G.R.E.S. Unidos de Vila Margarida, a escola de samba que perdeu o morro. Cap 7 - A riqueza em troca da essência, uma escola sem raiz.

 O Carnaval de 2009 trouxe um sabor agridoce para a Unidos de Vila Margarida. A escola, agora no Grupo A, nadava em dinheiro graças a Geraldo Quebra Galho, mas o preço desse luxo era alto, e a comunidade sentia cada vez mais o peso das mudanças.
    Nilson Caribé, o carnavalesco que havia dado alma ao desfile anterior, anunciou sua saída em solidariedade a Mário Silva, que, desiludido com os rumos da escola, começava a flertar com o teatro e a televisão, deixando o carnaval para trás. “O samba da Vila Margarida não é mais o mesmo, Caribé. Não dá pra desenhar pra quem quer transformar a gente em vitrine”, disse Mário, com a voz firme, mas carregada de saudade, enquanto entregava seus últimos esboços ao amigo. No lugar de Caribé, Geraldo contratou Milton Magalhães, um carnavalesco famoso por seu estilo extravagante e uma falsa humildade que enganava os desavisados. Milton chegou à quadra nova, com seu piso de mármore brilhando, acompanhado por repórteres da Globo, posando como se fosse um filho do morro. “Eu vim pra fazer a Vila Margarida brilhar na Sapucaí!”, declarou, com um sorriso ensaiado, enquanto apertava mãos e distribuía abraços forçados. Nos bastidores, Fernando Pamplona e Rosa Magalhães, que acompanhavam de longe, riam com desdém. “Esse Milton é uma caricatura. Quer ser popular, mas não engana quem conhece o samba de verdade”, disse Pamplona, segundo um amigo em comum.
    As mudanças continuaram a corroer a essência da escola. Numa festa badalada na quadra, Geraldo coroou Roberta, uma travesti famosa e amiga da mídia, como rainha dos destaques. Roberta, com sua simpatia e carisma, encantava as câmeras, mas a decisão escondeu uma crueldade. Chiquinho Babadeiro, o destaque que por anos investiu seu pouco dinheiro em fantasias caras para brilhar nos carros alegóricos, foi relegado a um papel humilhante. “Vai mudar de lugar, Chiquinho,  tu vai de destaque dos passistas, no chão!”, disse Luiz Estevão, o diretor de harmonia, com um tom frio. Chiquinho, magoado, não conteve as lágrimas no meio da quadra. “Tô arrasado! Destituído sem nenhum aviso! Meninos, desfilem por mim. A Vila acabou pra mim, aqui!”, desabafou, enquanto era amparado pelos “alegres” da vila, que tentavam consolá-lo. Conceição e Tião, assistindo à cena, sentiram o coração apertar. “Isso é covardia, Tião. O Chiquinho é a cara da nossa escola, e tão jogando ele fora como se fosse nada”, murmurou Conceição, com os olhos marejados.
      O golpe final veio na véspera do desfile. Quando Conceição foi buscar sua fantasia na quadra, Luiz Estevão, com sua arrogância habitual, nem a olhou nos olhos. “Sua fantasia não tá pronta, Dona Conceição. Problemas no ateliê. Vai ter que desfilar com uma roupa de apoio”, disse, enquanto mexia em papéis, como se a rainha da escola fosse uma estranha. A fantasia de apoio era uma camisa branca simples e uma saia azul, sem brilho, sem alma. Conceição, a negra retinta que fundou a Vila Margarida com Tião, que sambava com a força de um morro inteiro, ficou parada, olhando a quadra cheia de fantasias luxuosas do Ateliê do Arco-Íris, feitas para os novos componentes que sonhavam com a TV Globo. Seu peito doía, mas ela ergueu a cabeça. Na Sapucaí, a Unidos de Vila Margarida desfilou com um esplendor nunca visto para o enredo "O Reino de Ofir, um sonho amazônico". Os carros alegóricos, projetados por Milton Magalhães com base nos últimos desenhos de Cristiano, que finalmente deixava de ser auxiliar de Mário Silva e era guindado a desenhista por Milton Magalhães, eram grandiosos, cobertos de plumas, luzes e efeitos. A bateria, ainda sob o comando de Tião, tocava com uma precisão que arrancava aplausos e o samba amparado em refrões populares era cantado pelo público. A escola nem parecia envolta em tantos atritos entre o morro e o asfalto.
    Tião, batendo o surdo com força, sentia raiva. Ele via Conceição, sua rainha, reduzida a uma componente de apoio, sambando no fundo da ala, com uma roupa que não fazia jus à sua história. Quando um repórter veterano da Globo e que já entrevistou Conceição por outras escolas, se aproximou, Conceição, com lágrimas contidas, olhou direto para a lente e declarou: “É o segundo desfile da Vila na Sapucaí, e é minha despedida das escolas de samba!” A frase ecoou como um trovão no meio do samba, silenciando quem estava por perto. Tião, na bateria, sentiu o coração apertar, mas continuou tocando, como se cada batida fosse um grito de resistência.
    O desfile foi impecável, e a apuração trouxe a vitória: a Unidos de Vila Margarida conquistou o Grupo A e subiu para o Grupo Especial, o sonho de qualquer escola. A quadra explodiu em festa, com Geraldo brindando com champanhe e Milton Magalhães posando para fotos, logicamente se esquecendo dos créditos para Cristiano, que mesmo assim vibrava com o título e ligava para Mário Silva, comemorando a vitória.
      Para a comunidade da Vila Margarida, a vitória tinha um gosto amargo. Dona Benedita, servindo a feijoada da vitória no sábado após o desfile do campeonato pelo bairro, não sorria. Maria Luzia guardava suas agulhas, sem saber se voltaria a costurar. Chiquinho, que nem desfilou, assistiu à apuração de longe, no bar da vila, com um copo de cerveja intocado e os amigos alegres tentando reanimá-lo e incentivando-o a colocar fantasia de destaque por outra escola.
    Mário Silva, agora no teatro, soube da vitória por Cristiano, feliz pelo amigo mas apenas balançou a cabeça. “Não é mais a nossa Vila! Pelo menos o Milton te colocou como projetista!”, disse ao amigo. Conceição e Tião, de mãos dadas na quadra, olhavam a festa como se fossem estranhos. “A gente sonhou com isso, com o Grupo Especial, Tião. Mas não assim”, disse ela, com a voz embargada. Tião, com o apito pendurado, respondeu: “O samba não morre, meu amor. A Vila Margarida pode ter sido tomada, mas a nossa alma tá guardada. E isso ninguém tira.” A escola estava no Grupo Especial, mas a custo de sua essência. Para Conceição, Tião, Chiquinho e tantos outros, a Sapucaí nunca parecera tão distante.

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