A Tríade dos "Diabos do Olho Azul". Cap1- Oju Odebomani, o primeiro dos "Diabos de Olho Azul".
O Crepúsculo de Ketu
Nas terras douradas de Ketu, em 1805, o sol ardia como uma forja divina, banhando os telhados de palha com uma luz que parecia pulsar com vida própria. As savanas sussurravam, carregadas de histórias de ancestrais, orixás e heróis, enquanto o vento quente dançava entre as árvores de baobá. Mas, nos últimos dias, um peso pairava sobre a aldeia, um silêncio opressivo que fazia até os pássaros hesitarem em cantar. Algo estava morrendo em Ketu, e não era apenas o rei.
No coração da aldeia, o palácio de adobe e madeira, adornado com esculturas de leões e símbolos de Oxóssi, parecia murchar sob a sombra da tragédia. O Rei Afolabi Odenire, outrora um leão cuja voz ecoava como trovão e cujos passos faziam a terra tremer, agora jazia em seu leito, a pele outrora reluzente como ébano reduzida a um cinza doentio. Seus olhos, antes faiscantes, mal se abriam, e sua respiração era um sussurro frágil. Os curandeiros, com seus colares de contas e cânticos para Iemanjá e Oxalá, tentavam em vão deter a doença que o consumia. Ervas, ungüentos, oferendas aos orixás — nada parecia suficiente. Os tambores, que antes vibravam em celebrações de colheitas e vitórias, agora tocavam um ritmo lento, fúnebre, como se a própria terra soubesse que uma era estava prestes a se apagar.
No centro dessa tempestade silenciosa estava Oju Odebomani, o príncipe herdeiro. Seus olhos azuis, raros como safiras no coração da África, brilhavam com uma mistura de determinação e melancolia. Alto, com ombros largos e músculos esculpidos como os de um guerreiro abençoado por Ogum, Odebomani era a personificação da realeza. Sua beleza era lendária: a pele negra reluzia como obsidiana polida, e seu porte másculo atraía olhares onde quer que passasse. As mulheres de Ketu disputavam sua atenção, sussurrando entre si sobre quem seria a escolhida para ser sua esposa principal, a futura rainha. As jovens sonhavam com seu sorriso, enquanto as mães viam nele a promessa de um reinado glorioso. Os meninos da aldeia o idolatravam, imitando sua postura com varinhas que fingiam ser lanças, sonhando em ser guerreiros tão fortes quanto ele. Mas nem todos o viam com admiração. Entre os homens adultos, a inveja crescia como erva daninha, alimentada por sua força, sua beleza e seu destino de rei.
No entanto, a maior ameaça a Odebomani não vinha dos homens comuns, mas de seu próprio sangue. Seus irmãos mais novos, Adisa Odebomani e Afolabi Odekelui, nutriam um rancor profundo. Adisa, o segundo na linha de sucessão, era astuto, com uma língua afiada e um olhar que parecia sempre calcular. Afolabi, o caçula, era impulsivo, mas igualmente ambicioso, ressentido por ser o último na hierarquia. Ambos viam Oju como um obstáculo, uma sombra que os impedia de brilhar. E agora, com o rei à beira da morte, a oportunidade de derrubá-lo finalmente surgira.
A Semente da Traição
Na penumbra de uma cabana afastada, sob a luz trêmula de uma lamparina, Adisa e Afolabi conspiravam. O ar estava pesado com o cheiro de ervas queimadas, e o som distante dos tambores fúnebres ecoava como um presságio.
— Ele não pode subir ao trono — sussurrou Adisa, seus olhos brilhando com malícia. — Oju é adorado, mas é fraco. Esses olhos azuis... há algo de errado com ele. O povo já murmura.
Afolabi, sentado em um banco de madeira, socou a palma da mão com o punho.
— Fraco? Ele é um pavão, pavoneando-se com esses olhos de feiticeiro! As mulheres caem aos seus pés, os guerreiros o seguem como se fosse um orixá encarnado. Mas eu sei a verdade: ele não é digno. E agora, com nosso pai morrendo, é nossa chance.
Adisa sorriu, um sorriso frio que não alcançava os olhos.
