Sambas da Vida! As histórias do Morro da Conceição e de sua gente! 6º ato - Orgulho e Despedida de José Pinheiro. Um homem, um exemplo.
"Sorria mais criança, pra não sofrer
Eu vi você criança, no alvorecer
O sol se abrindo aos encantos de uma flor
Realizado é o sonho de um grande amor
Eu embalei, eu embalei
Nos braços meus criança, eu embalei
Eu embalei, eu embalei
Nos braços meus criança, eu embalei
E aprenda as lutas pela vida pra se prevenir
Conheça todas as maldades pra não se iludir
Espalhe amor por onde for
Quem sabe amor destrói a dor
Que seja todo seu viver um mundo cheio de prazer
Espalhe amor por onde for,
Quem sabe amar destrói a dor
Que seja toso seu viver um mundo cheio de prazer
Eu embalei, eu embalei
Nos braços meus, crianças, eu embalei
Eu embalei, eu embalei
Nos braços meus criança, eu embalei"
( Sorriso de Criança - Dona Ivone Lara/ Délcio Carvalho - 1979 )
O ano de 2022 trouxe ao Morro da Conceição um ar de renovação, mesmo que as ladeiras continuassem a carregar
as marcas do tempo. No Bar do Helênico Português, a jukebox digitalizada, agora uma relíquia moderna entre as
paredes gastas, tocava “Sorriso de Criança”, de Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho, na voz inconfundível da Dama da
Serrinha. “Espalhe amor por onde for, quem sabe amor destrói a dor”, cantava Ivone, e os versos pareciam embalar a
história de José Pinheiro, agora com 72 anos, que erguia um copo de Brahma gelada, brindando com seus três
netos – Renato, Cassiano e Rodrigo – todos homens de bem, encaminhados na vida, cada um com seu caminho
traçado.
José, com o cabelo branco e o rosto sulcado por rugas que contavam décadas de luta, olhava para os netos com
um orgulho que aquecia o peito. Ele os criara como filhos, enchendo de amor e conselhos o vazio deixado por
Teobaldo, o pai ausente que nunca se redimiu. “Eu embalei, eu embalei / Nos braços meus, crianças, eu embalei”,
dizia a canção, e José sentia que essas palavras eram suas. Desde pequenos, Renato, Cassiano e Rodrigo cresceram
sob seus cuidados, ouvindo histórias do morro, aprendendo a driblar as maldades da vida e a espalhar amor, como
Ivone Lara pedia.
Renato, agora com 20 anos, foi o primeiro a encher o avô de orgulho. Ele concluíra o curso técnico de eletricista e já
era chamado por todos no morro para consertos e instalações. “Seu José, teu neto é danado! Arrumou minha fiação
em dois tempos!”, dizia um vizinho, e José apenas sorria, o coração inchado. Cassiano, aos 18, encontrou seu lugar
nos palcos, trabalhando como cenógrafo em pequenos teatros do Rio. Ele tinha o dom de transformar ideias em
cenários, e José, que nunca entendera muito de arte, ia a cada estreia, sentando na plateia com lágrimas discretas.
Rodrigo, o caçula, com 16 anos, já mostrava o caminho que seguiria: apaixonado por livros, como a mãe, ele
sonhava em ser professor de Português, e Rosário, aos 44 anos, via no filho mais novo um reflexo de si mesma.
Rosário, sentada à mesa do bar ao lado de José e dos filhos, também brindava, mas com um olhar que misturava
alegria e melancolia. Os anos haviam cobrado seu preço. A paixão cega por Teobaldo, que ela um dia acreditara que
mudaria, a deixou com cicatrizes profundas. Ele continuava o mesmo, aparecendo e sumindo, deixando para
Rosário a tarefa de criar os três filhos sozinha, com José como alicerce. “Mãe, olha a gente aqui,” disse Renato,
erguendo o copo, tentando arrancar um sorriso dela. “Tu e o vovô nos fizeram homens de bem.” Rosário sorriu, mas
seus olhos marejaram. “Vocês são minha vida,” respondeu ela, a voz embargada. “Mas eu queria ter feito diferente
por vocês.”
José, ouvindo a filha, pôs a mão no ombro dela. “Rosário, o que passou, passou. Olha teus meninos. Eles são teu
orgulho, são minha alegria. A vida não foi fácil, mas tu deu a eles o que eu e tua mãe te demos: amor. Isso é o que
fica.” Ele olhou para os netos, que riam e brincavam entre si, e completou: “Eles tão espalhando amor por onde vão,
como diz a música.
No canto do bar, Mariana, agora com 56 anos, apareceu com Reginaldo, Aninha e Teodoro, que aos 20 anos já era
um reflexo do pai, batucando na mesa e sorrindo para as moças. Reginaldo, aos 43, era um mestre de obras respeitado, com uma vida
sólida em Niterói, mas nunca deixava de visitar o morro. Ele cumprimentou José e os netos com abraços calorosos,
e Mariana, radiante, puxou Rosário para um abraço. “Olha teus meninos, Rosário! São lindos, são fortes. Tu fez
direitinho, mesmo com tudo,” disse ela, com a sabedoria de quem também enfrentara suas batalhas.
A jukebox seguia tocando, e “Sorriso de Criança” parecia um hino para aquela noite. José, olhando para Renato,
Cassiano e Rodrigo, sentia que, apesar das dores do passado, o morro lhe dera algo maior: a chance de ver seus
netos florescerem. Rosário, ainda carregando o peso de suas escolhas, encontrava consolo nos filhos e no pai, que
nunca a abandonara. E o Morro da Conceição, com suas ladeiras tortuosas e sua música eterna, celebrava, entre
cervejas e sambas, a vitória do amor sobre a dor, como Dona Ivone Lara sempre soube cantar.
