Sambas da Vida! As histórias do Morro da Conceição e de sua gente. 3º ato - O alvorecer de Reginaldo. A alvorada de um novo amor.

 "Olha como a flor se ascende
 Quando o dia amanhece
 Minha mágoa se esconde
 A esperança aparece
 O que me restou da noite
 O cansaço, a incerteza
 Lá se vão na beleza
 Desse lindo alvorecer
 Lá se vão na beleza
 Desse lindo alvorecer
 E esse mar em revolta que canta na areia
 Qual a tristeza que trago em minh’alma campeia
 Quero solução sim, pois quero cantar
 Desfrutar dessa alegria
 Que só me faz despertar do meu penar
 E esse canto bonito que vem da alvorada
 Não é meu grito aflito pela madrugada
 Tudo tão suave
 Liberdade em cor
 O refúgio da alma vencida pelo desamor"
(Alvorecer - Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho - 1974)
   O sol nascente de Niterói banhava o Morro do Barreto com uma luz dourada, e Reginaldo, agora com 23 anos, sentia a brisa da manhã como um sopro de renovação. Dois anos antes, em 2000, ele descera do ônibus vindo do Morro da Conceição, carregando pouco mais que um radinho de pilha e o coração partido. Naquele dia, a voz de Clara Nunes, entoando “Alvorecer” de Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho, era sua única companhia. “Olha como a flor se ascende / Quando o dia amanhece / Minha mágoa se esconde / A esperança aparece”, cantava Clara, e Reginaldo, com os olhos marejados, decidira que aquelas palavras seriam seu hino. Ele não seria mais o “fracassado” que Rosário, com seu veneno disfarçado de paixão, o acusara de ser.
    Heitor Pretinho, compadre de Mariana, acolheu Reginaldo como a um filho. No Morro do Barreto, cedeu-lhe um quarto e sala modesto, com paredes de tijolo aparente e um terreno onde o jovem poderia construir seu futuro. “Fica à vontade, meu afilhado. Essa casinha é tua. Faz dela o que quiser,” disse Heitor, batendo no ombro de Reginaldo com um sorriso largo. E Reginaldo, com a força de quem quer provar algo a si mesmo, pôs mãos à obra. Acordava antes do sol, tomava um café preto forte, amargo como as lembranças de Rosário, e saía em busca de trabalho. De ajudante de pedreiro, com o corpo coberto de poeira e cimento, ele passou a pedreiro em poucos meses, conquistando a confiança dos mestres de obra no morro. Cada bico era um tijolo a mais na sua casa e na sua autoestima.
   Com o tempo, Reginaldo decidiu ir além. Inscreveu-se num curso de mestre de obras, estudando à noite com a luz fraca de uma lâmpada pendurada no teto. O radinho, sempre ao seu lado, tocava Clara Nunes, e “Alvorecer” continuava a lembrá-lo de que a esperança renasce com cada novo dia. Em menos de dois anos, o quarto e sala virou uma casa digna: dois quartos, uma cozinha pequena mas funcional, uma varanda onde ele tomava café olhando o movimento do morro. O terreno, antes vazio, agora tinha uma mangueira plantada por ele mesmo, um símbolo de raízes que ele decidira fincar.
