A Tríade dos "Diabos do Olho Azul" - Cap 21 - O legado dos Odés e a influência presente no Rio atual. ( Capítulo Final )

 O Triunfo da Liberdade

Rio de Janeiro, Império do Brasil, 1888Em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea foi assinada pela Princesa Isabel, pondo fim à escravidão no Brasil. A notícia ecoou como um trovão pelas matas cariocas, alcançando os dois quilombos que resistiram ao jugo do Império: o da Serra do Mendanha, fundado por Baltazar, o primeiro “Diabo do Olho Azul”, e o da Serra Azul, erguido por Mauro, seu neto. Nos dois refúgios, a alegria explodiu em cânticos, tambores e danças, uma celebração que unia gerações de luta e esperança.Na Serra Azul, agora um vilarejo próspero com casas de adobe, roças fartas e uma comunidade unida, Jamil Neto, aos 19 anos, liderava as festividades. Com pele retinta como a de seu bisavô Baltazar e olhos castanhos profundos, herança de sua mãe Carolina, ele erguia uma fogueira no centro da praça, cercado por Séo Bastião, agora curvado pela idade, e Carolina, que aos 40 anos mantinha a força de uma rainha. Malvina, sua irmã, aos 22 anos, dançava ao som dos atabaques, sua pele retinta brilhando sob a luz do fogo, os olhos castanhos cheios de orgulho.— Oxóssi e Obaluaiê nos guiaram! — proclamou Jamil Neto, sua voz ecoando pelo vale. — Meu bisavô Baltazar, meu avô Jamil, meu pai Mauro... eles sonharam este dia! Somos livres!Séo Bastião, com os cabelos brancos reluzindo, ergueu um colar de contas verdes, os olhos marejados.— A Tríade dos Diabos do Olho Azul venceu — disse, a voz rouca. — O sangue de Odé nunca se curvou!Na Serra do Mendanha, o Quilombo da Liberdade do Rei, como era chamado em homenagem a Baltazar, também festejava. Os descendentes de seus fundadores, muitos ainda contando as histórias do mulato de olhos azuis que desafiara os senhores, acendiam velas para Oxóssi, agradecendo pela liberdade conquistada.Meses depois, em um gesto de reconhecimento, a Princesa Isabel decretou que os dois quilombos se tornassem bairros oficiais do Rio de Janeiro. A Serra Azul e a Liberdade do Rei, agora integrados à cidade, mantinham sua identidade, suas tradições e sua memória viva, um testemunho da resistência de Baltazar, Jamil e Mauro. As matas cariocas, que outrora os protegeram, pareciam sussurrar em aprovação, como se Oxóssi e Obaluaiê abençoassem seus filhos.
O Retorno de MalvinaA Fazenda Real de Santa Cruz, outrora um símbolo de crueldade sob o comando de Dom Belchior e Sinhá Inês, passara por transformações. Após a morte de Belchior em 1875 e de Inês em 1880, a fazenda foi herdada por Helena, que, aos 64 anos, vivia com a culpa de não ter protegido Mauro das garras de seus pais. Nhá Setembrina, agora uma anciã de 80 anos, permanecia ao seu lado, a única ponte entre o passado de opressão e o presente de redenção. Sua lealdade a Helena, forjada em décadas de confidências, era um mistério para muitos, mas um laço de humanidade para as duas.Em 1888, após a Lei Áurea, Malvina, filha de Mauro e neta de Helena, chegou à fazenda. Aos 22 anos, ela era uma mulher imponente, com a pele retinta de Baltazar, os olhos castanhos de Carolina e a determinação de Mauro. Helena, ao vê-la, caiu em lágrimas, reconhecendo nos traços da jovem o filho que perdera para a senzala.— Malvina... minha neta... — sussurrou Helena, abraçando-a, o corpo trêmulo. — Perdoa-me por não ter salvado teu pai.Malvina, com um sorriso gentil, segurou as mãos da avó.— Vovó, meu pai viveu livre na Serra Azul — disse, a voz firme. — Ele cumpriu seu destino. Agora, vim pra curar as feridas desta terra.Nhá Setembrina, apoiada em uma bengala, sorriu, os olhos brilhando.— A menina é de Odé, como o pai — murmurou. — A fazenda tá em boas mãos.Malvina assumiu a administração da Fazenda Real de Santa Cruz, transformando-a em um lugar de trabalho digno, onde os antigos escravizados, agora livres, eram tratados como parceiros. As dores de Jamil e Mauro, marcadas pelo chicote e pela senzala, encontravam compensação na liderança de Malvina, que honrava o legado de seus antepassados com justiça e compaixão.
