Isaquias, o craque - Cap (7)

      A rescisão do contrato de Reginaldo com o Flamengo veio como um alívio silencioso para Isaquias, mas também com um gosto amargo. A diretoria, habilidosa em proteger a imagem do clube, abafou o caso, evitando que a denúncia de Isaquias desencadeasse uma investigação mais ampla nas categorias de base do futebol brasileiro. A justificativa oficial foi “descumprimento de normas internas”, e Reginaldo desapareceu do radar do Flamengo sem alarde.
     Para Isaquias, a saída do zagueiro era uma vitória, mas a falta de uma justiça plena deixou um vazio. Ele carregava a sensação de que o sistema, mais uma vez, protegera os culpados em nome da conveniência. Mesmo assim, com um nó na garganta e enfrentando seus demônios internos, Isaquias seguiu em frente. Nos seis anos seguintes, ele se consolidou como um dos grandes nomes do Flamengo. No meio-campo, sua visão de jogo e habilidade o transformaram em ídolo, com a torcida cantando “O Menino de Ferro do Crato” em cada partida. Ele conquistou títulos, acumulou prêmios e, acima de tudo, encontrou uma forma de conviver com suas cicatrizes. O apoio de Robertinho e Fernando, que se tornaram sua segunda família, foi essencial. Em Ipanema, nas conversas regadas a café e histórias, ele aprendeu a perdoar a si mesmo, mesmo que os fantasmas nunca desaparecessem por completo, o apoio terapêutico do psicólogo Luiz Roberto, do Flamengo, também ajudou. Não raro, Isaquias levava Fernando junto, como um encorajador para jogar suas verdades, que temia revelar. Isaquias ia se curando internamente, perdoando-se e adquirindo consciência e autoestima renovadas.
   Aos 27 anos, com uma carreira sólida e dinheiro suficiente para viver confortavelmente, Isaquias tomou uma decisão que surpreendeu a todos: voltar para Fortaleza e encerrar a carreira no Ferroviário, o clube que o revelou e pelo qual sempre nutriu um carinho especial. A notícia pegou até seus amigos mais próximos de surpresa. Numa noite, em Ipanema, Fernando e Robertinho, agora vivendo uma vida mais tranquila após a aposentadoria de Robertinho, tentaram entender. — Tu vai quase pagar pra jogar? É isso, Zaquias? — perguntou Fernando, com um misto de incredulidade e preocupação, enquanto servia uma cerveja. Robertinho, ao lado, completou: — Mano, tu tá no auge, no Flamengo, com a torcida te amando. Por que voltar pro Ferrinho agora? Isaquias sorriu, um sorriso agridoce que carregava anos de luta. Ele olhou para o mar, visível pela janela, e respondeu com a voz serena:
— Eu tô saindo do futebol, Fernando. Já tenho minha casinha no Crato, já deixei Mainha e a família bem. Quero sossego. Se eu não tive amores, eu quero ter paz.
    As palavras pesaram no ar. Fernando e Robertinho se entreolharam, entendendo que, para Isaquias, a paz era uma conquista maior que qualquer troféu. Eles o abraçaram, prometendo visitá-lo em Fortaleza. Fernando, emocionado, beijou a testa e os olhos de Isaquias, a quem amava como a um filho, e desejou:— Faz a tua vontade, a do teu coração! Sei que o Rio te deu muita coisa boa e te libertou, mas se o Ceará tá te chamando de volta, vai! Seja feliz, meu menino!  
