Isaquias, o craque - Cap (3) - Obs: TEXTO COM CENAS FORTES.

  No sub-20 do Fortaleza, um dos times mais competitivos do Brasil, Isaquias começou a sentir na pele a dureza de se firmar no futebol. No meio-campo, a concorrência era feroz, com outras promessas de craques disputando cada vaga. Muitas vezes, ele ficava no banco ou sequer era relacionado para os jogos. Mas, com a subida rápida de garotos que atingiam a idade limite, as chances começaram a aparecer. Ao assumir a titularidade no sub-20, Isaquias também passou a revezar com o time sub-23. No sub-23, ele se destacava como um camisa 10 promissor, brilhando em várias partidas e mostrando o talento que o levara até ali. Volta e meia, era o craque do jogo, comandando o meio-campo com inteligência e habilidade. Um momento inesquecível veio na semifinal do Brasileirão de Aspirantes, contra o Flamengo. Naquele dia, Isaquias enlouqueceu a defesa rubro-negra, driblando, criando jogadas e fazendo o Castelão explodir de emoção. O Fortaleza venceu por 2 a 0, com os gols nascendo de lances desenhados por ele. A torcida tricolor gritava seu nome em uníssono, e, por um instante, Isaquias sentiu o gosto de ser um herói. Mas a festa da vitória, que deveria ser um momento de celebração, se transformaria em uma das piores noites de sua vida.
   No churrasco que comemorava o triunfo, realizado num sítio afastado, Reginaldo, o zagueiro do time, não tirava os olhos de Isaquias. Negro retinto, musculoso, ele impunha medo e, ao mesmo tempo, um fascínio estranho. Em certo momento, Reginaldo chamou Isaquias para um quartinho reservado. O que parecia um convite casual logo virou um pesadelo. Ao trancar a porta por dentro, Reginaldo deixou Isaquias preso e em pânico. Com Ezequiel também presente no sítio, Isaquias temia o escândalo e aguardava, paralisado, o que estava por vir. Quando a porta se abriu, Reginaldo tapou sua boca e, acompanhado de Rodrigo, Hércules e Tadeu, sussurrou em seu ouvido: "Bichinha, eu sei do que tu gosta! Tá achando que a gente não sabia do teu passado no Ferrinho? Agora, você vai saber o que é o Ferrão!". O que aconteceu em seguida foi uma tragédia. Isaquias sofreu um estupro coletivo. A violência dos homens mais fortes, revezando-se sobre ele, rasgou seu corpo, sua alma e sua dignidade. A dor física se misturava ao tormento espiritual e à humilhação moral, deixando-o em pedaços. Quando finalmente o deixaram sair do quarto, Reginaldo, com frieza, disse: "Bichinha, engole este choro! Sai daqui e amanhã, nada aconteceu!". Isaquias, em lágrimas, cambaleou para fora, o corpo trêmulo e a mente em frangalhos. Sentado num canto, ele chorou copiosamente, tentando reunir forças para se recompor. Quando conseguiu, chamou Ezequiel: "Mano, vamos embora, quero sumir daqui!". Ezequiel, confuso, respondeu: "Zaquias, onde você estava? Eu fiquei deslocado aqui!". Seco e mergulhado em seu drama, Isaquias mentiu: "Eu estava pensando nos meus problemas!". Ele não podia contar a verdade — não ali, não naquele momento. O peso do que havia sofrido o engolia por dentro, enquanto ele seguia, mais uma vez, carregando o silêncio do craque triste. 
       Isaquias atravessou dias de puro sofrimento. Cada treino no Fortaleza era um tormento, uma lembrança viva do que havia passado no sítio. O campo, que antes era seu refúgio, agora o sufocava. Incapaz de suportar a ideia de jogar a final do Brasileirão de Aspirantes contra o arquirrival Ceará, ele pediu a Elias, o treinador do sub-23, para não entrar em campo. A resposta do técnico o pegou desprevenido: "Você já não iria jogar. O Flamengo se encantou por você e você vai daqui a dez dias para o Rio. Só falta assinar o contrato."
       A notícia fez o chão tremer sob os pés de Isaquias. Ainda processando o trauma do estupro coletivo, ele mal conseguia acreditar. O Rio de Janeiro, um sonho tão distante, agora estava ao seu alcance. Morar sozinho, longe de tudo e de todos, parecia a chance de encontrar um fiapo de paz, de silenciar os pensamentos suicidas que o perseguiam desde a adolescência e que, após a violência, haviam se tornado mais altos. Era uma fuga, uma tentativa de recomeço. Com o dinheiro das luvas pagas pelo Flamengo, Isaquias tomou uma decisão prática e carregada de amor: comprou uma casa digna para a mãe, Sebastiana, e para os irmãos Ezequiel e Elias, o caçula. A família, que tanto lutara na favela, agora tinha um teto seguro.
   Na festa de despedida, com todos reunidos — os parentes e os vizinhos da favela que vieram se despedir dos "prósperos" —, Isaquias chamou Ezequiel, seu confidente, para um canto. "Vou pro Rio hoje mesmo, o voo é à noite. Vem comigo até o aeroporto, por favor," pediu, a voz baixa, carregada de urgência. No aeroporto, longe dos olhos da família, Isaquias finalmente encontrou coragem para desabafar. "Quiel, eu tô partido ao meio! Preciso desabafar! Eu fui... fui... fui... CURRADO!!!" Ezequiel, atônito, respondeu: "Zaquias, meu irmão, o que cê tá falando?" As palavras saíram aos tropeços, entre lágrimas e vergonha: "Eu me deixei seduzir pelo Naldo e o miserável comandou UMA CURRA COLETIVA! Quatro covardes me penetraram e eu me sinto a maior vergonha! EU QUERO MORRER!" O desespero na voz de Isaquias cortou o ar como uma lâmina. "Morrer? Cara, tu vai pro Flamengo! Você não deveria ir sozinho! Não quer que eu fique contigo neste tempo?" ofereceu Ezequiel, o coração apertado. "Não dá! Eu precisava deixar Mainha bem! E eu não sei quanto tempo me resta..." retrucou Isaquias, os olhos perdidos num vazio que o irmão não conseguia alcançar. "Não fala isto, Zaquias!" implorou Ezequiel, tentando segurar a dor que transbordava entre eles. O som metálico do alto-falante anunciou a saída do voo. Isaquias abraçou Ezequiel com força, como se quisesse deixar ali um pedaço de si, e embarcou. Partia para o Rio carregando uma mistura de esperança frágil e um peso esmagador. Ezequiel ficou para trás, com a garganta fechada e o coração apertado, envolto em incerteza sobre o futuro do irmão. O craque triste seguia, mais uma vez, rumo ao desconhecido, tentando escapar de si mesmo.

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