— Precisamos de algo maior. Algo que o destrua para sempre. — Ele se inclinou para frente, a voz baixando ainda mais. — As Yami Odu. As mães do Segredo. O povo as teme mais do que a morte. Se espalharmos que Oju é ligado a elas, que seus olhos azuis são um presente das feiticeiras...
Afolabi franziu o cenho, hesitante.
— Mas como provar isso? Ele negará. E os olhos dele... todos sabem que são uma bênção de Oxóssi.
Adisa riu, um som baixo e cruel.
— Provar? Não precisamos provar. Precisamos apenas plantar a semente. As mulheres falarão, as mães temerão por seus filhos, os guerreiros questionarão sua lealdade. E quando o povo duvidar, ele estará acabado. Quanto aos olhos... diremos que a mãe dele, antes de conceber Oju, fez um pacto com as Yami Odu. Que ela ofereceu o filho às feiticeiras em troca de poder para nosso pai.
Afolabi arregalou os olhos, impressionado com a audácia do plano.
— E o povo acreditará?
— O povo acredita no medo — respondeu Adisa, levantando-se. — E nós faremos eles temerem Oju Odebomani.
O Fogo da Calúnia
Nos dias seguintes, a mentira se espalhou como fogo em capim seco. Começou com sussurros entre as mulheres no mercado, enquanto trançavam cestas ou moíam inhame.
— Vocês viram os olhos do príncipe? — dizia uma, olhando por cima do ombro. — Tão azuis... não é natural. Minha avó dizia que as Yami Odu marcam seus escolhidos com olhos assim.
— Minha irmã ouviu que a mãe dele foi vista na floresta antes de ele nascer — acrescentou outra, a voz trêmula. — Ela fez um pacto com as mães do Segredo. Por isso ele é tão belo, tão forte... mas a que custo?
As histórias cresciam, alimentadas pelo medo e pela inveja. Logo, os homens começaram a repetir as acusações, suas vozes carregadas de desconfiança. Até os curandeiros, que outrora viam os olhos de Oju como uma bênção, começaram a hesitar, murmurando entre si sobre sinais de feitiçaria.
Oju, alheio à conspiração, passava seus dias ao lado do pai, segurando sua mão frágil e ouvindo suas últimas palavras. O rei, em um raro momento de lucidez, apertou o braço do filho.
— Meu filho... — sua voz era um fio de som. — Ketu precisa de você. Seja forte. Os orixás... estão com você.
Oju assentiu, os olhos azuis marejados.
— Eu juro, meu pai. Proarei Ketu com minha vida.
Mas enquanto ele fazia sua promessa, a aldeia se transformava em um ninho de víboras. No dia do funeral do rei, a traição atingiu seu ápice.
A Queda do Príncipe
O funeral de Afolabi Odenire foi um espetáculo de dor e reverência. O corpo do rei, envolto em tecidos brancos e adornado com colares de contas, foi levado em procissão pelas ruas de Ketu. Os tambores soavam, as mulheres cantavam hinos para guiar sua alma ao Orun, e o povo se reunia em luto. Mas, no centro da multidão, uma tensão crescia.
Oju, vestido com uma túnica preta e uma faixa de bronze na testa, liderava a procissão, seu rosto impassível, mas os olhos brilhando com lágrimas contidas. Ele carregava a lança cerimonial do pai, um símbolo de sua herança. Por trás dele, Adisa e Afolabi trocavam olhares, seus rostos escondendo um triunfo cruel.
Quando a procissão chegou ao grande baobá sagrado, onde o corpo do rei seria entregue à terra, Adisa deu um passo à frente, erguendo a voz para que todos ouvissem.
— Povo de Ketu! — exclamou, apontando para Oju. — Hoje choramos nosso rei, mas também devemos enfrentar uma verdade amarga. Este homem, que se diz nosso herdeiro, é um traidor! Seus olhos azuis são a marca das Yami Odu, as feiticeiras que ameaçam nossa terra!
Um murmúrio de choque percorreu a multidão. Oju congelou, a lança ainda em mãos, seus olhos arregalados de incredulidade.