   De volta ao Ceará, Isaquias vestiu a camisa do Ferroviário com um orgulho que vinha da alma. Ele jogava não por dinheiro ou fama, mas por amor ao clube que o acolhera menino, ao bairro da Barra do Ceará, às memórias de peladas na favela. Em campo, ainda era o maestro, mas fora dele, levava uma vida quase celibatária, escolhendo a solitude como refúgio. Ele comprou uma casa simples no Crato, onde passava os dias livres cuidando de um pequeno jardim e lendo os livros que Henrique e Fernando lhe apresentaram anos antes. Os fantasmas do passado ainda apareciam, mas Isaquias aprendera a enfrentá-los. Ele não teve o grande amor que sonhou, mas encontrou algo mais raro: a paz de ser quem era, sem máscaras, sem medo. No Ferroviário, ele jogou sua última temporada, despedindo-se com um gol de falta no Castelão, o estádio que o vira nascer como craque e renascer como homem. A torcida, pequena mas apaixonada, cantou seu nome, e Isaquias, com lágrimas nos olhos, ergueu a mão em agradecimento. De forma agridoce, Isaquias pendurou as chuteiras. Ele venceu de seu jeito — não com vingança ou glórias efêmeras, mas com a coragem de enfrentar seus traumas e construir uma vida onde, finalmente, podia descansar. No Crato, sob o céu estrelado do interior, o menino de ferro encontrou, enfim, sua paz.
A casa de Isaquias no Crato era simples, mas cheia de vida. O pequeno jardim, que ele cultivava com cuidado, florescia com girassóis e jasmins, um contraste com a terra seca que marcara sua infância. Quando Dona Sebastiana e Ezequiel chegaram para visitá-lo, o ar parecia mais leve, como se o passado, com todas as suas dores, tivesse dado uma trégua. Ezequiel, agora mais grisalho, mas com o mesmo olhar protetor, trouxe um sorriso largo ao abraçar o irmão. — Mano, tu virou jardineiro agora? — brincou, apontando para as flores. Isaquias riu, um riso sincero que há muito não ecoava tão livre. — É o que me acalma, Quiel. Dona Sebastiana, com os cabelos brancos presos num coque e o rosto marcado pela luta, observava o filho com um orgulho que não precisava de palavras. Eles se sentaram à mesa da cozinha, onde Isaquias serviu um café fresco e bolo de milho, feito com a receita da mãe. Ezequiel, percebendo o momento especial entre mãe e filho, inventou uma desculpa. — Vou dar uma volta ali, ver se o Crato mudou muito — disse, piscando para Isaquias antes de sair. Sozinhos, Dona Sebastiana segurou a mão do filho. Seus olhos, cansados mas cheios de doçura, pareciam enxergar além do que Isaquias jamais contara. Ela falou, com a voz suave, mas firme: — Filho é do mundo, Zaquias. Só é nosso enquanto não sabe andar sozinho. Fala, meu filho, diz o que tua velha mãe precisa ouvir. Isaquias olhou para ela, e algo dentro dele desabou. Ele não precisava contar sobre o sítio, o trauma, as noites em que quis desistir. Ele não precisava explicar o peso de ser quem era num mundo que nem sempre acolhia. As lágrimas vieram, silenciosas, e ele se levantou, envolvendo a mãe num abraço apertado. Dona Sebastiana o acolheu, como fazia quando ele era criança, acariciando seus cabelos enquanto ele chorava. Palavras eram desnecessárias. Naquele abraço, havia perdão, amor e a certeza de que, apesar de tudo, Isaquias sempre seria o orgulho dela. Eles ficaram assim, em silêncio, enquanto o sol se punha no Crato, e a paz que Isaquias tanto buscara parecia, enfim, estar ao alcance de suas mãos.

Uma biografia e uma inspiração:
      A descoberta de Chris Dickerson por Isaquias, através das histórias contadas por Fernando em Ipanema, tornou-se um marco em sua jornada. Sentado na sala do apartamento com vista para o mar, Isaquias ouvia, hipnotizado, enquanto Fernando narrava a saga do fisiculturista que, contra todas as probabilidades, se tornou o primeiro negro americano e o primeiro — e até então único — homem abertamente gay a conquistar o título de Mr. Olympia. As palavras de Fernando ecoavam com admiração, detalhando as humilhações homofóbicas que Dickerson enfrentara nos bastidores do esporte, os olhares de desprezo, os comentários maliciosos, e, ainda assim, sua determinação inabalável em provar seu valor. Mais tarde, de volta ao Crato, Isaquias mergulhou na biografia de Dickerson. Ele lia com avidez, página após página, sobre como o atleta transformava a dor em força, usando cada insulto como combustível para erguer mais peso, para se erguer acima do preconceito.
