A Tríade dos "Diabos do Olho Azul" - Cap 14 - A Verdade de Mauro se revela cada vez mais.
A Angústia de Mauro
Mansão dos Albuquerque, Lapa, Rio de Janeiro, 1860. O sobrado, com suas colunas de mármore e lustres de cristal, era um oásis de opulência no coração da corte imperial, mas, naquele início de ano, abrigava uma tensão silenciosa. Mauro de Albuquerque, recém-completados 16 anos, vivia dias angustiantes. Sua aparência — pele moreno jambo, cabelos encaracolados caindo sobre os ombros, lábios grossos e olhos azuis intensos, herança de Baltazar e Jamil — o tornava uma figura marcante, mas também um estranho em sua própria família. Ele questionava sua origem, atormentado pelo deslize de Eleutério dois anos antes, quando o preto forro mencionara Jamil, seu verdadeiro pai.
Numa tarde abafada, na sala de estar da mansão, Mauro confrontou sua mãe, Helena. O sol filtrava-se pelas cortinas de renda, iluminando os móveis de jacarandá, enquanto Helena, agora com 37 anos, bordava com mãos trêmulas. Mauro, com o coração acelerado, desabafou, a voz carregada de angústia.
— Mãe, eu não pareço nada com a senhora! — começou, andando de um lado para o outro. — Meus cabelos teimam em ser encaracolados, minha pele é moreno jambo. Meu pai é bondoso, mas quando me olho no espelho, não reconheço nada dele em meus traços! Sem contar que a mata me agonia, como se algo ou alguém me chamasse! Há quase dois anos, percebo um capitão do mato me espreitando, dizendo que pareço com um tal “Diabo do Olho Azul”!
Helena deixou o bordado cair no colo, os olhos verdes arregalados. Ela abriu a boca para responder, mas a voz falhou. Na porta, Dom Murilo, o Visconde da Lapa, ouviu o desabafo e interveio, sua figura imponente preenchendo o espaço. Aos 46 anos, ele ainda era um homem belo, mas seus olhos castanhos carregavam uma melancolia profunda.
— Basta, Mauro! — disse, a voz firme, mas gentil. — Tu és um Albuquerque legítimo, e, enquanto eu viver — e será por muito tempo —, ficará assim!
O silêncio invadiu a sala, pesado como chumbo. Helena baixou os olhos, as mãos tremendo. Mauro olhou de Murilo para a mãe, sentindo a verdade pairar no ar, mas ninguém ousava dizê-la. Eleutério, que entrara com uma bandeja de chá, ficou parado, o rosto tenso. Cândida, ao lado de Helena, segurou a mão da sinhazinha, oferecendo um apoio silencioso. Todos sabiam que Mauro era filho de Jamil, o escravo rebelde que se tornara Odé, mas o segredo permanecia intocado, como uma ferida que ninguém queria abrir.
Mauro, frustrado, saiu da sala, os passos ecoando no chão de madeira. Helena cobriu o rosto com as mãos, as lágrimas escorrendo. Murilo aproximou-se dela, tocando seu ombro.
— Ele vai entender, Helena — murmurou. — Com o tempo.
Mas, no fundo, Murilo sabia que o tempo só tornaria a verdade mais inevitável.
A Confissão de Murilo
Mais tarde, no estábulo da mansão, Murilo encontrou Eleutério, seu fiel cocheiro, ajustando as rédeas de uma carruagem. O visconde, com o peso da conversa ainda no peito, deixou a máscara de fidalgo cair, revelando uma vulnerabilidade rara. Ele sentou-se num banco de madeira, o chapéu nas mãos, e desabafou.
— Eu sei o que todos sabem e não ousam dizer, Eleutério — começou, a voz baixa, quase um sussurro. — Mauro é filho de Jamil, o mulato que desapareceu numa ventania na fazenda do meu tio. Ele é a cópia exata de Jamil. Eu bem que tentei ter meus próprios filhos, tentei... tanto! Mas sou uma figueira seca, incapaz de gerar filhos. Por isso me apeguei tanto ao Maurinho, meu filho do...coração.
Eleutério, comovido, parou o trabalho e colocou a mão no ombro de Murilo. Seus olhos, marcados pela vida na senzala e pela liberdade conquistada, brilhavam com empatia.
— Dom Murilo, o senhor é o pai que Mauro precisa — disse, a voz grave e sincera. — Não é o sangue que faz um pai, é o amor. O senhor deu a ele um nome, uma casa, um futuro. Jamil, que Oxóssi o guarde, ficaria orgulhoso.
Murilo sorriu, mas seus olhos marejaram. Ele apertou a mão de Eleutério, grato pela lealdade do homem que conhecia seu segredo mais profundo.
— Obrigado, Eleutério. Mas temo o dia em que a verdade vier à tona. Tião Galinha... aquele maldito delator... ele sabe, não é?
Eleutério assentiu, o rosto endurecendo.
— Ele sabe, sinhô. E é por isso que precisamos proteger Mauro. Tião é um demônio, e ele não vai descansar até arrancar o menino da sua proteção.
As Dúvidas de Mauro e Edvaldo
No pátio da mansão, sob a sombra de uma mangueira, Mauro conversava com Edvaldo, seu primo e melhor amigo. Aos 16 anos, Edvaldo era robusto, com cabelos castanhos e um sorriso que suavizava qualquer tensão. Mauro, com os braços cruzados, olhava para o horizonte, onde a mata carioca parecia sussurrar seu nome.
— Edvaldo, eu sou tão diferente de você! — disse, a voz carregada de frustração. — Claro, somos primos, mas não falo disso, tolo! Falo da minha pele, dos meus olhos! Ninguém nesta família tem olhos azuis ou pele tão morena quanto a minha!
