Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 11- O amor na Rua 20 de Abril e dor de não poder ser pai.
Capítulo XI: O Amor na rua 20 de Abril e a Dor da Verdade Negada
Rio de Janeiro, Capital do Império do Brasil, 1839-1844. As tardes na hospedaria da Rua 20 de Abril eram um
refúgio sagrado para Antônio Albuquerque e Elias Mendonça, um oásis onde o peso da corte e da escravidão se
dissipava, ainda que por algumas horas. O casarão, com seus quartos discretos e o murmúrio abafado de segredos,
tornou-se o palco de um amor que desafiava as convenções do Império. Elias, aos 32 anos em 1839, apaixonava-se
cada vez mais por Antônio, cujo toque gentil e olhos azuis melancólicos cristalizavam um amor que ele nunca
imaginara possível. Para Antônio, Elias era mais do que um “escravo branco”; era o homem que, com sua beleza
marcada pela dor e sua resiliência, conquistara seu coração.
Nessas tardes, entre lençóis amarrotados e o brilho suave da lamparina, Elias abria sua alma. Com lágrimas
cortantes, relatava o horror de sua vida: a geração de Pedro, fruto de noites de violência orquestradas por Ana
Lúcia; o espetáculo macabro de sua marcação com o ferro em brasa na Fazenda Santo Inácio, que ainda ardia em
suas costas; e a venda disfarçada de casamento, arquitetada por Elvira e Dom Gregório. “Minha própria mãe, Elvira,
nunca me amou. Ela me chamava de Estorvo desde o dia em que nasci. Vendeu-me como se eu fosse gado,
Antônio. Junto com Dom Gregório, ela forjou a minha própria morte...Oficialmente, eu não existo mais! Estou morto há 10 anos...para viver como escravo de...meu próprio filho...”, dizia, a voz embargada, "O nascimento de Pedro...foi o dia em que tive a minha maior alegria...e a noite em que conheci a minha...desgraça!" Antônio, perplexo, ouvia, incapaz de mensurar as maldades de Dom Gregório, Ana
Lúcia e Elvira. “Como alguém pode odiar tanto um filho? Como Dom Gregório, meu sogro, pôde descer a este nível? Te 'matar' só para ter o prazer de ter um branco como escravo! E Ana? Como pode uma mulher submeter um homem a tamanha humilhação?”, murmurava Antônio, acariciando os cabelos negros de
Elias, agora salpicados de fios grisalhos precoces. Elias beijava Antônio com um misto de desejo, fúria e esperança. Seus olhos verdes brilhavam, refletindo o azul dos olhos de Antônio, que via no amado a sua verdade. Mas Elias também compartilhava memórias de amor. “Não fosse por meu pai, Rodolfo, e por minha verdadeira mãe,
Cacilda, eu já não estaria mais aqui”, contava, o rosário de Rodolfo "Por isto que tenho este rosário, desde os cinco anos de idade e um dia ele será passado...para Pedro... foi de meu avô, passou pelo meu pai e um dia será...de Pedro!" e o lenço de Cacilda apertados contra o peito.
Ele descrevia o carinho dos escravizados da Santa Bárbara, como Sinhá Benedita e Zé Preto, que o trataram como
família quando sua própria família de sangue o rejeitou. “Cacilda me abraçava como se eu fosse dela. Ela me deu o amor que a maldita Elvira me negou. Eu posso ter nascido branco de corpo, mas sou preto na alma!” Antônio, com lágrimas nos olhos, beijava a testa de Elias, prometendo em silêncio protegê-lo, mesmo
sabendo que o mundo lá fora não perdoaria seu amor.
Para evitar suspeitas, Antônio, em 1839, engravidou Ana Lúcia novamente. Em 1840, nasceu Miguel, um menino robusto cujas feições, idênticas às de Antônio, serviram como álibi perfeito. Miguel era a prova de que Antônio cumpria seu “dever” como marido, permitindo-lhe continuar suas escapadas com Elias sem levantar rumores na corte. Mas para Elias, ver Antônio acalentar Miguel nos braços era uma facada, uma dor cortante. Ele observava, com os olhos verdes marejados, remoendo a dor de nunca ter segurado Pedro, nunca ter abraçado o próprio filho. “Pai, Mãe Cacilda, me amparem nesta dor, que me consome há 11 anos!”, murmurava, o desejo frustrado de abraçar seu filho corroendo seu coração. “Meu Pedrinho... eu nunca toquei teu rosto...”, pensava, enquanto limpava as botas do menino, agora um jovem arrogante de 11 anos.
