Sambas da Vida! As histórias do Morro da Conceição e de sua gente. 2º ato - A saudade de Mariana e a virada na vida de Reginaldo.

 "Se bom pra você for
 Podes partir, amor
 E que sejas feliz
 E muito bem feliz
 Que Deus e a natureza
 As aves nos seus ninhos
 As flores pela estrada
 Perfumem todos os caminhos
 Eu aqui ficarei
 Por você rezarei
 Todas as tardes
 Ao bater
 Ave-Maria
 Que sejas bem feliz
 E leve-me na mente
 Que cresçam suas glórias
 E minhas lágrimas contentes"
 (Que sejas bem feliz - Cartola - 1975)
      Dois anos se passaram como um sopro no Morro da Conceição, mas o peso do tempo se fez sentir nos corações de quem ficou. No Bar do Helênico Português, a jukebox, agora ainda mais marcada pelo tempo, canta “Que Sejas Bem Feliz” na voz cristalina de Clara Nunes. As palavras de Cartola enchem o ar, misturando-se ao tilintar de copos e ao murmúrio das conversas. Dona Mariana, 44 anos agora, está sentada numa mesa de canto, o copo de cerveja gelada suando entre suas mãos. Ela olha para o líquido âmbar, meio cheio, meio vazio, como sua própria alma. Ao lado, José Pinheiro, com os cabelos mais grisalhos e o olhar mais cansado, escuta o samba com uma expressão que mistura saudade e resignação.
 — Sabe, comadre — começa Mariana, a voz rouca de quem já chorou muito, mas ainda guarda esperança —, às vezes eu olho pro céu à tardinha, quando toca a Ave Maria, e rezo pro meu Reginaldo. Ele tá lá em Niterói, trabalhando, crescendo... mas o coração dele, aquele coração tão grande, ainda deve doer por ela.
     José suspira, tamborilando os dedos na mesa. Ele sabe exatamente de quem Mariana fala: sua filha, Maria do Rosário, agora com 24 anos, grávida do primeiro filho, um menino que se chamará Renato. Rosário, que desafiou o pai e o mundo para se casar com Teobaldo Nascimento, vive agora as consequências de sua escolha. O cafajeste, como José sempre previu, não mudou. As noites fora de casa se tornaram rotina, e as promessas de um futuro juntos viraram cinzas, como o samba de Cartola já alertava. Ainda assim, Rosário carrega a barriga com orgulho, acreditando, ou talvez se obrigando a acreditar, que o filho trará sentido à sua vida.
— Eu rezo por ela também, Mariana — diz José, os olhos fixos no copo, como se pudesse enxergar o passado ali. — Rezo pra que ela encontre paz, que o Renato traga força pra ela. Mas, sabe, comadre, às vezes penso que eu falhei. Criei a Rosário com tanto mimo, achando que podia proteger ela do mundo. E agora... olha só o que ela escolheu. Mariana balança a cabeça, estendendo a mão para tocar o braço de José, um gesto simples, mas cheio de cumplicidade.
— Não fala isso, compadre. Você deu amor, e amor nunca é erro. Ela tá aprendendo, José. O mundo é que é duro, é ele que ensina na marra. Mas a Rosário é forte, ela vai dar a volta por cima. E o Renato... ah, esse menino vai ser a luz dela.
     José sorri, um sorriso pequeno, mas genuíno, aquecido pelas palavras da comadre. Ele pensa em Reginaldo, o jovem trabalhador que partiu com o coração em pedaços, humilhado pelas palavras cruéis de Rosário, que o chamou de fracassado. José sempre viu em Reginaldo o genro que queria, um homem de bem, com mãos calejadas e alma limpa. Ele se lembra do dia da despedida, da promessa de Reginaldo de voltar com o “bacurinho” nos braços, e sente um aperto no peito.
 — E o teu menino, Mariana? Alguma notícia? — pergunta José, tentando desviar o peso da conversa
Mariana se ilumina, os olhos brilhando com um misto de orgulho e saudade.
— Ele escreve, compadre. Não muito, que o Reginaldo nunca foi de muitas palavras, mas manda carta. Tá trabalhando numa obra grande em Niterói, já é encarregado, acredita? Disse que tá juntando dinheiro, que quer uma vida boa. E eu sei, José, eu sinto no coração de mãe: ele vai voltar outro. Vai trazer uma mulher que saiba o valor dele, que não olhe pra ele como se fosse pouco. E o “bacurinho”... ah, esse eu vou apertar até cansar!
    Os dois riem, um riso que alivia a tensão, mas não apaga a saudade. A jukebox continua, “Que cresçam suas glórias, e minhas lágrimas contentes...”, e Mariana enxuga uma lágrima discreta, disfarçando com um gole de cerveja.
 — Ele vai voltar, compadre — ela continua, mais para si mesma. — E quando voltar, vai ser um homem feito, com uma família pra chamar de sua. E a Rosário... ela não vai mais ser a sombra que paira sobre ele.
      José assente, mas seu pensamento está com Rosário. Ele a viu naquela manhã, no mercado, com a barriga já proeminente, comprando frutas com um sorriso forçado. Teobaldo não estava com ela, claro. José quis perguntar, quis abraçar, mas Rosário apenas acenou de longe, como se temesse que o pai visse a verdade em seus olhos. Ele sabe que ela está à beira do abismo que Cartola cantava, mas também sabe que ela é sua filha, e que, no fundo, há uma força que talvez ela mesma ainda não conheça.
 — Que sejas bem feliz... — murmura José, quase como uma prece, ecoando o samba. — Que a Rosário encontre o caminho dela, e que o Reginaldo encontre o dele.
  Mariana levanta o copo, um brinde silencioso. — Que Deus e a natureza, compadre, perfumem os caminhos deles. E no bar, enquanto a jukebox segue cantando, os dois continuam ali, entre copos meio cheios, meio vazios, carregando o peso de suas saudades e a esperança de que, um dia, as lágrimas serão mesmo contentes.


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