     Numa noite quente de 2002, sentado na varanda com Heitor Pretinho, Reginaldo abriu o coração. O padrinho, com uma cerveja na mão, ouvia em silêncio enquanto o afilhado desabafava: “Padrinho, eu mostrei a mim mesmo que não sou o ‘fracassado e homem inferior’ que Rosário me definiu. Ela riu de mim, disse que eu nunca seria nada. Mas olha essa casa, olha o que eu construí com essas mãos!” Ele levantou as mãos calejadas, marcadas pelo trabalho, com um orgulho que não cabia no peito. “Eu não sou mais aquele menino que baixava a cabeça. Tô virando mestre de obras, padrinho. Tô fazendo minha vida. Heitor, com os olhos brilhando, deu um tapa carinhoso na nuca de Reginaldo. “Tu é homem, meu afilhado. Sempre foi. Aquela Rosário… ela tá pagando o preço da escolha dela. Mas tu? Tu tá florescendo, como diz a música. Teu alvorecer tá só começando.” Reginaldo sorriu, mas havia um vazio que nem o orgulho conseguia preencher. Ele pensava na mãe, Mariana, sozinha no Morro da Conceição, e na promessa que fizera: voltar com um “bacurinho” nos braços, com uma família para ela abençoar.       Em Niterói, Reginaldo conheceu Ana, a cozinheira de 20 anos que trabalhava numa lanchonete perto de uma obra onde ele atuava. Ela tinha um jeito simples, um riso que aquecia e uma paciência que contrastava com a pressa do mundo. Não era como Rosário, com sua beleza que cegava e suas palavras que cortavam. Ana era como o amanhecer da canção: suave, constante, trazendo paz. Eles começaram a se aproximar, primeiro com conversas tímidas, depois com cafés compartilhados na varanda de Reginaldo. Ele ainda não falava de amor, mas sentia algo novo crescendo, algo que não doía.
   Enquanto isso, no Morro da Conceição, a jukebox do Bar do Helênico Português continuava a girar suas histórias. Mariana, José Pinheiro e Antenor Risadinha se reuniam, como sempre, para dividir cervejas e saudades. Mariana falava de Reginaldo com um brilho nos olhos, contando as cartas que ele mandava, cheias de notícias sobre a casa e o curso. José, por sua vez, carregava o peso de ver Rosário, agora mãe de Renato, começando a perceber o erro de ter escolhido Teobaldo. O cafajeste, como esperado, não mudara. E, enquanto Clara Nunes cantava “Alvorecer” no bar, Mariana e José se permitiam sonhar: ela, com o retorno do filho; ele, com a redenção da filha. O morro, com suas ladeiras e seus dramas, seguia girando, mas Reginaldo, em Niterói, já via a luz de um novo dia.
"Alvorada lá no morro, que beleza
 Ninguém chora, não há tristeza
 Ninguém sente dissabor
 O sol colorindo, é tão lindo, é tão lindo
 E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo
 Alvorada... Alvorada lá no morro, que beleza
 Ninguém chora, não há tristeza
 Ninguém sente dissabor
 O sol colorindo é tão lindo, é tão lindo
 E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo
 Você também me lembra a alvorada
 Quando chega iluminando
 Meus caminhos tão sem vida
 E o que me resta é bem pouco
 Quase nada, de que ir assim
Vagando numa estrada perdida
 Alvorada... "
( Alvorada no Morro - Cartola e Carlos Cachaça - 1972)
No quartinho simples do Morro do Barreto, a luz da manhã de 2003 entrava tímida pela janela, iluminando o radinho de pilha que nunca abandonava Reginaldo. A voz de Clara Nunes, cantando “Alvorada” de Cartola e Carlos Cachaça, enchia o espaço com uma esperança que parecia escrita para ele: “Alvorada lá no morro, que beleza / Ninguém chora, não há tristeza / Ninguém sente dissabor”. Aos 23 anos, Reginaldo, agora um pedreiro respeitado e quase mestre de obras, ainda carregava no olhar um brilho de menino, mas também a determinação de quem aprendera a reconstruir a própria vida. O radinho, companheiro de tantas madrugadas, era como um oráculo, trazendo as palavras certas para cada novo passo. Foi nesse cenário que Ana Helena entrou em sua vida. Ana, ou Aninha, como ele passou a chamá-la, não tinha a beleza exuberante de Rosário, que outrora cegara Reginaldo com sua chama destrutiva. Aninha era diferente: tinha 20 anos, olhos gentis, um sorriso que aquecia como o sol da alvorada e uma palavra de incentivo que sempre parecia chegar na hora certa. Trabalhando na lanchonete perto da obra onde Reginaldo erguia paredes, ela o conquistou com pequenos gestos – um café oferecido com um “força, moço, tu tá fazendo bonito”, uma conversa despretensiosa sobre o dia, um olhar que não julgava. Reginaldo, que por tanto tempo carregara o peso das palavras cruéis de Rosário – “fracassado”, “homem inferior” –, encontrava em Aninha um refúgio, um lugar onde podia ser ele mesmo.
