A Tríade dos "Diabos do Olho Azul" - Cap 20 - A Chegada à Serra Azul, surge um novo quilombo. Mauro se encanta, o ciclo se fecha.

 O Quilombo da Serra Azul 

Serra Azul, Rio de Janeiro, 1864-1869As matas cariocas, densas e sussurrantes, abraçaram os cinquenta escravizados que fugiram da Fazenda Real de Santa Cruz em março de 1864, guiados por Mauro de Albuquerque e Séo Bastião. Como se Jamil, o “Diabo do Olho Azul”, os conduzisse com seu brado ancestral, eles encontraram um vale escondido, protegido por encostas íngremes e riachos cristalinos. Era um santuário, um lugar onde a liberdade podia florescer. Mauro, aos 20 anos, com sua pele moreno jambo, cabelos encaracolados e olhos azuis reluzentes, olhou para o vale e sentiu Oxóssi abençoá-lo e sentia como se Baltazar e Jamil, seus antecessores acenassem para ele, felizes com o sucesso da fuga para a liberdade.— Este será nosso lar — declarou, a voz firme, os olhos brilhando. — Vamos chamá-lo de Serra Azul, em homenagem a meu pai, Jamil, e ao meu avô, Baltazar, e a Oxóssi, nosso guia.Sob a liderança de Mauro e Séo Bastião, o grupo ergueu barracas de palha e madeira, que, com o tempo, tornaram-se casas sólidas, com telhados de sapé e quintais onde plantavam mandioca, milho e feijão. A comunidade crescia, unida pela esperança e pela memória da luta. Mauro, em um gesto de gratidão, batizou a pedra fundamental do quilombo com o nome de Murilo de Almeida e Albuquerque, o visconde que o criara como filho.— Sem o senhor, eu não estaria aqui — disse Mauro, tocando a pedra com reverência, as lágrimas brilhando nos olhos azuis. — Meus dois pais, o verdadeiro e o que me criou, são meu farol.Séo Bastião, ao lado, sorriu, os cabelos brancos refletindo o sol.— Tu honras os dois, Mauro. Jamil e Murilo vivem em ti — respondeu, a voz grave carregada de orgulho.
O Amor de CarolinaNa Serra Azul, Mauro conheceu Carolina, uma preta de beleza radiante, com pele retinta, olhos castanhos profundos e um sorriso que aquecia o coração. Ela era uma das fugitivas, forte e sábia, com mãos habilidosas que transformavam sementes em colheitas e histórias em lições. O amor entre eles floresceu rápido, como uma planta regada pelas chuvas de verão. Carolina, com sua ancestralidade yorubá, representava um retorno às raízes da linhagem de Oju Odebomani, o nome de Baltazar em terras brasileiras. Diferente de Jamil e Mauro, filhos de mulheres brancas, a união com Carolina significava que o ventre gerador da linhagem voltava a ser negro, um ciclo que se completava.Em 1866, Carolina deu à luz Malvina, uma menina de pele retinta como a do avô Baltazar, com olhos castanhos herdados da mãe. Mauro, ao segurar a filha, sentiu o peso de sua responsabilidade, mas também a alegria de ver sua linhagem crescer livre, longe das correntes. Malvina era a promessa de um futuro que Jamil sonhara, e Mauro a criava com histórias de Baltazar, Jamil e Oxóssi, sussurradas ao pé da fogueira.— Tu és filha da Serra Azul, Malvina — dizia Mauro, beijando sua testa. — E carrega o sangue de reis.Carolina, ao lado, sorria, mas seus olhos castanhos percebiam a sombra que pairava sobre Mauro. Ela sentia que ele, como seu pai, estava destinado a algo maior, um chamado que transcendia a vida terrena.
A Profecia de Séo BastiãoEm 1869, Carolina engravidou novamente, sua barriga arredondando com a promessa de um novo filho. Séo Bastião, agora com os cabelos quase todos brancos, observava a gestação com o olhar sábio de quem lia os sinais dos orixás. Uma noite, enquanto a comunidade se reunia para celebrar a colheita, ele chamou Mauro para um canto isolado, sob a luz da lua.— Mauro, escuta bem — disse Séo, a voz grave, carregada de autoridade. — O formato da barriga de Carolina é de gravidez de menino. Eu sei, pelo saber de Oxóssi e Obaluaiê, que teu ciclo se fechará, como o de teu pai e o de teu avô. Quando Carolina entrar em trabalho de parto, tu e eu iremos pra mata. Não questione! É a vontade de Oxóssi e de Obaluaiê.Mauro sentiu um arrepio percorrer sua espinha, os olhos azuis arregalados. Ele não entendia completamente, mas o peso das palavras de Séo Bastião era inegável. Ele olhou para a mata, onde tantas vezes sentira o chamado de Jamil e Baltazar, e assentiu, o coração apertado.— Eu confio em ti, Séo Bastião— murmurou, a voz embargada. — Que Oxóssi me guie. Meu avô não criou meu pai e meu verdadeiro pai não me criou, se há um ciclo a se fechar, que a vontade de Oxóssi seja feita.Séo colocou a mão no ombro de Mauro, os olhos brilhando com uma mistura de orgulho e tristeza.— Tu és um Odé, Mauro. Teu destino é maior que a terra.
