A Tríade dos "Diabos do Olho Azul" - Cap 18 - Mauro toma controle de sua vida e inspira a liberdade.

 O Despertar do Odé

Fazenda Real de Santa Cruz, Rio de Janeiro, Janeiro de 1864
A senzala da Fazenda Real de Santa Cruz vibrava com cânticos e tambores, um refúgio de resistência em meio à opressão. Mauro de Albuquerque, aos 19 anos, foi carregado para lá, desmaiado de dor após o martírio no tronco, mas com o dorso milagrosamente seco, como se a ventania de Iansã tivesse selado suas feridas. Sua pele moreno jambo reluzia sob a luz fraca das lamparinas, os cabelos encaracolados colados ao rosto, e os olhos azuis, mesmo fechados, pareciam carregar a promessa de Oxóssi. A escravaria, em êxtase pelo milagre, via nele o retorno de Jamil, o “Diabo do Olho Azul”, e celebrava sua sobrevivência como um sinal divino.
Tião Galinha, o “Cão dos Brancos”, parou à porta da senzala, o chicote ainda na mão, o rosto contorcido de raiva. Ele apontou para o interior, onde Mauro repousava, e rosnou:
— O Diabo de Olho Azul não vai me vencer desta vez!
Mas a escravaria formou uma parede humana, bloqueando sua entrada. Séo Bastião, agora com cabelos brancos salpicando as têmporas, deu um passo à frente, a voz grave e autoritária, carregada da sabedoria herdada de Nhô Quincas.
— Aqui tu não entra, Cão dos Brancos! — decretou, os olhos faiscando. — O garoto vai ficar sob nossos cuidados! Na senzala, tu não bota os pés!
Nhá Setembrina, ao seu lado, segurava um colar de contas verdes, murmurando preces a Oxóssi. A escravaria, unida, encarava Tião com olhares desafiadores, e ele, mesmo com seu ódio ardente, recuou, sabendo que não podia enfrentar o povo naquele momento. Ele cuspiu no chão, prometendo vingança, e se afastou, o sorriso vil substituído por uma carranca de frustração.

A Força de Mauro
Em poucos dias, Mauro se reestabeleceu, sua constituição forte e a proteção dos orixás acelerando sua recuperação. Ele foi posto para trabalhar nos cafezais, sob o sol escaldante, recolhendo grãos e puxando arados como um boi. Mas Mauro não era um escravo comum. Sua força era descomunal, e seus olhos azuis, hipnotizantes, desafiavam a autoridade dos capatazes. Ele peitava os feitores, encarando-os com um olhar que parecia perfurar a alma, e nenhum ousava enfrentá-lo por muito tempo.
Tião Galinha, porém, era seu alvo principal. O “Cão dos Brancos” rondava Mauro, buscando qualquer pretexto para humilhá-lo. Certo dia, enquanto Mauro estava abaixado, recolhendo grãos de café, Tião agarrou seus cabelos encaracolados, puxando com força.
— Diabinho do Olho Azul, tu acha que pode me desafiar, seu moleque atrevido? — rosnou, o chicote erguido.
Mauro levantou-se lentamente, os olhos azuis fixos em Tião, brilhando com uma intensidade sobrenatural. Era o olhar de Jamil, de Baltazar, de Oxóssi. A força daquele olhar fez Tião recuar, o coração disparado.
— Diabo do Olho Azul! É tu mesmo! — exclamou Tião, a voz tremendo. — Teu espírito só deu a volta e voltou neste menino!
Mauro, com a voz grave e ecoando a de seu pai, rebateu, cada palavra cortante como uma flecha:
— Por que diz isso, CÃO DOS BRANCOS? Preto não sai da linha, cuidado com Tião Galinha!
A escravaria, que trabalhava ao redor, explodiu em risos, as vozes ecoando pelos cafezais. Tião, humilhado, correu como um touro assustado, o chicote caindo no chão, abandonado. Os escravizados bateram palmas, cantando a velha galhofa que outrora zombara de Tião na época de Jamil:
Preto não sai da linha, cuidado com Tião Galinha! Preto toma cuidado, o Tião tá acordado!
Séo Bastião que estava na porta da senzala ria da fuga de Tião Galinha, assustado com o espírito inquieto de Jamil manifestando-se em Mauro que, com um leve sorriso, voltou ao trabalho, mas algo mudara dentro dele. Sua passividade inicial, a resignação que o levara ao tronco, começava a ceder. Ele sentia o espírito de Jamil guiando-o, como se seu pai o tivesse trazido à fazenda para completar uma missão inacabada. Mauro estava ali para liderar uma rebelião.