A despedida de um grande homem.
"Por Deus, não posso entender
Porque vamos chorando
Se os nossos cicerones
São aves cantando
Lateralmente as flores
Deitam aroma sorrindo
E ouço da natureza
Que sejam bem-vindos
O vento de quando em quando
Num sussurro sereno
Obriga toda a floresta
A nos fazer aceno
E um festival de alegria
Que me põe a imaginar
Não sei se devemos rir
Ou chorar"
( Que sejam bem-vindos - Cartola - 1978)
Em 2026, o Morro da Conceição parecia suspenso entre a saudade e a reverência. O Bar do Helênico, agora sob o
comando de Heleninho, o filho do velho português que já se tornara memória, mantinha sua alma intacta, mesmo
com a modernidade da jukebox digitalizada. A voz de Beth Carvalho, a eterna porta-voz de Cartola, ecoava com
“Que Sejam Bem-Vindos”, enchendo o ar com uma mistura de alegria e melancolia: “Por Deus, não posso entender /
Porque vamos chorando / Se os nossos cicerones / São aves cantando”. Os versos, tão vivos, pareciam escritos para
aquele momento, em que o morro se despedia de José Pinheiro, aos 76 anos, um homem que fora mais que um
sambista – um pilar, um exemplo, um avô que criara homens de bem.
O velório de José, na pequena igreja do morro, reunia rostos conhecidos, todos marcados pela perda. O surdo do
bloco, nas mãos de Teodoro, agora com 24 anos, tocava um lamento solitário, um som grave que parecia carregar o
peso da ausência. Teodoro, filho de Reginaldo e Aninha, tocava com respeito, os olhos marejados, mas firmes, como
quem sabia que aquele ritmo era a última homenagem ao grande sambista que o acolhera como neto postiço.
Antenor Risadinha, mais grisalho, com a voz rouca de emoção, tentava aliviar a dor com sua filosofia de botequim:
“Meu parceiro de sambas, o Zé foi cantar com Clara, Beth, Cartola, Dona Ivone e tantos outros sambistas que devem tá fazendo uma festa danada pra receber ele. Aposto que São Pedro tá até tocando cavaquinho celestial!” Ele
enxugou uma lágrima teimosa, rindo para disfarçar o vazio.
Rosário, aos 46 anos, estava ao lado do caixão, os olhos inchados de tanto chorar. Seus três filhos – Renato, 24 anos,
eletricista disputado no morro; Cassiano, 22, cenógrafo que agora trabalhava em grandes produções no Rio; e
Rodrigo, 18, já estagiando como professor de Português – carregavam o caixão do avô com Reginaldo, que, aos 45 anos, se juntara à homenagem. Ver os quatro homens, cada um com sua história, carregando o corpo de José
Pinheiro era uma imagem que partia o coração de Rosário. Ela sentia orgulho dos filhos, homens de bem, moldados
pelo amor e pela firmeza do avô, mas a dor do que poderia ter sido a consumia. Reginaldo, com sua família sólida,
sua vida construída em Niterói, era o espelho de um caminho que ela rejeitara por causa de Teobaldo, o cafajeste
que, mesmo após tantos anos, continuava ausente, deixando-a com três filhos e um vazio que não explicava.
Rosário segurava a mão de Rosinha, sua amiga de sempre, que sussurrou: “Teus meninos são tua vitória, Rosário. O
Zé tá orgulhoso, onde quer que esteja.” Mas Rosário, afogada no luto, não conseguia responder. Olhava para
Reginaldo, que carregava o caixão com uma serenidade que doía, e pensava nos versos de Cartola: “E um festival de
alegria / Que me põe a imaginar / Não sei se devemos rir / Ou chorar”. Ela chorava, não só por José, mas por si
mesma, pelas escolhas que a prenderam a um amor que nunca valeu a pena.
Dona Mariana, aos 62 anos, caminhava ao lado de Aninha, segurando uma rosa branca em homenagem ao
compadre. Ela olhou para Teodoro, tocando o surdo com tanta alma, e depois para Reginaldo, que, mesmo com
lágrimas nos olhos, mantinha a força de quem superara as dores do passado. “O Zé foi um pai pra todo mundo,
Aninha,” disse Mariana, a voz embargada. “Ele cuidou da Rosário, dos meninos dela, e até do meu Reginaldo,
quando ele mais precisou. Agora ele tá com os sambistas lá em cima, fazendo roda.”
A procissão seguia pelas ladeiras do morro, com o surdo de Teodoro marcando o ritmo e a voz de Beth Carvalho
ecoando ao fundo, como se o próprio morro cantasse para José. Os netos, Renato, Cassiano e Rodrigo, caminhavam
com o peito erguido, sabendo que carregavam não só o caixão, mas o legado de um homem que os ensinou a
espalhar amor, como dizia Dona Ivone Lara. Rosário, atrás deles, sentia o peso da perda, mas também uma centelha
de esperança. Seus filhos eram a prova de que, apesar de tudo, ela e José haviam feito algo certo. E, enquanto o
Morro da Conceição se despedia de seu grande sambista, a jukebox seguia tocando, como se dissesse que, entre o
rir e o chorar, José Pinheiro escolhera deixar um mundo cheio de amor.
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