   Os dois começaram a se aproximar, primeiro com risos tímidos, depois com encontros na varanda da casa que Reginaldo construíra com tanto suor. Uma noite, sob o céu estrelado de Niterói, com o radinho tocando baixo e a brisa trazendo o cheiro do mar, veio a primeira noite de verdade. Não foi um incêndio de paixão, como ele imaginara com Rosário, mas algo mais profundo: duas almas se descobrindo, como crianças que se revelam sem medo. Daquela noite, nasceu Teodoro, um menino de olhos vivos e pele morena, que veio ao mundo em 2003, trazendo consigo a promessa de um novo começo.
  Um ano depois, em 2004, Reginaldo, Aninha e o pequeno Teodoro subiram as ladeiras do Morro da Conceição. Reginaldo, com o peito estufado de orgulho, carregava um sorriso que não cabia no rosto. Aninha, com Teodoro nos braços, caminhava ao seu lado, tímida mas feliz, enquanto o menino, de apenas um ano, balbuciava sons que enchiam o ar. Quando chegaram à casa de Mariana, no coração do morro, o reencontro foi um mar de emoções. Mariana, agora com 46 anos, abriu a porta e, ao ver o filho, a nora e o neto, desabou em lágrimas. “Meu pretinho!” exclamou, a voz embargada, abraçando Reginaldo com força. “Assim tu mata essa velha de felicidade! Olha esse menino, é tua cara! E que moça linda é essa?”
Aninha sorriu, um pouco envergonhada, enquanto entregava Teodoro aos braços da avó. “Prazer, dona Mariana. Eu sou Ana Helena, mas pode me chamar de Aninha. O Reginaldo fala tanto da senhora que parece que já te conheço.” Mariana, com lágrimas escorrendo, pegou o neto e o apertou contra o peito, beijando sua testa. “Meu bacurinho! Meu Deus, ele é perfeito. Reginaldo, tu cumpriu tua promessa, meu filho.” Ela olhou para Aninha, os olhos brilhando de gratidão. “Tu trouxe luz pra vida do meu menino, Aninha. Deus te abençoe.” No Bar do Helênico Português, naquela noite, a jukebox tocava “Alvorada” mais uma vez, como se celebrasse o retorno de Reginaldo. José Pinheiro, sentado à mesa de sempre com Antenor Risadinha, ouviu a história com um misto de alegria e melancolia. “O Reginaldo venceu, comadre,” disse José, apertando a mão de Mariana. “Ele fez o que eu sempre soube que ele podia. Construiu uma vida, uma família.” Mariana, ainda emocionada, assentiu. “E a tua Rosário, Zé? Como tá?
    José suspirou, o peso de sempre voltando ao peito. Rosário, agora com 26 anos, criava Renato sozinha na prática, já que Teobaldo continuava suas andanças, deixando-a com promessas vazias e um filho para sustentar. “Ela tá começando a enxergar, comadre. O Renato é a luz dela, mas o Teobaldo… ele é o mesmo. O moinho tá triturando, como eu disse.” Mariana pôs a mão no ombro de José. “Ela vai aprender, Zé. Assim como meu Reginaldo aprendeu. A alvorada vem pra todo mundo, cedo ou tarde.” Enquanto isso, Reginaldo, Aninha e Teodoro, de volta à casa de Mariana, riam e planejavam o futuro. O radinho, agora na sala, tocava Clara Nunes, e Reginaldo, olhando para sua mulher e seu filho, sentia que, finalmente, a estrada perdida da canção ficara para trás. O Morro da Conceição, com suas dores e alegrias, acolhia de novo seu filho pródigo, e a alvorada, tão linda, tingia tudo de esperança.

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