Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 4 ( O Preço de um homem )
Capítulo IV: O Preço de um Homem.
Província do Rio Grande do Sul, Império do Brasil, 1828. A cidade fervilhava com rumores, e o nome de Elias Mendonça, o “Estorvo de Pelotas”, estava na boca de todos. A Fazenda Santa Bárbara, outrora um símbolo de prosperidade sob o comando de Rodolfo Mendonça, agora cambaleava à beira da ruína. Anselmo, aos 31 anos, mantinha uma fachada de altivez, mas os gastos extravagantes de sua esposa, Helena, com vestidos de seda e bailes ostentosos, drenavam as finanças da família. Elvira, a Sinhá Viúva, com seus 53 anos e cabelos grisalhos, reinava como uma rainha cruel, destilando veneno contra Elias, o filho caçula que ela renegara desde o nascimento. Carlos, aos 29 anos, afundava-se em cachaça barata e noites em cabarés, voltando para casa com o fedor de perfume barato e o peso de suas dívidas. Sílvia, sua noiva de cabelos ruivos e olhar desdenhoso, tratava Elias como um animal, lançando-lhe olhares de desprezo mesmo quando ele, com paciência humilhante, arrastava Carlos bêbado até a porta da casa-grande — uma porta que lhe era proibida. Sílvia culpava Elias pelas fraquezas de Carlos. Logo quem! Um rapaz que aos 21 anos sequer conhecia o toque feminino e ao qual eram negados os mínimos direitos de um cidadão livre.
Elias, aos 21 anos, vivia na senzala, um exilado em sua própria terra. Seus trajes esfarrapados, que mal cobriam seu corpo atlético, moldado pelo trabalho pesado, contrastavam com sua beleza impressionante. Seus cabelos negros, encaracolados, caíam até os ombros, emoldurando um rosto de traços delicados, com lábios grossos e olhos verdes que pareciam pedras preciosas veladas por tristeza. Ele era chamado de “preto que nasceu branco” pelos brancos livres de Pelotas, um escravo em tudo, menos na cor. Proibido de entrar na casa-grande, Elias dividia a palha e as histórias com os escravizados, que o acolhiam como um dos seus. Zé Preto, com sua voz grave, dizia: “Tu és nosso menino, Elias. Não deixes esses vermes te quebrarem.” Sinhá Benedita, com sua sabedoria calma, afagava seus cabelos e murmurava: “Teu pai, Sinhô Rodolfo, tá te olhando. Força, menino.” Mas Elias carregava consigo um vazio que nem o carinho da senzala podia preencher. Ele nunca conhecera o toque de um amor, o calor de um desejo correspondido. Nas noites frias, deitado na esteira, ele olhava o teto de taipa e sentia o peso da solidão. O rosário de Rodolfo e o lenço de Cacilda, guardados contra o peito, eram seus únicos consolos, lembranças dos amores paternos que a vida lhe arrancara.