A Derrubada do TroncoMalvina deu o sinal, e quatro homens fortes, antigos escravizados que agora trabalhavam como líderes na fazenda, avançaram com machados e cordas. Entre eles estava Zé Maria, um homem de meia-idade que outrora ajudara Mauro na fuga para a Serra Azul. Ele olhou para Malvina, assentindo com respeito.— Pelo filho de Jamil, esse tronco vai pro chão! — exclamou, erguendo o machado.O primeiro golpe ressoou como um trovão, a madeira rangendo sob a força do impacto. A multidão prendeu a respiração, enquanto os golpes continuavam, cada um um ato de libertação. As cordas foram amarradas ao tronco, e os homens puxaram, seus cânticos yorubás ganhando força, invocando Oxóssi e Iansã. Helena, com lágrimas escorrendo, segurava a mão de Malvina, enquanto Nhá Setembrina, apoiada em Zefa, a mucama que enganara Tião Galinha, chorava abertamente.— É Jamil! É Mauro! — exclamou Nhá Setembrina, a voz quebrada pela emoção. — Eles tão vendo esse totem da intolerância tombar!
Com um último puxão, o tronco cedeu, caindo com um estrondo que ecoou pelo pátio. A poeira subiu, e a multidão explodiu em vivas, batendo palmas e cantando. Alguns caíram de joelhos, outros dançavam, enquanto o vento, como uma carícia de Iansã, varria o pátio, levando embora os ecos do sofrimento.Malvina, com os olhos marejados, ergueu os braços, sua voz poderosa unindo a todos.— Este é o dia da cura! — proclamou. — O sangue dos nossos não será mais derramado aqui. Somos livres, e a Fazenda Real de Santa Cruz será agora um lugar de justiça, como meu pai sonhou!Helena, abraçando a neta, sentiu o peso de décadas de culpa aliviar-se. Ela olhou para o tronco caído, imaginando Mauro, com seus olhos azuis brilhando, sorrindo do reino de Oxóssi.— Meu filho... tu venceste — sussurrou, as lágrimas misturando-se a um sorriso.
Nhá Setembrina, enxugando o rosto com um pano, aproximou-se do tronco derrubado e tocou a madeira com reverência, como se cumprimentasse os espíritos de Baltazar, Jamil e Mauro.— Meus meninos... o ciclo tá fechado — disse, a voz suave, mas firme. — Oxóssi e Obaluaiê cuidaram de vocês, e agora vocês cuidam de nós.
A Nova EraA queda do tronco marcou um novo capítulo para a Fazenda Real de Santa Cruz. Malvina, como senhora da fazenda, transformou o lugar em um espaço de trabalho digno, onde os antigos escravizados eram respeitados e suas vozes ouvidas. A pedra fundamental da fazenda, antes marcada pela opressão, foi rededicada em homenagem a Mauro, com uma inscrição que dizia: “Pela liberdade de Jamil e Mauro, a terra se cura”.Na Serra Azul e na Liberdade do Rei, Jamil Neto liderava com a mesma bravura de seus antepassados, unindo os dois bairros em uma rede de memória e resistência. A comunidade celebrava a queda do tronco com festas que ecoavam pelas matas cariocas, onde os tambores yorubás louvavam Oxóssi, Iansã e Obaluaiê.A cena da derrubada do tronco tornou-se emblemática, um símbolo da vitória sobre a intolerância e da cura das feridas do passado. Malvina, Helena e Nhá Setembrina, três mulheres de gerações e histórias diferentes, uniram-se naquele momento, representando a força da família, da ancestralidade e da redenção. O brado de Oxóssi, que outrora ecoara nos lábios de Baltazar, Jamil e Mauro, agora ressoava nos cânticos da comunidade, um hino eterno à liberdade.
