A Tríade dos "Diabos do Olho Azul" - cap. 16 - Mauro se entrega à Fazenda Real de Santa Cruz
O Fim de um Escudo
Rio de Janeiro, Império do Brasil, Dezembro de 1863
A mansão dos Albuquerque, na Lapa, estava envolta em um luto sufocante. O ar pesado do verão carioca misturava-se ao cheiro de velas e flores que adornavam o salão onde o corpo de Dom Murilo, o Visconde da Lapa, repousava. Aos 38 anos, Murilo sucumbira à sua doença misteriosa, deixando um vazio que ecoava nos corações de todos, mas sobretudo no de Mauro, seu filho adotivo. Aos 19 anos, Mauro via seu mundo desabar. Ele passou o dia ao lado do caixão, ajoelhado, as lágrimas escorrendo silenciosamente enquanto segurava a mão fria do homem que o criara como filho, apesar de saber a verdade sobre sua origem.
Mauro, com sua pele moreno jambo reluzente, cabelos encaracolados caindo sobre os ombros e olhos azuis intensos, olhava-se no espelho do quarto e via não o nobre Albuquerque, mas o reflexo de Jamil, o escravo rebelde, o “Diabo do Olho Azul”. Ele sentia o peso do sangue de Oxóssi em suas veias, mas também a sombra da senzala que agora o reclamava. Para Cândida, Eleutério e Edvaldo, que o observavam com preocupação, Mauro parecia uma fortaleza imóvel, mas não por força — era como se ele tivesse aceitado seu destino, uma rendição que os alarmava.
— Mauro, tu não podes te entregar! — sussurrou Cândida, a preta forra, enquanto ajustava o colarinho de sua casaca fúnebre. — Tu és mais que isso, menino. Oxóssi tá contigo!
Mauro apenas balançou a cabeça, os olhos fixos no vazio.
— Eu sei quem sou, tia Cândida — murmurou, a voz rouca. — Não adianta fugir.
Eleutério, ao lado, segurou o ombro do jovem, os olhos cheios de angústia.
— Maurinho, tu és livre, não importa o que digam! — insistiu. — Teu pai Jamil lutou por isso, e Murilo te deu um nome pra te proteger!
Mas Mauro permaneceu em silêncio, como se as palavras não o alcançassem. Edvaldo, seu primo e melhor amigo, tentou animá-lo, mas sua voz tremia.
— Vamos lutar por ti, Mauro! — disse Edvaldo, os olhos castanhos brilhando com determinação. — Tu não vai pra senzala!
Mauro olhou para ele, um sorriso triste nos lábios.
— Valdo, tu és meu irmão. Mas não podes mudar o que sou.
O Cortejo Fúnebre
O dia do enterro de Murilo amanheceu cinzento, com nuvens pesadas pairando sobre o Rio de Janeiro. O cortejo fúnebre atravessou as ruas da Lapa até o Cemitério da Ordem Terceira, uma procissão solene de carruagens negras e fidalgos enlutados. Mauro, à frente, vestia uma casaca preta, o rosto pálido e os olhos azuis opacos, carregando o peso de sua perda e da verdade que o perseguia. Helena, ao seu lado, caminhava com a cabeça baixa, o véu negro cobrindo o rosto, mas não as lágrimas. Edvaldo, firme, segurava a mão da tia, enquanto Cândida e Eleutério seguiam logo atrás, vigilantes.
Dom Belchior e Sinhá Inês, vindos da Fazenda Real de Santa Cruz, estavam presentes, suas figuras imponentes contrastando com a dor da família. Belchior, com seus 68 anos, mantinha uma expressão fria, enquanto Inês, aos 67, observava Mauro com olhos gélidos, um leve sorriso de triunfo nos lábios. Tião Galinha, o “Cão dos Brancos”, espreitava entre a multidão, seu chapéu surrado inclinado, o sorriso vil pronto para a caçada.
Quando o caixão de Murilo foi baixado à sepultura, um silêncio sepulcral envolveu o cortejo. O padre recitou as últimas orações, e o som da terra caindo sobre a madeira ecoou como um trovão no coração de Mauro. Foi então que Belchior avançou, suas mãos pesadas pousando nos ombros do jovem. Sua voz, grave e autoritária, cortou o silêncio.
— Tu seguirás conosco, ESCRAVO! — decretou, os olhos cravados em Mauro.
Helena ergueu a cabeça, o véu tremendo com seus soluços.
— Papai, não... tenha piedade do... meu filho! — implorou, a voz fraca, quase inaudível.
