Isaquias, o craque - Cap (6)

    Os dias de leveza no Rio, onde Isaquias começava a se reconciliar consigo mesmo, desmoronaram como um castelo de areia diante de uma onda. A chegada de Reginaldo ao Flamengo, anunciado como reforço para a zaga, trouxe de volta o pesadelo que ele tentava enterrar. O zagueiro, com seu sorriso cínico e postura arrogante, parecia uma maldição reencarnada. No primeiro treino, Reginaldo cruzou o campo e, ao passar por Isaquias, sussurrou com veneno:
 — Oi, bichinha do Ferrinho!
   As palavras acertaram Isaquias como um soco. A cena do sítio em Fortaleza — a violência, a humilhação, o desespero — voltou à sua mente com uma clareza cruel. Ele sentiu o corpo tremer, o ar faltar, enquanto Reginaldo se afastava, rindo como se nada tivesse acontecido. “Justo agora? Desgraçado, desta vez eu te mato!”, pensou Isaquias, a raiva queimando em seu peito. O desejo de vingança se tornou uma obsessão. Ele não conseguia treinar, dormir ou pensar em outra coisa. Matar Reginaldo, apagar aquela sombra, parecia a única forma de recuperar a paz.
     Isaquias começou a planejar. Ele fingia normalidade, engolindo o nojo para se aproximar do zagueiro. Num dia, com a voz controlada, convidou Reginaldo para um “encontro” no quarto do alojamento, longe dos olhares do CT. Reginaldo, cheio de si, aceitou, achando que poderia repetir o passado.
   — Beleza, bichinha. Vou lá — disse, com um sorriso que fez Isaquias cerrar os punhos.
  No quarto, Isaquias serviu um copo de refrigerante, sua mão tremendo enquanto disfarçava a fúria. Ele ergueu seu copo, forçando um sorriso:
.— Sem traumas do passado, né?
    Reginaldo riu, arrogante.
 — Isso, bichinha! De repente vai ter festinha no Mengão, também!
 A frase caiu como uma lança no coração de Isaquias. Ele observou, em silêncio, enquanto Reginaldo bebia o refrigerante, sem saber dos tranquilizantes que Isaquias misturara. Em minutos, o zagueiro desabou, inconsciente, no chão. Isaquias pegou a arma que conseguira em segredo, apontou para a cabeça de Reginaldo, o dedo tremendo no gatilho. Sua respiração era pesada. Ele pensava: "Agora, o mundo se livra de um LIXO!", o ódio e a dor gritando dentro dele. Mas então, uma voz interior, seus valores familiares gritavam, pensar na dor de sua mãe em vê-lo na cadeia, tudo isto o deteve. “Não posso!”, gritou ele, jogando a arma no canto do quarto.
   Isaquias, fragilizado emocionalmente, caiu de joelhos, chorando, o peso do que quase fez o sufocando. Desesperado, Isaquias pegou as chaves do carro, sem saber para onde iria, apenas querendo fugir. Foi quando Robertinho, que estava no alojamento encerrando seu contrato com o Flamengo, o viu. Ele notara o desconforto de Isaquias nos treinos, a forma como ele ficava tenso perto de Reginaldo e, naquele momento, reconheceu o desespero nos olhos do garoto. Sem hesitar, Robertinho segurou a mão de Isaquias, firme:
— Isaquias! Me dá essa chave! Agora!
   Isaquias, com lágrimas escorrendo pelo rosto, entregou as chaves, o corpo tremendo. Robertinho, com a calma de quem já enfrentara seus próprios demônios, olhou nos olhos dele. — Tu não tá sozinho, moleque. Vem comigo. Robertinho dava um abraço apertado em Isaquias, que desabava no ombro do amigo. Ele levou Isaquias para fora, longe do quarto, e foi direto falar com Abranches, o técnico. Robertinho sabia que o jogo do dia seguinte seria seu último com a camisa do Flamengo, mas naquele momento, salvar Isaquias era mais importante
— Abranches, a gente não vai poder jogar amanhã. Esse aqui tá com uma dor aqui — disse, apontando para o coração de Isaquias.
   Abranches olhou para Isaquias, o rosto do garoto molhado de lágrimas, e entendeu a gravidade sem precisar de explicações. — Beto, seria teu último jogo com a camisa do Flamengo — disse o técnico, com pesar. — Mas vou alegar contusão pra ti, e pro paraibinha do povo, digo que passou mal às vésperas da concentração. Cuida dele, que eu seguro as pontas por aqui.