A Partida de MauroO dia chegou em uma manhã de 1869, com o céu claro e o ar carregado de expectativa. Carolina, na casa principal do quilombo, começou a sentir as contrações, cercada por mulheres que a apoiavam com cânticos e preces. Mauro, ao lado da esposa, segurou sua mão, os olhos azuis marejados, sabendo que sua hora se aproximava.Séo Bastião, com um colar de contas verdes no pescoço, apareceu na porta.— Chegou a hora, Mauro — disse, a voz firme, estendendo a mão.Mauro olhou para Carolina, que, entre as dores do parto, assentiu, como se entendesse o chamado dos orixás. Ele beijou sua testa e a de Malvina, que brincava ao lado, e seguiu Séo para a entrada da mata. A comunidade, silenciosa, observava, sentindo o peso do momento.Na borda da floresta, dois vultos surgiram, imponentes e familiares. À medida que se aproximavam, Mauro reconheceu os traços idênticos aos seus: Jamil e Baltazar, com olhos azuis brilhando como faróis, suas formas etéreas pulsando com a energia de Oxóssi. Séo Bastião segurou as mãos de Mauro e as entregou aos vultos, sua voz ecoando com reverência.— Agora ele também é um Odé! — proclamou. — Tal qual o pai e o avô, o ciclo se fechou, e Obaluaiê retomará a abraçar os descendentes com a terra na hora final! Oxóssi tem o que lhe é de direito!Mauro sentiu uma luz envolver seu corpo, como se sua alma se elevasse. Seus olhos azuis brilharam uma última vez, e ele sorriu, olhando para Jamil e Baltazar. Como seu pai e avô, seu corpo não conheceria a terra como morada final. Ele foi envolto pela mata, desaparecendo em um clarão suave, encantado como um Odé, unido aos orixás. O ciclo dos "Diabos do Olho Azul" se fechava naquele momento. Uma trinca de homens se fundia com a mata.
O Nascimento de Jamil NetoNo exato momento em que Mauro sumia na mata, Carolina deu à luz um menino. Jamil Neto nasceu com a pele retinta, como a de Baltazar, e olhos castanhos, profundos como a terra viva. Seu choro forte ecoou pelo quilombo, anunciando a chegada de um novo herdeiro. As mulheres que assistiam ao parto ergueram cânticos a Obaluaiê, que assumia o trono da linhagem, e a Oxóssi, seu patrono espiritual.Carolina, exausta, segurou o filho, sentindo a presença de Mauro em seu coração. Ela olhou para Malvina, que tocava o rosto do irmão, e sorriu, sabendo que a luta de Mauro continuaria nos filhos.— Jamil Neto, tu és da Serra Azul — sussurrou. — Teu pai, teu avô, teu bisavô... eles são teus guias.Séo Bastião, retornando da mata, juntou-se à comunidade, os olhos marejados, mas o rosto sereno.— Mauro se foi, mas vive em Oxóssi — anunciou. — Jamil Neto é nosso futuro. A linhagem dos Odés não morre.
O Legado da Serra AzulO Quilombo da Serra Azul cresceu, um bastião de liberdade nas matas cariocas. Malvina e Jamil Neto, criados por Carolina e pela comunidade, carregavam o sangue de Baltazar, Jamil e Mauro, homens bravos que desafiaram a escravidão. Obaluaiê, com sua força de cura e transformação, e Oxóssi, o caçador da liberdade, protegiam a linhagem, agora enraizada na terra livre.Na Fazenda Real de Santa Cruz, Sinhá Inês e Dom Belchior, furiosos com a fuga, nunca encontraram o quilombo, como se Oxóssi tivesse escondido a Serra Azul com sua flecha. Tião Galinha, derrotado mais uma vez, reconhecia a superioridade de Oxóssi e partia para a corte, aplicando seus golpes e protegido por Exu. A sua obsessão pelo “Diabo do Olho Azul” jamais foi esquecida, mas ele sabia que não podia superar o Rei das Matas.As matas cariocas continuavam a sussurrar, ecoando os brados de Baltazar, Jamil e Mauro, agora encantados como Odés. A saga do “Diabo do Olho Azul” vivia em Jamil Neto, um novo herdeiro destinado a honrar a luta de seus antepassados, sob o olhar vigilante de Oxóssi e Obaluaiê.

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