— O que você está dizendo, Adisa? — sua voz era firme, mas carregada de dor. — Nosso pai está morto, e você ousa manchar seu funeral com mentiras?
Afolabi deu um passo à frente, apontando para o irmão.
— Mentiras? Todos sabem que sua mãe fez um pacto com as mães do Segredo! Por isso você nasceu com esses olhos demoníacos! Você trouxe essa doença ao nosso pai, feiticeiro!
A multidão explodiu em gritos. Algumas mulheres choravam, outras rogavam pragas. Os guerreiros, que outrora juraram lealdade a Oju, hesitavam, suas mãos apertando as lanças. Oju olhou ao redor, vendo rostos que ele conhecia desde criança agora distorcidos pelo medo e pela raiva.
— Eu sou inocente! — gritou, sua voz ecoando sobre o tumulto. — Meus olhos são uma bênção de Oxóssi, não uma maldição! Vocês me conhecem! Eu lutei por Ketu, sangrei por Ketu!
Mas suas palavras foram abafadas pelo clamor. Adisa ergueu as mãos, pedindo silêncio.
— Ele nega, mas o perigo é claro! Por quanto tempo deixaremos um feiticeiro nos governar? Proponho que Oju Odebomani seja banido... ou pior!
A multidão rugiu em aprovação. Oju, ainda segurando a lança, deu um passo à frente, mas foi imediatamente cercado por guerreiros. Ele poderia ter lutado — sua força era lendária, e ele poderia ter derrubado muitos antes de cair. Mas ao ver os rostos aterrorizados das crianças, as lágrimas das mulheres, ele baixou a arma.
— Se é isso que Ketu deseja... — disse, a voz quebrada, — que assim seja. Mas saibam que nunca traí meu povo.
Os guerreiros o agarraram, arrancando sua faixa real e amarrando suas mãos. A multidão o xingava, jogando terra e cuspindo enquanto ele era arrastado para fora da aldeia. Adisa e Afolabi observavam, seus rostos impassíveis, mas os olhos brilhando com vitória.
O Destino Cruel
Naquela mesma noite, sob o véu da escuridão, Oju foi entregue a mercadores daomeanos, homens de rostos duros que cheiravam a sal e ganância. Eles o examinaram como se fosse um cavalo, rindo de sua beleza e comentando sobre o preço que ele alcançaria no mercado de escravos.
— Um príncipe, hein? — zombou o líder, um homem com cicatrizes no rosto. — No Brasil, você não será nada além de um escravo. Esses olhos azuis vão chamar atenção, mas vão te trazer mais chicotadas do que ouro.
Oju não respondeu. Ele estava acorrentado, sua túnica rasgada, o corpo dolorido. Mas seus olhos ainda queimavam com uma chama que nem as correntes poderiam apagar.
Dias depois, ele foi colocado em um navio negreiro, um porão escuro e fétido onde homens, mulheres e crianças estavam amontoados como gado. O cheiro de suor, urina e desespero era sufocante. O som dos gemidos, das correntes e das ondas batendo contra o casco era uma sinfonia de sofrimento.
Oju, sentado entre os outros prisioneiros, olhou ao redor. Ele viu um velho com cicatrizes nas costas, uma jovem que abraçava um filho pequeno, um guerreiro cujo olhar vazio dizia que ele havia perdido tudo. Pela primeira vez, Oju percebeu a verdade: sua nobreza, seu título, sua coroa — tudo isso era uma ilusão. Ele era apenas mais um entre os sofridos, um homem arrancado de sua terra, destinado a uma vida de dor.
Mas, naquele momento, algo se acendeu em seu coração. Ele se lembrou das palavras de seu pai: "Ketu precisa de você." Não era o trono que importava, mas sim o povo. E agora, ele via, era aquele povo acorrentado, aquele povo que sofria.
— Eu juro — sussurou para si mesmo, os olhos azuis brilhando na escuridão —, lutarei por vocês. Mesmo em essa terra estranha, mesmo como escravo, eu serei forte. Por Ketu. Por nós.
O navio seguia rumo ao Brasil, carregando o príncipe de Ketu, agora um homem com uma nova missão maior do que qualquer trono: a luta pela liberdade de sua gente.
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