O tempo avançou, e em 1844, Pedro completava 15 anos. No internato, ele se moldara num jovem fidalgo, com a arrogância de Ana Lúcia e a altivez de Dom Gregório. A semelhança com Elias, porém, tornava-se ainda mais evidente, e isso o perturbava profundamente. Seus olhos verdes, idênticos aos do “Estorvo”, atraíam comentários na escola, e Pedro, temendo a verdade, reprimia qualquer questionamento. “Eu não sou como aquele escravo!”, gritava, maltratando Elias com renovada crueldade. “Toma, Estorvo, limpa meu quarto!”, ordenava, jogando roupas no chão, enquanto Elias, com a cabeça baixa, obedecia, o coração partido. “Meu filho... tu me odeia sem saber quem sou...”, pensava, as rugas precoces marcando seu rosto. Clara, aos 13 anos, era uma exceção. Apesar de ser filha de Antônio e Ana Lúcia, a sinhazinha herdara uma compaixão rara. Ela se aproximava de Elias quando ele trabalhava, os olhos azuis cheios de bondade. “Elias, quando eu ficar maior de idade, eu prometo que convenço papai ou o Pedro a dar tua alforria! Tu finalmente volta para o Uruguai ou fica livre na corte! Espera e não chora!”, dizia, segurando sua mão calejada. Elias, com um sorriso triste, respondia: “Obrigado, sinhazinha. Tua bondade me dá forças.” Mas, aos 37 anos, Elias estava exausto. As rugas sulcavam seu rosto, os cabelos negros agora grisalhos, e o peso de uma vida de sofrimento o curvava. A vontade de gritar sua verdade — que ele era o pai de Pedro — crescia, um grito preso em seu coração torturado.
Ana Lúcia, mais arrogante do que nunca, continuava sua vigilância. “Não te ilude, uruguaio. Tu és meu escravo, estás marcado para sempre, e Pedro nunca será nada teu”, sibilava, com um sorriso cruel. Antônio, dividido entre o amor por Elias e o dever para com a família, protegia-o como podia, mas sem confrontar Ana Lúcia diretamente. Serafina, a governanta, mantinha seu silêncio, mas seus olhos registravam cada injustiça, cada olhar de Elias para Pedro, cada insulto de Ana Lúcia. “Esse homem é o pai do menino...está claro e ninguém sabe ou finge não saber!”, pensava, guardando o segredo. Na Rua 20 de Abril, as tardes continuavam sendo um bálsamo. Antônio e Elias, entre beijos e confissões, construíam um mundo só deles. “Tu és meu verdadeiro lar, Elias”, dizia Antônio, traçando a cicatriz dos Almeida com os dedos. Elias, com lágrimas de gratidão, respondia: “Tu me fizeste sentir humano de novo. Me descobri homem contigo, meu amor, meu Antônio.” Mas a dor de não ser reconhecido por Pedro o consumia. Ele sonhava em abraçar o filho, em contar-lhe a verdade, mas a marca em suas costas e a “carta de propriedade” forjada o mantinham preso. “Pai... Mãe Cacilda... me deem forças pra aguentar mais um pouco”, murmurava, o rosário e o lenço como âncoras.
Na Fazenda Santa Bárbara, a decadência era total, a morte de Anselmo e Helena, abandonados e afundados na cachaça, fez da casa grande uma habitação fantasma, "Parece que o filho que era escravo rogou uma praga nesta casa!", diziam os pelotenses mais místicos. "Dona Elvira e o Dom Anselmo destruíram o legado de Dom Rodolfo!" constatava com revolta um ex-capataz da Santa Bárbara . Carlos, em Pelotas, criava Elias Sobrinho com Clementina, ensinando ao menino a história do tio sacrificado. “Teu tio Elias é um homem forte, mesmo que o mundo o chame de Estorvo”, dizia, o remorso ainda vivo. Anselmo e Helena, mortos afundados na miséria, eram sombras do passado, enquanto a memória de Elvira era uma maldição esquecida.
Na corte, Elias, com o amor de Antônio e a compaixão de Clara como luzes frágeis, enfrentava o peso de sua verdade negada. Pedro, agora um jovem fidalgo, o desprezava, mas a semelhança entre eles era um espelho que ninguém podia ignorar. Elias, cansado, mas teimoso, agarrava-se à promessa feita a Rodolfo e Cacilda: “Eu vou lutar. Por Pedro. Por mim.” A vontade de gritar sua paternidade crescia, mas o medo do que Ana Lúcia faria o silenciava. Na Rua 20 de Abril, ele encontrava alívio, mas fora do casarão, a corte era um palco de humilhações, e o futuro, um horizonte incerto.
Comentários
Postar um comentário