Sambas da Vida! As histórias do Morro da Conceição e de sua gente - 4º ato - Maria do Rosário e o peso de suas escolhas. As lições da vida, tendências para um autonomia.
Não....pra que lamentar
O que aconteceu
era de esperar
Se eu lhe dei a mão, foi por me enganar
Foi sem entender
Que o amor não pode haver
Sem compreensão a desunião, tende aparecer
E aí está, o que aconteceu
Você destruiu, o que era seu
Você entrou na minha vida
Usou e abusou
fez o que quis
Agora se desespera, dizendo que é infeliz
Não foi surpresa pra mim,
você começou pelo fim
Não me comove o pranto de quem é ruim, e assim
Quam sabe essa mágoa passando
Você venha se redimir
Dos erros que tanto insistiu por prazer
Pra vingar-se de mim
Diz que é carente de amor,
então você tem que mudar
Se precisar pode me procurar
Lá.....lá..ia, laiá...
.lalaiá....laiá
...Lá....lá...ia....
Se eu lhe dei a mão..."
(Tendência - Dona Ivone Lara e Jorge Aragão - 1981)
O Bar do Helênico Português estava em festa, algo raro para as noites quentes do Morro da Conceição em 2004. A
jukebox, como sempre, era o coração do lugar, e agora tocava “Tendência”, de Jorge Aragão e Dona Ivone Lara, na
voz potente de Beth Carvalho. Os versos cortantes – “Não me comove o pranto de quem é ruim, e assim / Quem sabe
essa mágoa passando / Você venha se redimir” – pareciam escritos para aquele momento, carregando o peso das
histórias que se cruzavam no bar. Mesas cheias de petiscos – pastel de carne, batata frita, torresmo crocante – e
garrafas de Brahma gelada circulavam, enquanto risadas e conversas animadas enchiam o ar. José Pinheiro, com 52
anos, erguia um copo, brindando a nova família que ali se celebrava: Reginaldo, Aninha e o pequeno Teodoro, o
“bacurinho” que fazia os olhos de Mariana brilharem de orgulho.
Mariana, aos 46 anos, estava radiante, o rosto iluminado por um sorriso que apagava os anos de preocupação.
“Olha meu menino, Zé! Meu Reginaldo voltou, com mulher, filho e essa casa que ele construiu em Niterói. Eu sabia
que ele ia florescer!” dizia ela, apertando a mão de Aninha, que sorria tímida, com Teodoro dormindo em seu colo.
Reginaldo, agora com 24 anos, exibia uma paz que contrastava com o jovem cabisbaixo que deixara o morro quatro
anos antes. Ele era outro: pedreiro formado, quase mestre de obras, com uma família que o ancorava. Sentado ao
lado de Aninha, ele olhava para o bar com um misto de gratidão e alívio, sentindo que, finalmente, a vida lhe
devolvera algo bonito.
Mas a festa ganhou um tom agridoce quando Rosário apareceu na porta do bar. Aos 26 anos, grávida de Cassiano,
seu segundo filho com Teobaldo, ela entrou hesitante, o barrigão à mostra sob um vestido simples. Seus olhos,
outrora cheios de fogo e desafio, agora carregavam uma sombra de cansaço e arrependimento. Teobaldo, fiel à sua
fama, continuava o mesmo cafajeste, sumindo por semanas, deixando Rosário com Renato, de dois anos, e agora
com outro filho a caminho. Ela tentou sorrir, cumprimentar Mariana e José, mas não teve coragem de encarar
Reginaldo. O peso das palavras que jogara nele anos atrás – “fracassado”, “homem inferior” – ainda pairava entre
eles, como um eco que o samba da jukebox parecia amplificar.
Antenor Risadinha, sempre o mestre em quebrar silêncios incômodos, colocou “Tendência” na jukebox e deu uma
piscadela para José. “Essa é pro clima, Zé! Pro morro, pras histórias, pras voltas que a vida dá!” Ele riu, mas todos na
mesa sentiram o peso da canção. Reginaldo, em especial, ouvia os versos com atenção, e seus olhos, serenos mas
firmes, se fixaram em Rosário. “Você entrou na minha vida / Usou e abusou, fez o que quis / Agora se desespera,
dizendo que é infeliz”. As palavras eram como uma faca afiada, mas Reginaldo não as cantava com ódio. Era uma
vingança suave, agridoce, como se dissesse: “Eu venci, Rosário. Não por te ver sofrer, mas por ter encontrado minha
paz.”