Edvaldo riu, jogando uma pedra no chão.
—Claro, Maurinho, tu és tu, e eu sou eu! — brincou, mas ao ver a seriedade do primo, suavizou o tom. — Olha, não sei o que te angustia tanto, mas tu és um Albuquerque. Isso basta, não é?
Mauro balançou a cabeça, os olhos azuis fixos na mata.
— Não basta, Valdo. Sinto ele... alguém me chamando. E aquele homem, o Tião, ele me olha como se soubesse alguma coisa sobre quem eu sou, de fato.
Cândida e Eleutério, que passavam pelo pátio carregando cestos de roupas, ouviram a conversa e trocaram um olhar preocupado. Eles sabiam que Tião Galinha espreitava a mansão cada vez mais, sua figura sinistra aparecendo nas esquinas da Lapa, observando Mauro com olhos de predador. Eleutério aproximou-se dos jovens, a voz firme, mas carregada de urgência.
— Pelo amor de Deus, Mauro, se aquiete! — disse, segurando o ombro do rapaz. — Dom Murilo é teu pai! Tião Galinha é astuto demais e pode causar um rebuliço nesta corte. Não dá corda pra ele, menino!
Mauro olhou para Eleutério, sentindo a verdade nas entrelinhas, mas assentiu, relutante. Cândida, com um suspiro, murmurou uma prece a Oxóssi, pedindo proteção para o jovem que carregava o sangue de Jamil.
A Trama na Fazenda Real de Santa Cruz
Dois anos depois, em 1862, a sombra de Tião Galinha tornou-se ainda mais perigosa. O “Cão dos Brancos”, agora com 50 anos, viajou à Fazenda Real de Santa Cruz, movido por sua obsessão em destruir o legado de Jamil. Ele encontrou Dom Belchior e Sinhá Inês na sala de jantar da casa-grande, onde os candelabros de prata iluminavam uma mesa farta. Belchior, envelhecido mas ainda autoritário, fumava um charuto, enquanto Inês, com seus 65 anos, mantinha o olhar gélido de sempre.
Tião, com seu chapéu surrado na mão e o sorriso vil curvando os lábios, sentou-se sem ser convidado, ignorando o protocolo.
— Nhô Belchior, Sinhá Inês, já repararam direito no neto de ocês? — começou, a voz carregada de malícia.
Belchior franziu o cenho, confuso.
— Tião, falas do Edvaldo, o delicado? Ele é meu sobrinho-neto!
Tião riu, balançando a cabeça.
— Não, sinhô, falo do outro, do neto mesmo, do parrudinho moreno! Filho de Sinhazinha Helena com Dom Murilinho!
Inês inclinou-se para a frente, o leque parando de se mover.
— O Maurinho? — perguntou, a voz cortante. — Ele tem um porte incomum, mesmo, parrudo demais! E... OLHOS AZUIS! Como não percebi antes?
Tião bateu na mesa, os olhos brilhando com triunfo.
— Sim, Sinhá Inês! Matou a charada! Sua filha se deitou com o Diabo do Olho Azul há dezoito anos atrás! Me desculpe falar a verdade, mas toda a corte sabe disso!
Inês levantou-se, o rosto vermelho de fúria, o leque caindo no chão.
— A desgraçada da minha filha pariu um escravo que me pertence! — gritou, os olhos faiscando. — Um bastardo de Jamil, aquele mulato insolente e miserável!
Belchior, mais calmo, mas igualmente cruel, apagou o charuto, pensativo.
— Pois é, Tião — disse, a voz grave. — Mas enquanto meu sobrinho Murilo viver, nada pode ser feito. Ele protege o menino como se fosse dele.
Tião sorriu, inclinando-se como um conspirador.
— Agora, depois... com algum acidente ou fatalidade... o Diabinho do Olho Azul pode vir pra onde ele tem que ficar: a senzala daqui da Fazenda Real de Santa Cruz.
Inês voltou a sentar-se, os olhos estreitados, a mente já tramando.
— Um acidente... — murmurou, um sorriso cruel curvando seus lábios. — Sim, isso pode ser arranjado.
Belchior assentiu, olhando para Tião.
— Tu tens teu preço, Tião. Fala.
Tião riu, recostando-se na cadeira.
— Só quero ver o filho do Diabo do Olho Azul onde ele pertence, sinhô. E, quem sabe, um punhado de mil-réis pra garantir minha lealdade.
Os três selaram a trama com um silêncio conspiratório, planejando como se apoderar de Mauro, que, pelo sangue de Jamil, era considerado escravo da Fazenda Real de Santa Cruz. A corte, a mansão, a fazenda — tudo convergia para um confronto que testaria o legado de Oxóssi.
A Tempestade que Se Aproxima
Na mansão dos Albuquerque, Mauro sentia o chamado da mata, o peso dos olhos azuis que não explicava, e a ameaça de Tião Galinha, que o espreitava como um lobo. Eleutério e Cândida, guardiões do segredo, temiam o dia em que Murilo, o único escudo de Mauro, pudesse faltar. Edvaldo, leal mas alheio à gravidade, tentava manter o primo ancorado. Helena, dividida entre o amor pelo filho e a culpa pelo passado, rezava para que a verdade não destruísse tudo.
Na Fazenda Real de Santa Cruz, Belchior, Inês e Tião tramavam, movidos por vingança e ganância. Mauro, aos 18 anos, estava no centro de uma batalha que não conhecia, mas que seu sangue — o sangue de Baltazar e Jamil, os Odés de Oxóssi — o preparava para enfrentar. A saga do “Diabo do Olho Azul” continuava, com um novo herdeiro prestes a descobrir seu destino.
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