Isaquias, o craque - Cap (4)

   Isaquias chegou ao Rio em 2026 com o peso do mundo nos ombros, mas também com uma determinação silenciosa. O Flamengo o recebeu como uma joia bruta, e ele se jogou nos treinos como se cada chute, cada  corrida, pudesse apagar as cicatrizes que carregava. No Ninho do Urubu, o CT do clube, ele suava até cair, driblava cones como se fossem fantasmas do passado, e marcava gols que faziam os técnicos sussurrarem: "Esse menino é especial." Aos 19 anos, ele subiu rápido do sub-23 para o elenco principal, e a torcida rubro-negra, sempre faminta por ídolos, logo o adotou. "Zaquias, o matador!" gritavam nas arquibancadas, e ele retribuía com raça e talento, mesmo que, por dentro, ainda lutasse contra o silêncio que o trauma impusera.
     O grande teste veio num Fla-Flu no Maracanã, o clássico que para o Rio de Janeiro. Era uma noite quente de 2027, o estádio pulsando com mais de 60 mil vozes, as bandeiras tremulando como um mar vermelho e preto de um lado, tricolor do outro. Isaquias, agora titular, entrou em campo com o coração na garganta, mas os pés firmes. Ele corria como um raio, desmontando a defesa do Fluminense com dribles precisos. Aos 35 do primeiro tempo, recebeu um passe na entrada da área, girou sobre o marcador e chutou forte — a bola explodiu no canto, fora do alcance do goleiro Fernando. O Maracanã veio abaixo, e Isaquias correu para a torcida, os braços abertos, sentindo o rugido da Nação como um bálsamo. Mas o jogo mudou de tom no segundo tempo.
   Fernando, o goleiro do Flu, alto e de presença imponente, começou a ser alvo da torcida do Flamengo. Ele era abertamente gay, algo raro no futebol brasileiro, e os xingamentos homofóbicos ecoavam das arquibancadas: "Bicha! Viado!" A cada defesa, a provocação aumentava, e Isaquias, do outro lado do campo, sentiu o estômago revirar. Aquelas palavras eram facas que ele conhecia bem — as mesmas que temia ouvir contra si mesmo, as mesmas que o faziam se calar desde a noite no CT do Fortaleza. Então, algo inesperado aconteceu. Após uma defesa espetacular, Fernando se levantou, olhou para a torcida rubro negra e, com um sorriso desafiador, colocou as mãos nas orelhas, pedindo mais. "Vai, grita mais! Não me derruba!" parecia dizer. A torcida intensificou os insultos, mas ele apenas riu, batendo no peito e voltando para o gol com uma confiança que desarmava o ódio. Isaquias parou no meio do campo, a bola rolando ao longe, os olhos fixos em Fernando. Ele viu ali um homem que enfrentava o mesmo fantasma que o assombrava — a homofobia, o julgamento, o medo — e, em vez de se esconder, transformava o veneno em força. O jogo terminou com vitória do Flamengo por 2 a 1, o segundo gol vindo de uma assistência de Isaquias, mas o placar era o de menos para ele. Após o apito final, enquanto a torcida comemorava, ele caminhou até Fernando no centro do gramado. O goleiro, suado e com o uniforme sujo de grama, o cumprimentou com um aceno. — Boa, Zaquias. Cê é um monstro com a bola — disse Fernando, a voz calma, mas firme.  Isaquias hesitou, o coração disparado, mas as palavras saíram quase sem querer: — Como cê faz? Como cê aguenta… isso tudo? — Ele apontou vagamente para as arquibancadas, o peso da pergunta claro nos olhos. Fernando sorriu, um sorriso cansado, mas genuíno. — Não aguento, cara. Eu enfrento. Se eu me esconder, eles vencem. Mas se eu mostro que não me abala, quem perde são eles. Cê já pensou nisso? Isaquias engoliu em seco, o eco das palavras de Fernando batendo fundo. Ele assentiu, murmurando um "valeu" antes de voltar para o vestiário.      Naquela noite, enquanto o Rio festejava a vitória, Isaquias ficou em silêncio no banco do Maracanã, olhando o gramado vazio. Pela primeira vez, viu que a homofobia, seu maior fantasma, não era invencível. Fernando era a prova viva disso — e, talvez, ele também pudesse ser. 