A alguns quilômetros dali, na imensa Fazenda Santo Inácio, Dom Gregório de Almeida, o homem mais rico de Pelotas, planejava seu próximo movimento. Aos 55 anos, Dom Gregório era um fidalgo de porte imponente, com olhos astutos e uma barba branca que lhe dava um ar de patriarca rígido. Sua fortuna, construída com gado, charque e escravizados, fazia da Santo Inácio a maior propriedade da província. Mas uma sombra pairava sobre sua linhagem: a falta de um herdeiro varão. Sua primogênita, Maria Regina, traíra sua confiança ao fugir com um degredado português para Cabo Verde, ganhando o apelido de “mãe dos pretos” entre os fofoqueiros de Pelotas. Restava Ana Lúcia, sua caçula de 19 anos, uma jovem de pele clara, cabelos loiros e temperamento mimado, que via o mundo como um brinquedo a seu dispor. Dom Gregório, porém, não queria um fidalgo para marido de Ana Lúcia. Ele tinha um plano mais audacioso — e cruel. “Quero um reprodutor”, declarou Dom Gregório ao seu capataz de confiança, João Mendes, numa noite em seu gabinete, enquanto fumava um charuto. “Um homem belo, forte, mas sem poder. Alguém que eu possa comprar, usar e descartar. Ana Lúcia terá o varão que preciso, e depois… forjamos a morte dele. Ele vira um escravo na minha fazenda, e minha filha fica livre para um marido de verdade, com nome e fortuna.” João Mendes, um homem de olhos frios, assentiu. “E quem seria o escolhido, sinhô?” Dom Gregório sorriu, os olhos brilhando com malícia. “Elias Mendonça. O Estorvo de Pelotas. A família dele tá falida, e ele é um renegado. Perfeito.” Ana Lúcia, ao ouvir o plano do pai, bateu palmas como uma criança ganhando um presente. Durante uma visita à cidade, ela avistara Elias carregando sacos de grãos no mercado, os músculos brilhando de suor, os cabelos negros caindo sobre o rosto. “Papai, quero aquele lindo rapaz de cabelos negros, lábios grossos e olhos verdes pra mim!”, exclamou, apontando para Elias como se ele fosse uma mercadoria. “Quero o branco que se comporta como preto!” Dom Gregório riu, satisfeito. “Tu vai tê-lo, Aninha. E ele vai nos dar o que queremos.”
Na Fazenda Santa Bárbara, a proposta de Dom Gregório foi recebida como uma tábua de salvação. Anselmo, sentado na sala de jantar com Helena, Elvira, Carlos e Sílvia, ouviu o fidalgo com atenção. “Me vendam esse belo rapaz!”, disse Dom Gregório, recostado numa poltrona, a voz firme. “Pagarei alto por ele. Vocês terão a fortuna, em parte, reposta, e eu terei um reprodutor de varões para minha filha.” Anselmo, com um brilho de ganância nos olhos, não hesitou. “O Estorvo? Pode levar! Ele não presta pra nada aqui.” Elvira, com um sorriso cruel, completou: “Finalmente, uma serventia pra esse peso. Que ele suma da minha frente!” Helena riu, batendo o leque contra a palma da mão. “Um escravo virando genro de Dom Gregório? Que piada!” Carlos, bêbado, ergueu um copo. “Por mim, vende logo! Mais dinheiro pra cachaça!” Sílvia, com um risinho, acrescentou: “Que Ana Lúcia aguente o fedor de senzala dele, daquele Estorvo.” Elias, alheio à trama, foi chamado à casa-grande pela primeira vez em anos. Ele entrou com a cabeça baixa, os trajes esfarrapados realçando os músculos definidos, os olhos verdes fixos no chão. Anselmo, com um tom falso de cordialidade, anunciou: “Tu vais casar, Elias. Com Ana Lúcia, filha de Dom Gregório. É tua chance de ser alguém.” Elias ergueu o olhar, confuso. “Casar? Eu… sinhô, eu não entendo…Eu mal a conheço...” Elvira cortou, a voz afiada: “Não precisa entender, Estorvo. Faz o que mandam e agradece por alguém querer um lixo como tu!” Elias sentiu um frio na espinha, mas uma centelha de esperança o fez perguntar: “E… a senzala? Mãe Cacilda sempre disse que eu podia encontrar um caminho…” Helena riu alto. “Mãe Cacilda? Aquela preta morta? Acorda, Estorvo! Faça o que Anselmo manda e não questione, Estorvo!"
Na senzala da Santa Bárbara, a notícia caiu como um presságio sombrio. Zé Preto, ao saber do casamento, balançou a cabeça. “Ele só vai trocar de senzala. Pobre menino.” Sinhá Benedita, com lágrimas nos olhos, confirmou: “O coitado tá saindo do purgatório e indo pro inferno, mesmo sem ter nenhum pecado.” Os escravizados sussurravam, temerosos, enquanto Elias, com o coração apertado, tentava encontrar sentido naquilo tudo. Ele queria acreditar que o casamento poderia ser uma porta para a liberdade, mas o peso dos olhares de sua família e o desprezo de Pelotas o faziam duvidar. O casamento de Elias e Ana Lúcia tornou-se o assunto mais comentado de Pelotas. “Como Sinhazinha Aninha desposa um fracassado desses?”, cochichava uma matrona no mercado. “Dom Gregório é frouxo com as filhas!”, dizia um charuteiro. “Primeiro, Maria Regina, a ‘mãe dos pretos’, fugindo com um mulato degredado. Agora, Aninha casando com o Estorvo de Pelotas!” Outro ria: “Um preto nascido branco virando fidalgo? Humpf!” As fofocas corriam como fogo, mas Elias, alheio aos rumores, preparava-se para o dia que mudaria sua vida — para o bem ou para o mal.