Rosário, sentindo o impacto dos versos, baixou o olhar. As lágrimas começaram a se formar, e ela murmurou um
“parabéns, Reginaldo” quase inaudível antes de se levantar, alegando que precisava voltar para casa. José Pinheiro,
observando a filha sair do bar, riu sem jeito, um riso que escondia a dor. “Essa menina… eu avisei, comadre,” disse
ele a Mariana, tomando um gole de cerveja. “Falei que o Teobaldo era o moinho que ia triturar os sonhos dela. Mas
ela tá pagando pra aprender. O Renato e esse Cassiano que vem aí… eles são a luz dela, mas o caminho tá torto.
Mariana, com a sabedoria de quem já sofreu muito, pôs a mão no ombro de José. “Zé, deixa ela. A Rosário é
teimosa, mas é forte. Um dia ela vai se redimir, como diz a música. E tu vai estar lá pra ajudar, como eu estive pro
meu Reginaldo.” Ela olhou para o filho, que conversava com Aninha, rindo de algo que Teodoro fazia no sono. “Olha
meu menino, Zé. Ele saiu daqui quebrado, mas voltou inteiro. A vida dá voltas.”
Antenor, sempre o palhaço da roda, levantou o copo. “Um brinde ao Reginaldo, que mostrou que é homem de
verdade! E à Aninha, que trouxe a alvorada pra ele!” Todos riram, mas José ficou pensativo, o coração dividido entre
a alegria pelo amigo e a preocupação com Rosário. Lá fora, a noite do Morro da Conceição seguia seu ritmo, e a
jukebox, incansável, continuava a contar as histórias do morro, enquanto Rosário caminhava para casa, as lágrimas
caindo e a incerteza sobre Teobaldo pesando mais que nunca. No bar, Reginaldo, com Aninha ao seu lado e
Teodoro no colo, sentia que, pela primeira vez, a música falava de vitória, não de dor. “Se precisar pode me
procurar”, dizia a canção, mas Reginaldo sabia: ele não precisava mais olhar para trás.
Morro da Conceição - 2010.
" É impossível nesta primavera, eu sei
Impossível, pois longe, estarei
Mas pensando em nosso amor,
amor sincero
Ai, se eu tivesse autonomia
Se eu pudesse, gritaria
Não vou, não quero
Escravizaram assim, um pobre coração
É necessário a nova abolição
Pra trazer de volta a minha liberdade
Se eu pudesse, gritaria, amor
Se eu pudesse, brigaria, amor
Não vou, não quero
(Ah...se eu tivesse autonomia...)
Escravizaram assim, um pobre coração
É necessário a nova abolição
Pra trazer de volta a minha liberdade
Se eu pudesse, brigaria, amor
Se eu pudesse, gritaria, amor
Não vou, não quero
Não, não quero."
( Autonomia - Cartola - 1978 )
Dez anos se passaram desde que o Morro da Conceição testemunhou o começo dessa história, e o ano de 2010
trazia um ar de mudança mesclado com as velhas dores. O Bar do Helênico Português, embora ainda o coração
pulsante do morro, agora exibia uma jukebox digitalizada, um sinal dos tempos modernos. A voz rascante de
Alcione ecoava, cantando “Autonomia” de Cartola com uma força que parecia arrancar as entranhas: “Escravizaram
assim, um pobre coração / É necessário a nova abolição / Pra trazer de volta a minha liberdade”. Os versos cortavam
o ar, como se falassem diretamente ao peito de Rosário, que, aos 32 anos, estava sentada numa mesa de canto,
uma Brahma gelada na mão, ao lado de Rosinha, sua amiga de infância e colega professora de matemática na Escola Municipal Agenor de Oliveira.
