branco por acidente. “Olha o Estorvo, achando que é gente!”, zombava Helena, enquanto passava por ele com um leque na mão. Anselmo, ao vê-lo trabalhar nos campos, gritava: “Escravo que é livre por detalhe! Trabalha, Estorvo, que teu lugar é esse!” Até os vizinhos, em visitas à fazenda, comentavam: “Teve sorte de ser branco, esse aí. Senão, já estava com corrente.”

  A Guerra da Cisplatina, iniciada em 1825, trouxe um sopro de esperança a Elias. O conflito, que opunha o Império do Brasil às Províncias Unidas do Rio da Prata pelo controle da Província Cisplatina, exigia soldados, e o alistamento no exército brasileiro tornou-se uma possibilidade de fuga. Para Elias, era mais do que isso: era uma tábua de salvação, uma chance de deixar para trás a fazenda que o humilhava e honrar a memória do pai. Numa noite quente de fevereiro de 1825, enquanto a senzala cochichava sobre a guerra, Elias sentou-se ao lado de Cacilda, seus olhos verdes brilhando com uma determinação rara. “Mãe Cacilda, a senhora verá”, disse, um tímido sorriso iluminando seu rosto. “Eu vou pra guerra, volto herói e, com o soldo, compro as alforrias da senhora, de Tia Benedita e do Tio Zé Preto. Nós quatro vamos nos mandar deste pesadelo que é esta casa maldita, que eu não quero herdar! Vou honrar a memória e o amor do meu pai!” Cacilda riu, um riso cheio de carinho e tristeza diante da ingenuidade juvenil de Elias. “Meu menino, tu sonha alto”, disse, afagando seu rosto. “Mas rezo pra Deus te guardar. Volta pra mim, Elias. Promete.” Sinhá Benedita, que ouvia a conversa, abençoou-o com um gesto. “Vai com a força de teus ancestrais, menino. Teu pai tá te olhando.” Zé Preto, com um brilho de orgulho nos olhos, acrescentou: “Se tu virardes herói, Elias, tu mostrarás  pra esses vermes quem tu és!"            




 Elias tocou o rosário que pendia de seu pescoço, a herança de Rodolfo, e sentiu o peso da promessa que fazia. “Eu volto, Mãe Cacilda. Eu juro.” A partida de Elias para a guerra, marcada para a manhã de 25de março de 1825,dia em que completou 18 anos, foi um espetáculo de humilhação. Enquanto ele caminhava pelo pátio da fazenda, carregando uma pequena trouxa com suas poucas posses, os insultos ecoavam como chicotadas. Anselmo, de braços cruzados na varanda, gritou: “Vai, Estorvo! Pelo menos na guerra tu serve pra alguma coisa!” Helena, ao seu lado, riu com desdém. “Escravo que é livre por detalhe, achando que vai ser herói. Volta num caixão, que é mais útil!” Carlos, cambaleando com uma garrafa na mão, apontou para Elias e gargalhou: “Teve sorte de ser branco, Estorvo! Senão, nem pra guerra tu ia!” Elias, com a cabeça erguida, ignorou os insultos. Seus olhos verdes fixaram-se no horizonte, onde a estrada empoeirada levava a Pelotas e, de lá, ao desconhecido. Ele sentia o peso do nome “Estorvo” como uma corrente, mas também a força do amor de Cacilda, Sinhá Benedita e Zé Preto. Antes de partir, Cacilda correu até ele, os olhos marejados. Ela beijou sua testa e entregou-lhe um lenço de algodão cru, bordado com suas iniciais. “Guarda isso, meu menino. Lembra de mim, de Tia Benedita, de Zé Preto. Volta pra nós.” Elias segurou o lenço com mãos trêmulas, o coração apertado. “Mãe, eu volto e tiro a senhora e os meus tios deste pesadelo. Prometo.” Com um último abraço, Elias virou-se e começou a caminhar. A senzala, em silêncio, observava sua partida, os corações pesados, mas cheios de esperança. Cacilda, Sinhá Benedita e Zé Preto rezavam em segredo, enquanto o jovem de olhos verdes e porte de rei desaparecia na estrada, levando consigo o rosário do pai, o lenço da mãe de coração e o peso de um nome que não escolheu. A guerra o aguardava, e com ela, a chance de provar que ele não era um estorvo, mas um homem — um herói em potencial, pronto para lutar por sua liberdade e pela daqueles que o amavam.
Fim do Capítulo II 



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