    A história de Dickerson ressoava profundamente com Isaquias. Ele via paralelos com sua própria vida — o peso do segredo, a violência sofrida em Fortaleza, a luta para ser aceito num mundo que muitas vezes rejeitava quem ele era. Mas, acima de tudo, ele via em Dickerson um exemplo de alguém que escolheu a autenticidade e a solidão digna em vez de se curvar às expectativas alheias. Inspirado, Isaquias tomou uma decisão profunda. Ele não buscaria mais amores ocasionais, como o breve momento com Mauro nas areias de Ipanema, nem se prenderia à esperança de um romance que talvez nunca viesse. Ele queria viver como Dickerson vivera em muitos momentos: sozinho, mas inteiro, sem depender da validação de outros para encontrar sua paz. No Crato, em sua casa simples com o jardim de girassóis, ele abraçou essa escolha. Não era uma renúncia ao amor, mas uma afirmação de que ele poderia ser completo por si só. — Eu não preciso de alguém pra me salvar — murmurava para si mesmo, enquanto regava as plantas ao amanhecer. — Eu me basto.
    Essa decisão trouxe a Isaquias uma liberdade nova. Ele continuou a cuidar de sua casa, a ler, a manter contato com Ezequiel, Dona Sebastiana e seus amigos do Rio, mas sua vida tornou-se um exercício de introspecção e autossuficiência. Como Chris Dickerson, que enfrentou o mundo com a força de seu corpo e espírito, Isaquias encontrou na solidão uma forma de honrar suas cicatrizes e sua história. Ele não precisava mais provar nada a ninguém — nem no campo, nem na vida. O menino de ferro do Crato, enfim, estava em paz consigo mesmo, vivendo com a coragem de ser quem era, sem esperar que o mundo o completasse.

Inspirando outras gerações, Isaquias deixa legados.
 Após se estabelecer no Crato e encontrar sua paz, Isaquias sentiu o desejo de retribuir ao lugar que moldou seus primeiros passos no futebol e na vida. Ele decidiu investir no Ferroviário, o clube que o acolhera como menino e que sempre carregou um pedaço de seu coração. Com o dinheiro acumulado de sua carreira no Flamengo, Isaquias tornou-se um patrocinador das categorias de base do clube, focando em dar oportunidades a jovens de comunidades carentes, como ele próprio fora um dia. Mas seu gesto mais ousado veio com a criação e apoio às categorias femininas, algo ainda incipiente no Ferroviário e no futebol cearense. Ele se envolveu diretamente, não apenas com recursos, mas com presença. Ia aos treinos, conversava com os técnicos, sugeria melhorias na infraestrutura e, principalmente, falava com os jovens jogadores e jogadoras. Para Isaquias, ver meninos e meninas pobres, muitos vindos de favelas como a que ele crescera, chutando a bola com sonhos nos olhos, era como renascer.
   Ele via a si mesmo naquelas crianças — a fome de vencer, o medo de falhar, a esperança de que o futebol pudesse ser uma porta para uma vida melhor. Numa tarde ensolarada no campo do Ferroviário, Isaquias observava um treino das meninas sub-15. Ele notou uma garota, Ana, franzina, mas com uma habilidade impressionante nos dribles. Após o treino, ele a chamou. — Tu joga com raça, Ana. Me lembra eu quando comecei. Qual teu sonho? Ana, tímida, respondeu com os olhos brilhando: — Quero ser jogadora, seu Isaquias. E ajudar minha mãe, que nem tu fez com Dona Tiana. Isaquias sorriu, sentindo o peito aquecer. Ele prometeu a Ana e às outras meninas que o clube teria uniformes novos, chuteiras de qualidade e até uma nutricionista para apoiá-las. Para os meninos, ele trouxe ex-jogadores do Ferroviário para palestras, compartilhando histórias de superação que ecoavam a sua própria.Ajudar aquelas crianças reacendeu algo em Isaquias. Cada gol marcado nas peladas, cada sorriso de uma menina que recebia seu primeiro par de chuteiras, era como apagar um pouco mais as sombras do passado. Ele não falava sobre seus traumas, mas canalizava sua energia em criar um ambiente onde jovens pudessem sonhar sem medo.
