Isaquias, o craque - Cap (1)

  O sol castigava o Crato com um calor que parecia derreter até as esperanças. A terra rachada, como a pele calejada de Sebastiana, contava histórias de luta e escassez. Na pequena casa de taipa, onde o vento entrava pelas frestas e trazia mais poeira que alívio, Sebastiana, uma mulher de olhos fundos e mãos calejadas, juntava os cacos de uma vida partida ao meio. Severino, seu marido, havia virado as costas para a família, carregando consigo a culpa e a promessa de um recomeço em São Paulo. “Não quero mais cavar terra e fazer filho, Tiana. Não é justo pra nós dois”, dissera ele, com a voz embargada, antes de sumir na estrada poeirenta.
 Sebastiana, agora viúva de um marido vivo, segurava as rédeas de quatro filhos com a força de quem não tinha escolha. Isaquias, o filho do meio, de 14 anos, tinha os olhos castanhos cheios de sonhos e uma habilidade rara com a bola nos pés. Era magro, de pernas ligeiras, com um jeito de driblar que parecia dançar com o vento. Ezequiel, o primogênito, aos 16 anos já carregava o peso de homem da casa. Trocara os cadernos da escola pelos canteiros de obra, onde o suor escorria junto com o orgulho de sustentar a mãe e os irmãos. Mariana, a filha mais velha, com 15 anos, já era mulher feita, casada com Teobaldo, um pedreiro de mãos calejadas e coração simples. Ela segurava nos braços a pequena filha, fruto de um casamento apressado, enquanto tentava ajudar a mãe com faxinas nas casas dos ricos de Fortaleza. Elias, o caçulinha, com apenas 5 anos, corria pela casa com uma risada que era o único som capaz de aliviar o coração pesado de Sebastiana. A vida na favela onde se estabeleceram em Fortaleza era um misto de luta e pequenas alegrias. Quando Sebastiana conseguia trazer um pedaço de carne das faxinas, ou quando Ezequiel e Isaquias voltavam com uns trocados dos bicos na construção, a panela virava festa. O cheiro do refogado subia, e Elias batia palmas, correndo em círculos. “Mainha, hoje tem carne?” perguntava, os olhos brilhando. Sebastiana sorria, mas o cansaço em seu rosto não mentia. “Tem, meu filho. Hoje é dia de comer bem.”
  Isaquias, porém, carregava um brilho diferente. Nas peladas da favela, onde a bola era mais remendo que couro, ele encantava. Driblava os meninos mais velhos com uma facilidade que parecia mágica. “Esse moleque é endiabrado com a bola!” dizia um dos jogadores, enquanto Isaquias corria com um sorriso tímido. Foi numa dessas tardes, sob o sol escaldante, que um olheiro do Ferroviário, o menor dos três grandes clubes da capital, reparou no garoto. “Tu já pensou em jogar de verdade, menino?” perguntou o homem, com um boné surrado e um caderno na mão. Isaquias, suado e com a respiração ofegante, só conseguiu balançar a cabeça, sem acreditar. Dias depois, na peneira do Ferroviário, Isaquias mostrou o que sabia. Com a bola colada ao pé, parecia prever cada movimento dos adversários. O treinador, um homem de voz rouca e olhar atento, não hesitou: “Tu tá dentro, garoto. Sub-15. E tem alojamento no clube, se quiser.”
  A notícia foi como um raio de luz na casa de Sebastiana. Ezequiel deu um tapa nas costas do irmão, orgulhoso. “Tu vai longe, Zaquias!” disse, usando o apelido carinhoso. Sebastiana, com lágrimas nos olhos, abraçou o filho. “É o começo, meu menino. Deus tá olhando por nós.” Mas, por trás do sorriso de Isaquias, havia uma sombra. Ele guardava um segredo que pesava mais que qualquer bola de futebol. À noite, quando a favela silenciava e o ronco de Elias enchia o quarto, Isaquias se sentava na beira da cama, olhando para o nada. Sua cabeça era um turbilhão. Ele sentia algo que não conseguia nomear direito, um vazio que não explicava. Gostava de rapazes, não de moças, e isso o aterrorizava. Como contar isso à mãe, que sacrificava tudo por eles? Como dizer isso numa favela onde os olhares julgavam e as palavras cortavam? Numa noite abafada, enquanto Ezequiel descansava no canto do quarto, Isaquias não aguentou. “Quiel,” começou, a voz tremendo, “tenho um medo danado de machucar Mainha.” Ezequiel ergueu os olhos, cansado, mas atento. “Que que tá pegando, mano?” Isaquias hesitou, o coração na boca. “É que... eu acho que sou diferente. Não gosto de moça, Quiel. Gosto de... rapaz.” As palavras saíram como se arrancadas à força. Ele baixou a cabeça, esperando um grito, um tapa, qualquer coisa. Mas Ezequiel só ficou em silêncio por um momento, depois colocou a mão no ombro do irmão. “Tu é meu irmão, Zaquias. Não importa o que tu sente. Mas...” Ele suspirou, o peso da vida refletido no rosto jovem. “Mainha já sofreu muito. Tu sabe como ela é, com essa coisa de igreja, de Deus. Se tu contar, pode ser que ela não entenda de primeira. Mas ela te ama. Só... dá um tempo, tá? Pensa bem antes de falar.”
  Isaquias assentiu, o peito apertado. Ele queria ser o craque que todos viam, o menino que traria orgulho à família. Mas, dentro dele, o segredo crescia como uma ferida que não cicatrizava. No alojamento do Ferroviário, onde logo se mudaria, ele teria que enfrentar não só os treinos, mas também o medo de ser quem era. E, enquanto a bola rolava nos campos de terra, Isaquias corria com um peso que ninguém via, o peso de um craque triste, dividido entre o sonho e o segredo.
Fim do Capítulo 1

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