G.R.E.S. Unidos de Vila Margarida, a escola de samba que perdeu o morro. Cap 6 - Enfim, a Sapucaí...e Geraldo Quebra Galho avança na escola.

 O Carnaval de 2008 prometia ser o mais grandioso da história da Unidos de Vila Margarida. Pela primeira vez, a escola pisaria na Marquês de Sapucaí, no Grupo A, um marco que enchia a comunidade de orgulho, mas também de tensão.
     Geraldo Quebra Galho, agora totalmente imerso no comando da escola, apostava alto. Ele queria transformar a Vila Margarida numa potência, e seu dinheiro do bicho abria portas que a vila nunca imaginara. No sorteio do desfile, a escola, por ser a recém-promovida do Grupo B, estava escalada para abrir o Sábado de Carnaval, uma posição ingrata, com a avenida ainda fria. Mas Geraldo, com sua influência nos bastidores, mexeu os pauzinhos. Manipulando contatos e oferecendo favores, ele conseguiu que a Paraíso da Muvuca, uma escola tradicional em declínio, que corria o risco de ser rebaixada, cedesse sua posição nobre — a sexta a desfilar, horário de pico na Sapucaí — para a Vila Margarida. Conceição, ao saber da manobra, sentiu um arrepio na espinha. “Esse homem tá comprando tudo, Tião. Até a ordem do desfile!”, desabafou com o marido, enquanto observava a quadra de mármore lotada de novos rostos. Tião, com o apito pendurado no pescoço, apenas balançou a cabeça, com um olhar preocupado. “É o jogo dele, Conceição. Mas a gente precisa cuidar pra escola não perder a alma.”
   As mudanças não paravam. Depois de trazer da Portela o casal de mestre-sala e porta-bandeira Fernandinho e Cassiane, Geraldo Quebra Galho anunciou, num evento pomposo na quadra, a chegada de Luiz Estevão, vindo da Beija-flor, como novo diretor de harmonia. Luiz, conhecido por sua rigidez e experiência em escolas maiores, trouxe uma novidade que cortou o coração da vila: Manoel Marrequinho, o diretor de harmonia que estava com a escola desde o primeiro desfile, seria agora seu subalterno. Manoel, um homem humilde que conhecia cada componente pelo nome, engoliu o orgulho, mas seus olhos marejados diziam tudo e o constrangimento na quadra, antes festiva, era visível. Conceição, vendo a cena, sentiu outro arrepio. “Tão tirando a nossa história, Tião. O Marrequinho é da vila, esse Luiz não sabe o que é o nosso samba.”
    O golpe seguinte veio nas fantasias. Com a Sapucaí à vista, a escola atraiu um novo público: a classe média do bairro, ansiosa por aparecer na transmissão da TV Globo. Para atender à demanda de fantasias mais sofisticadas, Geraldo contratou o Ateliê do Arco-Íris, uma empresa famosa que produzia em larga escala para grandes escolas. Maria Luzia e suas costureiras, que por anos remendaram retalhos à luz de lamparina, foram deixadas de lado. Dona Benedita, a matriarca da vila, preparava a feijoada semanal na quadra com um peso no coração. Enquanto mexia o caldeirão, desabafou com Conceição: “Eu ia chamar as meninas pra um mutirão de costura, como sempre fizemos. Mas o Geraldo quer tudo comprado, tudo de fora. Isso não é Vila Margarida, Conceição.” A rainha, com os olhos úmidos, abraçou a amiga. “Eu sei, Tia. Mas a gente vai lutar pra manter o que é nosso.”
    A gota d’água veio com Mariozinho, agora Mário Silva, o jovem prodígio que carregava os sonhos da vila em seus desenhos. Numa noite, ele apareceu no barraco de Conceição e Tião, com o rosto sério. “Eu vou sair da escola, Dona Conceição”, anunciou, com a voz firme, mas embargada. Conceição, surpresa, segurou as mãos do rapaz. “Por quê, Mariozinho? Essa escola é tua também!” Ele respirou fundo. “Pergunta pro Seu Geraldo. Ele quer transformar a Vila Margarida numa vitrine pra Globo, numa escola que não é a nossa. Eu paguei tudo que ele me deu pra estudar, com ajuda do Caribé. Terminei os figurinos pro carnaval, e o Caribé vai levar o desfile, mas eu não levo o carnaval que o Geraldo quer. Não é o meu samba.” Conceição sentiu o chão sumir. “Perdemos o garoto de vez, Tião…”, murmurou, enquanto via Mário se afastar, com seu caderno de desenhos debaixo do braço. Tião, com um suspiro, respondeu: “Ele tá certo, meu amor. O Mário é como um beija-Flor, mas não voa na gaiola do bicho. Ele vai encontrar o caminho dele.”
    O carnaval de 2008 foi grandioso. Nilson Caribé, com os desenhos de Mário Silva, criou um desfile que encantou a Sapucaí, "Saudação aos orixás". Os carros alegóricos, agora profissionais, brilhavam sob as luzes, e as fantasias do Ateliê do Arco-Íris reluziam na transmissão da Globo. Conceição, como rainha representava Oxum, sambava com a força de sempre, mas seu sorriso escondia uma tristeza. Tião, na bateria, comandava o ritmo com precisão, mas sentia falta da espontaneidade dos ensaios no campinho. A escola terminou o desfile aplaudida de pé, mas a comunidade, apesar do brilho, sentia um vazio. Na apuração, a Unidos de Vila Margarida ficou em quarto lugar, um resultado sólido para uma estreante no Grupo A. Mas, na quadra, a festa parecia mais dos novos componentes, dos patrocinadores e da equipe de Luiz Estevão, que já falava em “profissionalizar” a escola. Dona Benedita servia a feijoada, mas sem o brilho de antes. Maria Luzia guardava suas agulhas, sem saber se voltaria a costurar para a escola. E Mário Silva, agora trabalhando com Caribé em outros projetos, observava de longe, sonhando com um carnaval onde o samba ainda tivesse a alma da Vila Margarida. Ele preparava a sua mudança para São Paulo, onde o mercado de trabalho para teatro e televisão era maior.
  Geraldo Quebra Galho, com um charuto na mão, brindava na quadra, alheio às tensões. “Agora sim, Vila Margarida é da Sapucaí!”, exclamava. Mas Conceição, ao lado de Tião, sussurrou: “Isso é Sapucaí, mas não é a nossa vila. Ainda.” A escola estava no auge, mas a custo de sua essência. O futuro, com Geraldo no comando, parecia incerto, e a comunidade, entre o orgulho e a saudade, se perguntava se o samba da Vila Margarida ainda pertencia a ela. O dinheiro comprava a Sapucaí e afastava o Morro.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 1

Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 2 ( A esperança de ser um herói )

Elias, das sombras da escravidão à luz da liberdade. Capítulo 3 ( A Glória, a Queda e o Luto )