    O gesto de investir no futebol feminino, especialmente, era sua forma de desafiar o machismo que ele conhecia tão bem, abrindo portas para que meninas pobres tivessem as chances que ele lutara tanto para conquistar. No Crato, à noite, enquanto regava seu jardim, Isaquias pensava em como a vida dera voltas. Ele, que quase sucumbira aos fantasmas, agora semeava esperança. Ajudar meninos e meninas do Ferroviário não era só sobre futebol — era sobre dar a eles a força para enfrentarem seus próprios desafios, como ele fizera. E, nesse processo, Isaquias, o menino de ferro, sentia-se, a cada dia, mais vivo. 
O fim de um pesadelo. A justiça divina, afinal.
   A notícia da morte de Reginaldo chegou como um trovão inesperado. Assassinado em frente à sede do Fortaleza, o zagueiro que outrora representara o maior pesadelo de Isaquias agora era apenas uma manchete trágica nos jornais locais. Os detalhes eram vagos — um acerto de contas, diziam, possivelmente ligado a dívidas ou rixas fora do futebol. Para Isaquias, no entanto, o motivo pouco importava. Quando soube, ele ficou em silêncio, o coração disparado, uma mistura de alívio e peso tomando conta de seu peito. Ele pegou o telefone e ligou para Ezequiel, a voz tremendo. — Quiel, preciso te ver. Agora!
     Ezequiel, sem perguntar muito, sentiu a urgência no tom do irmão e dirigiu do Crato até Fortaleza, onde Isaquias o esperava. Ele sugeriu a praia de Iracema, um lugar onde o mar e o vento pareciam capazes de lavar qualquer dor. Era fim de tarde, o sol tingindo o céu de laranja, e os dois irmãos caminharam pela orla, o barulho das ondas  abafando o burburinho dos quiosques. Isaquias, com as mãos nos bolsos, olhava o horizonte, o rosto carregado de emoções que ele mal conseguia nomear. — Ele tá morto, Quiel — disse, finalmente, a voz baixa, mas firme. — O Reginaldo... tá morto. Ezequiel parou, olhando o irmão de lado, tentando decifrar o que aquele momento significava. Ele sabia o que Reginaldo representava, o monstro que assombrara Isaquias por anos, a cicatriz que nunca fechava completamente. Mas não disse nada, apenas esperou. De repente, Isaquias parou de andar, olhou para o mar e soltou um palavrão, alto, cru, libertador, como se estivesse expulsando algo preso na alma. — Puta que pariu! EU TÔ LIVRE!!!
  O grito ecoou, misturando-se ao som das ondas. Ele caiu de joelhos na areia, o rosto molhado de lágrimas que não eram de tristeza, mas de uma catarse profunda. Era como se, com a morte de Reginaldo, o último elo com aquele sítio em Fortaleza tivesse se rompido. O monstro que o violentara, que o fizera duvidar de si mesmo, que quase o levara a tirar a própria vida, não existia mais. Ezequiel se abaixou ao lado do irmão, colocando a mão em seu ombro. Ele não julgava o alívio de Isaquias, nem a humanidade crua daquele momento. Ele entendia. Entendia que, para Isaquias, aquela morte não era apenas o fim de um homem, mas a queda de um símbolo do pior capítulo de sua vida. Ezequiel puxou o irmão para um abraço, deixando-o chorar, gritar, ou apenas ficar em silêncio, enquanto o mar testemunhava. — Tu venceu, mano — sussurrou Ezequiel, a voz firme. — Não do jeito que tu imaginava, mas venceu. Isaquias, ainda tremendo, olhou para o irmão e assentiu. Ele não celebrava a morte, mas sentia, pela primeira vez, que o peso que carregava havia diminuído. Na praia de Iracema, com Ezequiel ao seu lado, ele respirou fundo, deixando o vento levar embora um pouco mais de sua dor. O menino de ferro do Crato, enfim, sentia-se mais leve, pronto para continuar sua vida com a paz que tanto buscara.


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