Rosário, com o rosto marcado pelo cansaço e pela gravidez que já não disfarçava as rugas precoces, enxugava uma
lágrima furtiva. Seus olhos, fixos na mesa onde Reginaldo, Aninha e o pequeno Teodoro, agora com 8 anos, riam
juntos, eram um espelho de arrependimento. “Poderia ser eu, Rosinha,” desabafou ela, a voz embargada. “O coração
me fez de burra! Burra! Essa paixão pelo Teobaldo é um veneno que eu me viciei em tomar!” Rosinha, com a
paciência de quem já ouvira esse lamento muitas vezes, segurou a mão da amiga. “Rosário, tu ainda é jovem. Teus
meninos precisam de ti. Para com isso de esperar esse homem mudar. Ele não vai. Tu sabe disso.”
Na outra ponta do bar, José Pinheiro, agora com 62 anos, observava a cena com um peso no peito que o tempo só
fizera aumentar. Ele via a filha, mãe de Renato, 8 anos, Cassiano, 6, e Rodrigo, 4, afundada numa paixão cega por
Teobaldo, o mesmo cafajeste que, dez anos depois, continuava sumindo, deixando promessas vazias e um rastro de
mulheres e filhos pelo morro. José tentou, ano após ano, abrir os olhos de Rosário. “Filha, esse homem não presta.
O pai dos teus meninos sou eu! Tu acha justo eu ser o pai dos meus netos?” perguntava ele, a voz carregada de
frustração. Rosário, com um olhar cabisbaixo, sempre respondia: “Ele um dia há de mudar, meu pai, eu sei.” Mas o
silêncio que seguia era a prova de que nem ela acreditava mais nisso.
José se tornara o pilar dos netos. Renato, com os olhos curiosos e o jeito esperto, já ajudava o avô a carregar as
compras do mercado. Cassiano, mais quieto, adorava ouvir as histórias de José sobre o morro antigo. E Rodrigo, o
caçula, era o xodó, sempre pendurado no colo do avô, rindo com suas caretas. Mas, para José, cada risada dos
meninos era um lembrete amargo: ele era a referência que Teobaldo nunca seria. Enquanto isso, Rosário se
desgastava, dividida entre o amor doentio pelo marido e a responsabilidade de criar três filhos sozinha, lecionando
na escola municipal com um salário que mal dava para o básico.
No bar, a festa continuava, mas com tons diferentes para cada um. Reginaldo, aos 34 anos, era a imagem do
homem realizado. Mestre de obras em Niterói, com uma casa sólida e uma família que o enchia de orgulho, ele
conversava com Aninha, agora chamada carinhosamente de Heleninha por todos no morro. Teodoro, com seu
uniforme da escola e um sorriso travesso, corria entre as mesas, brincando com Antenor Risadinha, que, mesmo
mais velho, ainda tentava animar a roda com piadas. Reginaldo, ao ver Rosário do outro lado do bar, não sentia
mais raiva. A mágoa de outrora dera lugar a uma pena silenciosa. Ele sabia que a vida dela era o resultado das
escolhas que fez, e os versos de “Autonomia” pareciam dizer tudo: “Se eu pudesse, gritaria, amor / Não vou, não
quero”. Ele escolhera não se prender ao passado, e ali, com Aninha e Teodoro, encontrara sua liberdade.
Rosário, por sua vez, sentia o peso da canção como um espelho cruel. Cada verso de Alcione era um tapa:
“Escravizaram assim, um pobre coração”. Ela sabia que se escravizara a Teobaldo, a uma ilusão que a consumia. Ao
ver Reginaldo, a culpa a sufocava. Anos atrás, ela o humilhara, jogara seu amor no lixo. Agora, ele era a prova viva
de que ela escolhera errado. Levantando-se da mesa, ela murmurou um “vou pra casa” para Rosinha e saiu, os olhos
molhados, o coração gritando por uma “nova abolição” que ela ainda não tinha coragem de buscar.
José, vendo a filha sair, tomou um gole longo de cerveja. Antenor, ao seu lado, tentou aliviar: “Zé, deixa a menina.
Ela tá vendo o Reginaldo, tá vendo o que perdeu. Quem sabe isso acorda ela.” José balançou a cabeça, sem
palavras. Mariana, que se juntara à mesa, segurou a mão do amigo. “Zé, teus netos são tua força. A Rosário vai
encontrar o caminho dela. Assim como meu Reginaldo encontrou.” A jukebox seguia tocando, e Alcione cantava
sobre liberdade, enquanto o Morro da Conceição, com suas ladeiras tortuosas, continuava a ser palco de corações
partidos e esperanças teimosas.
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