Sambas da Vida! As histórias do Morro da Conceição e de sua gente. 1º Ato: "O Mundo é um Moinho".

 "Ainda é cedo, amor
 Mal começastes a conhecer a vida
 Já anuncias a hora de partida
 Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
 Preste atenção, querida
 Embora eu saiba que estás resolvida
 Em cada esquina cai um pouco tua vida
 Em pouco tempo não serás mais o que és...
 Ouça-me bem, amor Preste atenção, o mundo é um moinho
 Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
 Vai reduzir as ilusões a pó
 Preste atenção, querida
 De cada amor, tu herdarás só o cinismo
 Quando notares, estás à beira do abismo
 Abismo que cavaste com teus pés" ( O Mundo é Moinho - Cartola - 1977)
    No Morro da Conceição, o ano 2000 carrega o peso do samba e das escolhas que ecoam como as notas de “O Mundo é um Moinho” na jukebox antiga do Bar do Helênico Português. O ar é quente, misturado com o cheiro de cachaça, feijão cozido e o perfume doce das damas-da-noite que crescem nas encostas. A luz amarelada do bar ilumina rostos conhecidos, marcados pela vida, enquanto a voz rouca de Beth Carvalho corta o burburinho, cantando os versos premonitórios de Cartola. José Pinheiro, 50 anos, está sentado numa mesa de canto, os olhos fundos fixos no copo de Brahma, as mãos calejadas tamborilando na madeira gasta. Ele não olha para ninguém, mas todos no bar sabem: o homem está dilacerado.
  Ao seu lado, Antenor Risadinha, seu fiel escudeiro, tenta aliviar o clima com uma piada, mas o riso não vem. “Ô, Zé, deixa a menina. Ela é teimosa, mas é de coração bom. Vai aprender na marra, como a gente aprendeu.” José balança a cabeça, o peso da culpa e da impotência esmagando o peito. Ele criou Maria do Rosário, sua única filha, com todo o cuidado que o mundo duro do morro permitia. Viúvo de Maria das Dores, que partiu cedo demais, José fez de Rosário sua razão de viver. Deu a ela estudos, vestidos bonitos, livros que ele mesmo mal entendia. Mas agora, aos 22 anos, Rosário, a professora de Português da Escola Municipal Silas de Oliveira, com olhos brilhantes e sonhos maiores que o morro, está jogando tudo no lixo por Teobaldo Nascimento.
  Teobaldo, 25 anos, é o tipo de homem que o morro ama e odeia. Bonito, com um sorriso que desarma, ele tem a lábia afiada e o jeito de quem sabe que o mundo lhe deve algo. Mas todos conhecem sua fama: um cafajeste que deixa corações partidos e filhos sem pai pelas esquinas. José tentou alertar Rosário. Sentou com ela na sala de casa, sob a luz fraca do abajur, e falou com a voz embargada:
 “Filha, presta atenção, querida. Esse homem não é pra você. Ele é como o vento, passa e não fica. Vai te usar, vai te quebrar, e eu não vou suportar te ver assim.”
 Rosário, com o queixo erguido e o fogo da juventude nos olhos, retrucou:
 “Pai, eu não sou criança. Eu sei o que faço. O Teobaldo me ama, e eu vou mudar ele. O senhor não entende o que é amor de verdade!”
    José sentiu as palavras como um soco. “Amor de verdade?”, pensou. Ele, que viveu 25 anos com Maria das Dores, planejando cada passo, construindo uma vida sólida no morro, sabia o que era amor. Mas Rosário, cega pela paixão, já estava decidida. Dias depois, contra a vontade do pai, ela se casou com Teobaldo numa cerimônia simples, com um vestido branco que José, mesmo magoado, pagou. No bar, Antenor enche o copo de José e tenta mudar o assunto. “E o Reginaldo, Zé? O menino sumiu, né?” José suspira, o nome de Reginaldo trazendo outra dor.
  Reginaldo, 21 anos, ajudante de pedreiro, sempre foi o oposto de Teobaldo. Humilde, trabalhador, com mãos calejadas e um coração que batia por Rosário desde que eram crianças brincando nas ladeiras. Ele nunca teve coragem de se declarar abertamente, mas todos no morro viam o jeito que ele olhava para ela, como se Rosário fosse o sol. José sonhava com Reginaldo como genro, um homem que honraria sua filha, que a protegeria. Mas Rosário nunca deu chance. Pior, ela o humilhava. Certa noite, no beco atrás da escola, Reginaldo criou coragem e tentou falar com ela. “Rosário, eu sei que não sou grande coisa, mas eu te amo. Sempre amei. Eu trabalho, eu luto, eu posso te dar uma vida boa, com respeito.” Rosário riu, um riso cruel que cortou o ar. “Você, Reginaldo? Um ajudante de pedreiro? Nunca vai ser homem pra mim. Se enxerga!” As palavras ecoaram no peito de Reginaldo como facadas. José, que soube da história por um vizinho, sentiu o coração apertar. Ele viu o menino desmoronar, viu o brilho nos olhos dele se apagar.
   Reginaldo, derrotado, decidiu que o morro não era mais seu lugar. A bebida já começava a ser sua companheira, e ele sabia que, se ficasse, aquele amor não correspondido o consumiria. Numa tarde cinzenta, ele foi até a casa de José. Sentaram no quintal, sob a sombra de uma mangueira, e Reginaldo desabafou: “Seu José, eu juro que tentei. Mas ela não me quer. E eu não aguento mais ver ela com aquele desgraçado. Tô indo pra Niterói, tentar a vida lá. Quem sabe eu esqueço.” José, com lágrimas nos olhos, segurou o ombro do rapaz. “Você é homem de bem, Reginaldo. Minha filha tá cega, mas um dia ela vai ver. Vai com Deus, meu filho.” Reginaldo apenas assentiu, a garganta travada. Antes de partir, Reginaldo foi até a casa de sua mãe, Mariana, 42 anos, uma lavadeira que criou o filho sozinha com unhas e dentes. No quartinho simples, com paredes descascadas e o rádio tocando um samba triste, ele se despediu. Beijou a testa de Mariana, os olhos marejados. “Mãe, eu volto. Prometo. E trago o bacurinho nos braços pra senhora abençoar.” Mariana, com o rosto molhado de lágrimas, apenas abraçou o filho, sem palavras. Ela sabia que o morro, com suas alegrias e dores, tinha engolido mais um pedaço do seu coração.
   Naquela noite, no Bar do Helênico Português, Mariana se juntou a José e Antenor. A jukebox tocava “O Mundo é um Moinho” outra vez, como se o destino quisesse esfregar a verdade na cara de todos. Mariana, com a voz embargada, desabafou: “Meu menino foi embora por causa dela, Zé. Ele não merecia isso. Meu Reginaldo é bom, é trabalhador. Por que ela fez isso com ele?” José, sem respostas, apenas segurou a mão dela. Antenor, tentando aliviar, disse: “Mariana, a vida é assim. O moinho tritura, mas às vezes sobra farinha boa. O Reginaldo vai se encontrar em Niterói. E a Rosário… bom, ela vai aprender.” Enquanto isso, Rosário, agora casada com Teobaldo, começa a perceber as rachaduras no conto de fadas que imaginou. Ele some por dias, volta cheirando a perfume barato e com desculpas esfarrapadas. No morro, os olhares de pena a seguem, e ela começa a sentir o peso das palavras do pai. José, no bar, continua esperando, rezando para que a filha acorde antes que o abismo, como diz a canção, a engula de vez

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