    Robertinho assentiu, levando Isaquias para seu carro. Enquanto dirigiam para Ipanema, Isaquias, ainda em choque, começou a falar, a voz entrecortada. — Beto, ele... ele tava lá, no Fortaleza. Ele... me destruiu. Eu quase matei ele hoje. Eu não aguento mais... Robertinho, com os olhos fixos na estrada, segurou a mão de Isaquias. — Tu é mais forte que isso, Zaquias. Ele não vai te definir. Tu já venceu o Crato, a favela, o Castelão. Vai vencer isso também. Mas não vai ser sozinho. Eu e o Fernando, a gente tá contigo.
     Naquela noite, na casa de Robertinho e Fernando em Ipanema, Isaquias desabou. Ele contou tudo — o estupro, a vergonha, o plano de vingança. Fernando, com lágrimas nos olhos, o abraçou, enquanto Robertinho prometia que o ajudariam a buscar justiça, mas não com violência. Pela primeira vez, Isaquias sentiu que não precisava carregar o peso sozinho. O Menino de Ferro do Crato, embora ferido, ainda tinha forças para lutar — não com uma arma, mas com a coragem de enfrentar seu passado e construir um futuro onde pudesse, finalmente, ser livre.
     Robertinho, Fernando e Isaquias voltaram ao Flamengo com um propósito claro: exigir a saída de Reginaldo do clube. A decisão não foi fácil, mas Isaquias, fortalecido pelo apoio do casal, sabia que o silêncio só perpetuaria sua dor. No caminho para o CT, ele tremia, mas Robertinho, ao volante, mantinha a calma de um veterano. — Zaquias, tu tá fazendo o certo. Ele não pode ficar aqui como se nada tivesse acontecido — disse, com firmeza. Fernando, no banco de trás, completou, segurando o ombro de Isaquias. — A gente tá contigo, moleque. Não é só por ti, é por qualquer outro que ele possa machucar.
       No Flamengo, a reunião com a diretoria foi tensa. Robertinho, com sua autoridade de ídolo, e Fernando, com a presença imponente de um campeão, respaldavam Isaquias enquanto ele, com a voz embargada, contava o que sofrera em Fortaleza. Ele não mencionou os outros jogadores envolvidos, mas o nome de Reginaldo ecoou como um trovão.
— O Reginaldo destruiu a minha vida! Eu nunca mais quis contato com ninguém desde aquilo...aquilo...aquilo...NÃÃÃÃÃOOO! Eu não posso ver este DESGRAÇADO!
      O presidente do clube, visivelmente abalado, prometeu investigar, mas pediu discrição para evitar um escândalo. Reginaldo foi afastado imediatamente, sob a alegação de “motivos disciplinares”, enquanto o clube iniciava uma apuração interna. Isaquias, embora aliviado, sabia que o processo seria longo e doloroso, mas pela primeira vez sentiu que estava enfrentando seu trauma.
     Enquanto isso, a imprensa, alheia à gravidade da situação, começou a especular sobre a presença de Fernando no CT do Flamengo. Rumores de que o goleiro tricolor seria contratado pelo rival correram soltos, alimentados por fotos dos três juntos. As redes sociais explodiram, e manchetes sensacionalistas pipocaram: “Fernando no Flamengo? O que está acontecendo?” Irritado com a boataria, Fernando correu para seus perfis nas redes sociais  e postou, com seu humor característico
— Ter amigos no rival virou crime agora? Fui apoiar um irmão, não assinar contrato. Respeitem a história, galera!
       A postagem viralizou, com torcedores do Fluminense aliviados e muitos do Flamengo brincando: “Fernandão, vem pro Mengão!” Apesar do tom leve, Fernando sabia da seriedade do momento e conversou com Robertinho e Isaquias para manterem a discrição até que o caso de Reginaldo fosse resolvido. Nos dias seguintes, Isaquias voltou aos treinos, ainda carregando o peso emocional, mas com uma nova determinação. O apoio de Robertinho e Fernando, agora seus mentores e amigos, o ajudava a reconstruir sua confiança. Ele sabia que a justiça poderia demorar, mas a decisão de enfrentar Reginaldo era um passo para recuperar sua própria história. No campo, ele continuava a brilhar, e a torcida, sem saber de seus dramas, seguia cantando: “O Menino de Ferro do Crato!” Enquanto isso, Robertinho, já no Fluminense, e Fernando, ainda ídolo tricolor, mantinham Isaquias por perto, garantindo que ele tivesse um porto seguro. Em Ipanema, os três se reuniam para conversar, rir e planejar os próximos passos, com Isaquias começando a acreditar que, apesar das cicatrizes, ele poderia, sim, ser livre para ser quem era.

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