A União dos LegadosJamil Neto, orientado por Séo Bastião e Carolina, tornou-se o líder do bairro da Serra Azul, um jovem respeitado por sua sabedoria e coragem. Ele visitou o bairro da Liberdade do Rei, na Serra do Mendanha, onde foi recebido como um herdeiro da lenda de Baltazar. Lá, ele conheceu os descendentes do primeiro “Diabo do Olho Azul”, trocando histórias e fortalecendo os laços entre os dois bairros.— Somos uma só família — declarou Jamil Neto, em uma festa que uniu os dois comunidades. — Baltazar começou, Jamil continuou, Mauro completou. Agora, nós, filhos da Serra Azul e da Liberdade do Rei, carregamos o fogo de Oxóssi e Obaluaiê.Carolina, ao lado do filho, ergueu um copo de cachaça em brindis.— Pelos Odés que nos guiaram! — exclamou, a voz ecoando pela multidão.Séo Bastião, agora próximo do fim de sua jornada, olhou para Jamil Neto e Malvina, sentindo a presença de Mauro, Jamil e Baltazar nas matas ao redor.— A Tríade tá completa — murmurou, sorrindo. — Oxóssi tem seus reis, e Obaluaiê cuida da terra.
O Fim da SagaA saga da Tríade dos Diabos do Olho Azul — Baltazar, Jamil e Mauro — chegou ao seu fim com a liberdade conquistada e o legado perpetuado. Os bairros da Serra Azul e da Liberdade do Rei, nascidos do sangue e da luta dos três Odés, tornaram-se símbolos de resistência, preservados até os dias atuais como testemunhas da bravura de uma linhagem que desafiou a escravidão.Malvina, na Fazenda Real de Santa Cruz, curou as feridas do passado, enquanto Jamil Neto, unindo os dois bairros, assegurava que a memória de seus antepassados vivesse. As matas cariocas, com seus ventos suaves, continuavam a sussurrar os brados de Baltazar, Jamil e Mauro, agora encantados como Odés, sob a proteção de Oxóssi e Obaluaiê.A Tríade dos Diabos do Olho Azul, com seus olhos azuis e castanhos, sua pele jamba e retinta, sua coragem inquebrável, tornou-se uma lenda eterna, um hino à liberdade que ecoa nas montanhas do Rio de Janeiro, para sempre.

A Descoberta do LegadoFazenda Real de Santa Cruz, Rio de Janeiro, 2025A Fazenda Real de Santa Cruz, agora um marco histórico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), estava sendo restaurada para preservar sua memória e transformá-la em um centro cultural dedicado à história da resistência afro-brasileira. A casa-grande, com suas paredes de taipa e janelas de madeira, ainda guardava os ecos do passado, enquanto o pátio, onde outrora se erguia o tronco da opressão, agora abrigava um jardim com uma placa em homenagem a Baltazar, Jamil e Mauro: “Pela liberdade dos Odés, a terra se cura”.Isaura, uma historiadora de 35 anos, descendente direta de Séo Bastião, liderava a equipe do IPHAN responsável pela catalogação dos artefatos da fazenda. Com pele retinta, olhos castanhos profundos e cabelos trançados adornados com contas verdes, ela carregava o orgulho de sua ancestralidade. Seu tataravô, Séo Bastião, fora o sábio que guiara Mauro na fuga para a Serra Azul, e suas histórias, transmitidas oralmente por gerações, inspiraram Isaura a estudar a história dos quilombos cariocas.Numa tarde quente de 2025, enquanto a equipe examinava o sótão da casa-grande, Isaura encontrou um baú de madeira coberto de poeira, escondido sob uma pilha de telhas quebradas. O cadeado, enferrujado pelo tempo, parecia guardar segredos de séculos. Com o coração acelerado, ela pegou uma ferramenta e, com cuidado, quebrou o cadeado, o som do metal cedendo ecoando no sótão silencioso.