O casamento não aconteceu na Igreja Matriz, onde os brancos livres de Pelotas selavam suas uniões. Em vez disso, foi realizado na pequena capela da Fazenda Santo Inácio, uma construção de pedra cercada por campos intermináveis de gado. Elias, vestido com um terno emprestado que mal lhe servia, subiu ao altar com o coração acelerado. Um frio subia-lhe pela espinha, como se pressentisse o destino cruel que o aguardava. A capela estava quase vazia. Sua família — Anselmo, Elvira, Helena, Carlos e Sílvia — não compareceu, celebrando a “venda” do Estorvo na Fazenda Santa Bárbara com vinho e gargalhadas. Apenas os escravizados das duas fazendas, cabisbaixos, estavam presentes, junto com os capatazes de Dom Gregório, cujo olhar gélido fazia Elias estremecer. Ana Lúcia, ao lado dele, usava um vestido de renda branca, mas seus olhos castanhos brilhavam com uma mistura de capricho e desprezo. “Tu é bonito, mas não te ilude”, sussurrou ela, enquanto o padre lia as escrituras. “Tu é meu, mas nunca vai ser um de nós.” Elias, com o rosário de Rodolfo e o lenço de Cacilda apertados contra o peito, rezava em silêncio. “Pai, me dá forças. Mãe Cacilda, me guia. Não sei o que me espera, mas não vou me quebrar.” Os olhares dos capatazes, de Dom Gregório e de Ana Lúcia pesavam como correntes. Ele era um homem livre no papel, mas, naquele momento, sentia-se mais escravo do que nunca. Quando o padre declarou: “Eu vos declaro marido e mulher”, Elias não sentiu alegria, apenas um vazio que ecoava as palavras de Zé Preto: “Ele só vai trocar de senzala. Pobre Elias!"
Na Fazenda Santa Bárbara, a noite do casamento foi de festa para os Mendonça. Elvira ergueu uma taça, os olhos brilhando de satisfação. “Finalmente livrei-me do Estorvo!”, exclamou, enquanto Anselmo ria. “Dom Gregório pagou bem. Esse dinheiro vai nos salvar.” Helena, com um sorriso venenoso, completou: “Que Ana Lúcia aguente aquele odor fétido de senzala daquele Estorvo. Um escravo nunca deixa de ser escravo.” Carlos, bêbado, caiu da cadeira, gargalhando. “O Estorvo casado! Quem diria!” Sílvia, com desdém, murmurou: “Um animal daqueles com Sinhazinha Aninha? Que vergonha.” Na senzala, porém, o silêncio era pesado. Zé Preto e Sinhá Benedita, sentados à luz de uma vela, rezavam por Elias. “Que Deus o proteja”, dizia Benedita, a voz embargada. “Ele não merece mais sofrimento. Zé Preto, meu velho, viu como a sinhazinha olhava para ele? Coitado do Elias.” Zé Preto, com os punhos cerrados, murmurou: “Sinhô Rodolfo tá vendo isso. E tá chorando.” Elias, na capela da Santo Inácio, olhou para o céu estrelado ao sair da cerimônia, o coração dividido entre a esperança de um novo começo e o medo do que Dom Gregório e Ana Lúcia planejavam. Ele era um marido, mas também uma vítima, um peão num jogo de poder que não compreendia. Sua beleza, que outrora o condenara ao escárnio, agora o tornava uma mercadoria. E, no fundo de sua alma, ele sabia que a liberdade que tanto buscava ainda estava muito, muito longe.
Fim do capítulo IV.
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