   O apito final do Fla-Flu ainda ecoava no Maracanã, o placar de 2 a 1 selando a vitória do Flamengo. A torcida rubro negra explodia em cânticos, as bandeiras tremulando como um mar de fogo, enquanto os jogadores do Fluminense deixavam o gramado cabisbaixos. Isaquias, suado e com a adrenalina pulsando, estava no centro do campo, o coração acelerado não só pelo jogo, mas pelo que acabara de testemunhar. Fernando, o goleiro do Flu, erguera-se como um titã diante dos xingamentos homofóbicos, transformando o ódio da arquibancada em combustível com um gesto simples: mãos nas orelhas, um sorriso desafiador, uma força que Isaquias nunca imaginara possível. Sem pensar, ele correu. Os companheiros do Flamengo já se abraçavam, mas Isaquias atravessou o gramado em disparada, os olhos fixos em Fernando, que caminhava lentamente em direção ao túnel. O goleiro virou-se, surpreso, ao ouvir os passos rápidos atrás de si. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Isaquias o envolveu num abraço forte, quase desesperado, os braços tremendo enquanto segurava o rival como se ele fosse uma bóia em alto-mar. A torcida, que ainda gritava nas arquibancadas, fez um silêncio momentâneo, confusa com a cena. Fernando, sem entender o que estava acontecendo, ficou rígido por um segundo, mas logo retribuiu o abraço, dando um tapa amistoso nas costas de Isaquias. "Tá tudo bem, matador?" perguntou, a voz grave carregada de curiosidade. Isaquias se afastou um pouco, os olhos marejados, o rosto iluminado por uma mistura de alívio e epifania. Ele segurou os ombros de Fernando, encarando-o como se visse um espelho da própria alma. — É possível ser feliz! É possível ser feliz! — exclamou Isaquias, a voz rouca, quase um grito, as palavras saindo como uma confissão que ele guardara por anos. Era mais do que um agradecimento; era uma revelação, um peso caindo dos ombros, uma chama acendendo no peito. Fernando franziu a testa, ainda sem compreender totalmente, mas o brilho nos olhos de Isaquias dizia o suficiente. Ele sorriu, um sorriso largo e genuíno, e puxou a camisa do Fluminense pela cabeça, oferecendo-a ao craque do Flamengo. — Troca comigo, então. Se é pra ser feliz, que seja com estilo — disse, rindo.
      Isaquias pegou a camisa tricolor com mãos trêmulas, entregando a sua rubro-negra em troca. Ele segurou o uniforme de Fernando contra o peito, como se fosse um talismã, enquanto o goleiro vestia a camisa do Flamengo, dando um passo para trás e batendo no escudo com orgulho brincalhão. "Boa sorte, Zaquias. Cê é foda," disse Fernando, antes de seguir para o vestiário, deixando Isaquias ali, parado no gramado.   A torcida, que voltara a cantar, entendeu o gesto e aplaudiu. Mas para Isaquias era muito mais. Ele caiu de joelhos, a camisa do Flu ainda nas mãos, o rosto virado para o céu enquanto lágrimas escorriam livres. Pela primeira vez desde a noite no CT do Fortaleza, desde a partida de Henrique, desde as noites de culpa e silêncio, ele sentiu que podia respirar. Fernando, com sua coragem desarmada, mostrara que a homofobia não precisava ser uma sentença — e que a felicidade, mesmo em pedaços, era possível. Quando se levantou, Isaquias ergueu a camisa tricolor para a torcida, um gesto que ninguém entendeu, mas que para ele era uma promessa. Ele caminhou para o vestiário com passos firmes, o coração leve, sabendo que o caminho ainda seria longo, mas que, pela primeira vez, ele não estava mais correndo sozinho. 

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