— Tem algo especial aqui — murmurou Isaura, sentindo um arrepio, como se Oxóssi sussurrasse em seu ouvido.Ao abrir o baú, ela encontrou dois cadernos antigos, suas capas de couro gastas, mas intactas. As páginas, amareladas, estavam preenchidas com a caligrafia firme e cuidadosa de Nhá Setembrina, a preta velha que testemunhara a saga da Tríade dos Diabos do Olho Azul. Um caderno narrava os acontecimentos da Fazenda Real de Santa Cruz, desde os relatos das aventuras de Baltazar na Fazenda Real de Campo Grande  até a queda do tronco na Santa Cruz em 1888. O outro registrava as histórias de Séo Bastião, suas memórias da senzala, suas preces a Oxóssi e sua parceria com Mauro na fundação do Quilombo da Serra Azul.Isaura, com lágrimas nos olhos, folheou os cadernos, reconhecendo os nomes que povoavam as histórias de sua família. Ela leu em voz alta um trecho do diário de Nhá Setembrina, datado de 1888:
“Hoje, o tronco caiu. Vi Malvina, filha de Mauro, erguer a voz como Odé, e Helena, com o coração pesado, encontrar paz. Eu, Setembrina, que ouvi os relatos da fuga de Baltazar da Campo Grande, que vi Jamil bradar no tronco de morte e Mauro liderar a fuga desta Santa Cruz, sei que Oxóssi guardou seus meninos. A senzala chora de alegria, e a terra cura suas feridas. Que estas palavras sejam luz para os que virão.”
Os outros membros da equipe, reunidos ao redor, ouviram em silêncio, emocionados. Isaura segurou os cadernos contra o peito, sentindo o peso da responsabilidade de sua descoberta.— Isso é mais que um achado histórico — disse, a voz embargada. — É a voz dos meus ancestrais. Nhá Setembrina e Séo Bastião escreveram a verdade da Tríade dos Diabos do Olho Azul. Esta fazenda não é só um lugar de dor... é um altar de resistência.
A Revelação do LegadoIsaura levou os cadernos ao Instituto, onde foram cuidadosamente digitalizados e preservados. As narrativas de Nhá Setembrina tornaram-se a base para uma exposição no futuro centro cultural da fazenda, intitulada “A Saga dos Odés: Baltazar, Jamil e Mauro”. A mostra, inaugurada em 2026, contava a história da Tríade dos Diabos do Olho Azul, com trechos dos diários projetados em telas, ao lado de artefatos da senzala e reconstruções dos quilombos da Serra Azul e da Liberdade do Rei.Malvina, que administrara a fazenda após 1888, e Jamil Neto, que unira os bairros da Serra Azul e da Liberdade do Rei, foram celebrados como herdeiros de uma linhagem de coragem. Isaura, como descendente de Séo Bastião, tornou-se a guardiã dessa história, viajando pelo Brasil para compartilhar as narrativas de Nhá Setembrina e garantir que o legado dos Odés fosse conhecido.Numa noite de inauguração da exposição, Isaura, diante de uma multidão que incluía descendentes dos quilombos, autoridades e curiosos, ergueu uma réplica do colar de contas verdes de Nhá Setembrina.— Meus antepassados, Séo Bastião e Nhá Setembrina, sabiam que a luta não terminava com a Lei Áurea — disse, a voz ressoando com força. — Eles escreveram para que nunca esquecêssemos. Baltazar, Jamil e Mauro, os Diabos do Olho Azul, eram Odés de Oxóssi, guerreiros de Obaluaiê. Esta fazenda, onde o tronco caiu, é agora um lugar de memória e cura. Que Oxóssi nos guie e que a história deles viva para sempre!A multidão aplaudiu, e os tambores yorubás ecoaram, como se Baltazar, Jamil e Mauro, encantados nas matas cariocas, celebrassem com eles. O vento soprou suavemente, levando o brado “KIIIIIIUUUUU” para as estrelas, um sinal de que a saga da Tríade dos Diabos do Olho Azul nunca seria esquecida.

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