Edvaldo deu um passo à frente, o rosto vermelho de raiva.
— Tio Belchior, como ousas?! — exclamou, os punhos cerrados. — Mauro é um Albuquerque!
Eleutério tentou intervir, colocando-se entre Belchior e Mauro.
— Deixem o menino em paz! — disse, a voz firme, mas os olhos cheios de medo.
Mas Mauro, para o choque de todos, abriu os braços, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Sua voz, embora embargada, era clara e resignada.
— Deixem, meu avô está certo — disse, os olhos azuis fixos no chão. — Eu conheço meu lugar. Sou escravo, nasci escravo.
Num gesto dramático, ele encarou Tião Galinha e arrancou a casaca e a camisa, revelando o torso musculoso, e tirou os sapatos, ficando descalço. A multidão prendeu a respiração, atônita. Tião Galinha aproveitou o momento, aproximando-se com uma corda grossa nas mãos. Ele amarrou-a ao redor do pescoço de Mauro, puxando-a com força, o sorriso sádico iluminando seu rosto.
— Exu sempre me dá o que eu mereço! — zombou Tião, inclinando-se para sussurrar no ouvido de Mauro. — Diabinho do Olho Azul, agora tu vai apanhar por ti e pelo safado do teu pai!
Mauro não resistiu, os ombros caídos, o olhar perdido. Helena caiu de joelhos, chorando, enquanto Edvaldo gritava: — Mauro! Não! Você é um Albuquerque legítimo, herdeiro do meu tio! —, contido por Eleutério. Cândida cobriu o rosto, murmurando preces a Oxóssi.
—Senhor das matas! Pai das feras! Rompa esta corda e salve teu menino! — pedindo um milagre.
O Caminho para a Senzala
Mauro, descalço e com a corda no pescoço, seguiu Tião Galinha em direção à carruagem que o levaria à Fazenda Real de Santa Cruz. A multidão no cemitério se dispersava, alguns com lágrimas, outros com olhares de indiferença. Helena, apoiada por Cândida, soluçava, incapaz de impedir o destino do filho. Edvaldo, com os olhos vermelhos, jurou em silêncio que não deixaria Mauro nas garras de Belchior e Inês. Eleutério, ao lado, sentia o peso de sua promessa a Jamil, sabendo que a luta pela liberdade de Mauro estava apenas começando.
Enquanto a carroça se afastava, Mauro olhava a paisagem, a liberdade perdida, os olhos azuis fixos nas matas cariocas. O vulto que ele vira meses antes parecia mais claro agora — um homem com seus traços, olhos brilhando como faróis, acenando das sombras. Era Jamil, ou talvez Baltazar, chamando-o para as matas, para o reino de Oxóssi. Mas Mauro, estranhamente conformado, não sentia mais o impulso de fugir. Ele sabia que a Fazenda Real de Santa Cruz seria seu campo de batalha, como fora para seu pai.
Tião Galinha, sentado à frente, puxava a corda com prazer, rindo baixo.
— Teu pai escapou, Diabinho, mas tu não vais — disse, o tom carregado de malícia. — A senzala te espera, e o chicote dos Albuquerque também.
Mauro não respondeu, mas seus olhos azuis faiscaram por um instante, como se Oxóssi sussurrasse em sua alma. Ele poderia estar acorrentado, mas o fogo de seu pai e avô ainda ardia em seu peito.
A Tempestade Imminente
A morte de Murilo marcou o fim de uma era na mansão dos Albuquerque. Mauro, agora despojado de seu título e liberdade, enfrentava o destino que tanto temera. Helena, destruída pela culpa, sabia que sua confissão selara o caminho do filho para a senzala. Edvaldo, leal e indignado, planejava formas de salvar o primo, enquanto Cândida e Eleutério, guardiões do legado de Jamil, rezavam por um milagre.
Na Fazenda Real de Santa Cruz, Dom Belchior e Sinhá Inês aguardavam a chegada de Mauro, prontos para impor sua autoridade sobre o “escravo” que ousara viver como nobre. Tião Galinha, com seu ódio por Jamil renovado, via em Mauro a chance de vingar sua derrota de 19 anos atrás. Mas as matas cariocas, com seus ventos suaves e sussurros ancestrais, prometiam que o sangue de Oxóssi não se curvaria tão facilmente.
A saga do “Diabo do Olho Azul” continuava, com Mauro, o novo Odé, caminhando para um destino de luta, onde o chicote e a senzala seriam apenas o começo de sua resistência.
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