O Espírito de Oxóssi
Nas festas da senzala, Mauro se transformava. Ele posicionava-se diante dos tambores, o corpo movendo-se ao ritmo ancestral, os olhos azuis brilhando como faróis. Quando Séo Bastião traçava pembas no chão e reverenciava aos orixás com oferendas, Mauro recebia a energia de Oxóssi. Ele dançava com a precisão de um caçador, os gestos evocando as matas de Ketu, a guerra, a liberdade. Seu brado, o mesmo de seu pai, ecoava pelo barracão, era como se Jamil retornasse à vida material, através de seu herdeiro:
KIIIIIIUUUUUU!
A escravaria, em transe, celebrava, vendo em Mauro a reencarnação de Jamil. Até os mais submissos, aqueles que temiam o chicote dos Albuquerque, reconheciam a fúria rebelde que ardia no jovem. Ele era Baltazar, ele era Jamil, mas, acima de tudo, ele era Oxóssi, o verdadeiro dono daquela saga.
Sinhá Inês, a única branca com coragem de espiar os rituais da senzala, observava de uma janela da casa-grande, o leque parado na mão, o corpo arrepiado. Aos 67 anos, ela ainda comandava com crueldade, mas a visão de Mauro, tomado pela energia sobrenatural, a abalava.
— Este garoto é um perigo! — pensou, o coração acelerado. — Olha ele, tomado por essa força! Parece, como Tião o chama, um “Diabo do Olho Azul”, como o maldito do pai! Começo a me arrepender de tê-lo arrancado de Helena. Olha essa energia perigosa... fico toda arrepiada!
Ela fechou a janela, mas o som dos tambores e o brado de Mauro continuavam a ecoar, como uma ameaça à ordem da fazenda.

O Líder Rebelde
Mauro, agora plenamente consciente de seu propósito, começou a organizar a resistência. Ele conversava com os escravizados à noite, na senzala, sussurrando planos de sabotagem, fugas e, quem sabe, uma revolta maior. Séo Bastião, seu mentor, via nele o mesmo fogo que guiara Jamil, mas também uma nova determinação.
— Tu és o filho de Oxóssi, Mauro — disse Séo, uma noite, sob a luz de uma fogueira. — Teu pai começou essa luta, mas tu vais terminá-la. A senzala tá contigo, como esteve com ele.
Nhá Setembrina, tratando as cicatrizes nas costas de Mauro, sorriu, os olhos brilhando.
— A lenda vive em ti, menino — murmurou. — Baltazar, Jamil, e agora Mauro. Oxóssi nunca nos abandona.
Mauro assentiu, os olhos azuis fixos nas matas além da senzala. Ele sentia o chamado de seu pai e avô, encantados como Odés, guiando-o para as florestas cariocas. A fazenda, com seus cafezais e chicotes, era seu campo de batalha, e ele sabia que sua rebelião seria o próximo capítulo da saga do “Diabo do Olho Azul”.

A Tempestade Rebelde
A Fazenda Real de Santa Cruz estava em ebulição. Tião Galinha, humilhado pelo olhar de Mauro, tramava com Sinhá Inês e Dom Belchior para dobrar o jovem, mas temia o poder dos orixás que o protegiam. Inês, arrependida de trazer Mauro, mas incapaz de recuar, intensificava a vigilância, enquanto Belchior, alheio ao sobrenatural, via no neto apenas um escravo a ser domado.
Na senzala, a escravaria, inspirada por Mauro, sonhava com a liberdade. Ele não era apenas o filho de Jamil — ele era Oxóssi encarnado, um líder destinado a desafiar o jugo dos Albuquerque. As matas cariocas, com seus ventos suaves e sussurros, aguardavam o momento em que Mauro, como seu pai e avô, se tornaria uma lenda viva, um Odé que jamais se curvaria.

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